Hoje digo apenas, bem longe da sucata e da actual crise: o Estado não somos nós. O Estado são eles. O Estado é ele. Somos provisoriamente definitivos em regime de governo dos espertos, coisa que acontece sempre que uma determinada situação política passa a ser objecto do domínio perpétuo do acaso, onde o burocrata começa a ter a ilusão da acção permanente, para utilizarmos terminologia aprendida em Hannah Arendt.
Chega-se assim à despolitização típica do governo da burocracia, com uma administração que apenas aplica decretos, como acontecia com o czarismo russo, a monarquia austro-húngara e certos impérios coloniais. Porque os burocratas destes regimes, que administravam territórios extensos com populações heterogéneas, apenas pretendiam suprimir as autonomias locais e centralizar o poder. Contudo, nestes modelos, os donos do poder exercem uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos contemporâneos.
A esse modelo, um tal de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, pensando em António Bernardo, chamou-lhe um dia comunismo burocrático: o clientelismo estatizante, protector das novas forças vivas, dado terem sido satisfeitas as reivindicações de vários corpos especiais: deu-lhes uma Câmara dos Pares, vitalícios e hereditários; um Código Administrativo com 400 administradores de concelho, 4000 regedores e cerca de 30000 cabos de polícia, burocracia, riqueza, exército: eis os três pontos de apoio da doutrina; centralização, oligarquia: eis o seu processo.
O socratismo deixou renascer este fantasma de todas as nossas decadências. E a mancha que afectava os micro-autoritarismos sub-estatais foi, pouco a pouco, alastrando. Chamam, depois da casa arrombada, os senhores inspectores. Põem os magistrados e os polícias em escutas. Juntam ao caldo, os disponíveis bufos de sempre e pensam que a porcaria só funciona de baixo para cima, não reparando que a rede de micropoderes deslegitima todo o sistema. Aqui d’el-rei!, gritam os velhos. Oh da Guarda!, clamam os monarcómacos! Eu apenas olho para a estatátua dos macacos dos macacos cegos, surdos e mudos e repito como Sophia: vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Nada pode apagar o concerto dos gritos. O nosso tempo é pecado organizado.
Os ministros e adjuntos dos déspotas continuam psicopatas sentenciadores e até chegam ao cúmulo de se assumirem como os principais teóricos da democracia. Por mim, apenas sorrio.