Há dias em que se acorda marcado pela agenda das parangonas dos jornais, entre os efeitos da bomba de ontem da pretensa compra de votos na laranjada, aos meandros das escutas presidenciais e limianas, árvores que quase ocultaram a sonoridade das sondagens. Neste país, onde ninguém a ninguém admira e todos a determinados idolatram (citação, de memória, do Almada), apenas observo, hermeticamente: há quem diga que o foi, mesmo sem nunca o ter sido, para que, quando o for conveniente, dizer, então, que já o deixou de ser. Porque todos querem flutuar como rolhas, nas ondas do pensamento dominante. Pior ainda: nas fachadas institucionais que deveriam ser de homens livres, mesmo que em aulas livres, quando aquelas se enredam nos diccionários dos mestres-de-seita, sobretudo das seitas que se carimbam com o monopólio da racionalidade.
E depois disto tudo, lá tenho que escolher entre os seguintes cabeçudos de lista: Jaime Gama, Manuela Leite, Francisco Louçã, Teresa Caeiro e Jerónimo de Sousa, com muitos outros à ilharga, entre os quais o departamento de benzeduras de um colégio ligado a Josemaría Escrivá e que não é bem aqueles que passando os olhos por esta frase julgarão, porque está mais ligado ao ramo da restauração e dos pastéis. Se for votar, o que será sempre contra o situacionismo, juro que prefiro um dos que pensam como vivem e que vivem como pensam, mesmo que, aparentemente, possa situar-se no lado oposto ao que me é indicado pela bússola eleitoral. Prefiro a honra à inteligência.
E recordo:
1. A versão constitucional que nos rege não a do tempo de Eanes, nem dos três governos presidenciais que constituiu, dos quais tive a honra de ser adjunto, com mais saudades de Nobre da Costa que de Maria de Lurdes Pintasilgo, mas com muito respeito pela utopia desta grande senhora.
2. Quem eliminou esse anterior presidencialismo foi a campanha civilista de Sá Carneiro, quando isso era espinha dorsal do PPD/PSD, a que aderiu Soares e o PS.
3. Este presidente, apesar de Fernando Lima e João Espada, vai cumprir o contrato de guardião da Constituição.
4. Foi Sampaio que usou a bomba atómica da dissolução, contra um governo de maioria absoluta, o de Santana/ Portas.
5. Soares não favoreceu um governo de Constâncio (PS), Eanes (PRD) e Adriano (CDS), contra a semente de cavaquismo, durante o 1º governo do cavaquistão. Apesar de, depois, clamar contra a ditadura da maioria e apelar ao direito à indignação.
6. Pode haver um governo de maioria absolutamente relativa, mesmo que um dos partidos não obtenha maioria absoluta. Por exemplo, do PS, com acordos parlamentares de apoio, com o BE e o PCP, onde estes partidos enumerem cláusulas de salvaguarda ideológica. O PS fica confortável porque sabe que as seccções portuguesas do PPE o terão de apoiar em matérias europeias que são mais de metade dos actuais factores de poder vigentes.
7. Se for necessário, Sócrates vai fazer um interregno como presidente do PS, substituindo Almeida Santos. E a drª Manela, idem. Os partidos e lideranças que temos sabem das potencialidades da democracia e são responsáveis. E Cavaco vai cumprir os contratos. Basta notar que Jerónimo só entrou para o PCP depois do 25 de Abril de 1974. Que Sócrates e Paulo Portas começaram na JSD. Que Louçã só começou em comícios depois da mesma data e que antes andava encostado aos cristãos progressistas. Todos têm raízes. Até Manela no bisavô e na crise estudantil dos anos sessenta e não do lado salazarento.
8. A democracia recomenda-se e os partidos precisam de desafios. Por exemplo, o da luta contra a corrupção, de acordo com os critérios globais da “Transparency International”. É uma vergonha estarmos ao lado de Malta e da Islândia, como os únicos três da nossa Europa, sem institucionais representantes da luta global contra a corrupção. Ainda pensamos que a coisa tem a ver com leis, polícias, magistrados e organismos carrimbados com esse nome, quando o impulso tem de vir daquilo que ainda não existe: a sociedade civil.
9. O problema da democracia é esta ilusão absolutista e salazarenta do decretino. E os partidos que temos são cada vez mais estadão e, logo, mais decretinos, num momento em que também faltam empresários na economia, professores na escola e sindicatos no trabalho.
10. Não precisamos de menos Estado. Precisamos de mais república, de mais comunidade, de uma democracia que não se volte contra o povo e que as autarquias locais e regionais não sejam direcções-gerais ou governos civis. O máximo de público sempre foi o contrato das horizontalidades. O que vem de baixo para cima. E de dentro para fora. Contra a hipocrisia inquisitorial que nos transforma em mentira generalizada, com mais cobardes do que corajosos. Dos que são antes de quebrar que torcer, porque vivem como pensam.