Não, não vou falar do “Freeport” nem da “campanha negra”, prefiro recordar que ontem, sob o pretexto de uma conferência de fiscalistas, foi lançada a dissertação de doutoramento de João Ricardo Catarino, “Estado Social e Escolha Individual”, de que fui orientador, e a que tive a honra de me associar. Naquela sala da Câmara de Comércio, na Rua de Santo Antão, sob o retrato de D. Maria II, rodeado por todos dos patriarcas da revolução liberal e da institucionalização do Estado Moderno no século XIX, apenas recordei a memória de Mouzinho da Silveira e do seu sucessor José da Silva Carvalho. E de como Mouzinho se demitiu em 1832, quando os credores britânicos queriam o imediato confisco de 5 000 pipas de vinho. O reformador logo deixou a pasta a Carvalho, por ser contra a extorsão, sublinhando no testamento: se cuidas que a popularidade é coisa diferente da justiça e da moral austera te enganas.
Raros reparam que os verdadeiros fundadores do Estado racional-normativo em Portugal foram estes liberais, sobretudo quando acabaram com a pluralidade feudal de fiscos que fazia não chegar ao centro estadual mais de metade dos reais impostos. Porque a história da democracia é a história do imposto, como dizia Duverger, e a justiça social é aquele princípio fundamental do direito e da política que manda ao honeste vivere, ao lado do alterum non laedere, da justiça dos contratos, e do suum cuique tribuere, da justiça distributiva. Como se os velhos liberais, na senda da Adam Smith, o mestre recuperado pelo professor Gordon Brown, precisassem dos posteriores socialistas para conjugarem o norte da justiça e o próprio Estado.
Numa altura em que o discurso de justificação de muitos situacionismos invoca retroactivamente Keynes e os mecanismos de intervenção do velho Estado soberanista na moeda e na gestão da economia, é salutar notar que cerca de um século volvido, John Maynard, se regressasse, surpreenderia muitos porque, certamente, seria o primeiro a dizer que já não era keynesiano. Porque não alinharia neste conformismo dos prognósticos feitos depois do apito final que marcou a golpada da geofinança sobre a geoeconomia e não alinharia nos jogos florais do Fórum Social Mundial contra o grupo de Davos. Todas as frases das ideologias que pretendiam salvar a humanidade têm de reconhecer que a humanidade continua por salvar.
Qualquer conhecimento modesto sobre essa coisa suprema a que chamamos crise e recessão tem de ir mais fundo e compreender como o Estado a que chegámos (Salgueiro Maia dixit em 25.04.1974) é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas do nosso tempo e grande demais quando nos asfixia individualmente, como acontece na presente extorsão fiscal sobre os pequenos e médios rendimentos do trabalho (para glosarmos Daniel Bell).
O tal Estado fundado por Mouzinho da Silveira está explodindo em infuncionalidade e precisamente naqueles elementos genéticos que, no fim da Idade Média, o fecundaram de modernidade. É a crise do Estado Segurança, dado que já não podemos gritar aqui d’el rei ou ó da guarda, face aos poderes fácticos e as bandocracias que o sitiaram por dentro. É a crise do Estado Justiça, onde faltam cada vez mais os magistrados de fora. É a crise do Estado Legislador, prenhe de traduções em calão. É também a crise do Estado Imposto, do imposto sem isenções categoriais de classes, geral e permanente, como foram as sisas de D. João I e das Cortes que o elegeram.
E não será a salazarenta ditadura das finanças que nos pode salvar. Só o regresso à ideia democrática do imposto como contribuição e o reconhecimento da pluralidade de Estados a que damos a pluralidade de pertenças da nossa cidadania. A democracia fiscal impõe que visionemos a nossa independência, não como o soberanismo perdido em que assentou o velho Keynes, mas antes como gestão de dependências e ousada navegação nas interdependências, da integração europeia, da vizinhança predadora do Estado espanhol, e das teias globalistas da geoeconomia e da geofinança.
O velho Keynes, se regressasse, poderia aconselhar os nossos governantes do Magalhães e do GPS, os tais que agora entraram em navegação à bolina, a que chamam orientação pelas estrelas, que vale mais o sextante e a descoberta, na cauda da ursa, da urgente estrela do Norte, como Aristóteles chamava à justiça. Até terão de reparar no que se passou na América do Norte, onde já nos finais do século XIX, havia leis “antitrust” e de defesa da concorrência, e onde o “New Deal” precedeu o “Welfare State”. Que não continuemos a atrasar-nos cinquenta anos, por causa dos preconceitos ideológicos. Por mim, continuo orgulhosamente defensor da regeneração do Estado, conforme as lições dos liberais clássicos. Revivam Mouzinho da Silveira e José da Silva Carvalho!