Muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo…

Ontem, lá fui à minha santa terrinha, numa conferência que tinha como pretexto invocar carbonária, Maçonaria e república, no contexto da implantação da república. Foi emotivo esse regresso à memória de menino e moço desses campos, marcado pela experiência política dos meus seis anos de idade, quando vi pela primeira vez a colar um cartaz de propaganda política nas paredes da casa da minha avó, no Largo da Praça de Cernache: era o Dr. João Ribeiro que afixava um de Arlindo Vicente, antes de se tornar num apoiante de Humberto Delgado. E comecei, precisamente, por homenagear esse santo laico da minha infância, talvez o resistente anti-salazarista da zona que mais vezes deve ter sido preso e que, para mim, se tornou no paradigma de um político que sempre viveu como pensou e que, nem depois da vitória das suas ideias, no 25 de Abril de 1974, se conformou. Encontrei-o, um dia, no tribunal, onde fazia estágio de advocacia: tinha voltado a ser detido, agora, conspirando num dos grupos de extrema-esquerda contra o situacionismo do PREC… O meu querido dr. Ribeiro que a tantos fez bem, com o seu dois cavalos, circulando de aldeia em aldeia, de casa em casa, tratando de toda a gente, sem máquina registadora de pagamento de consultas, foi um semeador de sonhos a quem continuarei fiel para sempre. A conferência foi também um pretexto para o meu luto. Porque a minha querida Ana era trineta do Francisco de Lemos Ramalho, que nunca usou o título de Conde de Condeixa, o tal que fugiu de casa aos 14 anos para servir no cavalaria 4, que lutou do lado miguelista, mas que, depois, renunciou, para voltar às armas com a Patuleia, à frente de 600 homens que armara e equipara. Também não aceitou ser Marquês de Pereira, título oferecido por D. Maria II a quem hospedou, juntamente com D. Fernando e o futuro D. Pedro V. E que dizer da carbonária, depois desta mistura de setembristas e legitimistas? Que a velha sociedade napolitana, surgida entre 1807 e 1810, contra a ocupação napoleónica, tinha a mesma explosividade de idênticas sociedades secretas portuguesas que resistiram a El-Rei Junot e que, na pequena pátria dos campos de Coimbra, se destacou o maçon José Bonifácio, em nome da liberdade portuguesa, para, depois, erguer o sonho da independência brasileira que foi a melhor maneira de se reproduzir Portugal à solta no lado de baixo do Equador. Porque houve sempre muitas carbonárias: a de 1848, ligada a José Estêvão (o filho deste, Luís de Magalhães, ministro dos progressistas, há-de casar com uma descendente de Francisco Lemos Ramalho, e terá destino paradoxal de crente, quando assume a legitimidade de líder político da Monarquia do Norte, em 1919, mas sempre em amiga relação com os republicanos, como o demonstrou a defesa que teve em tribunal de Basílio Teles); a de 1862, ligada ao Partido Regenerador de Coimbra, com o Padre António de Jesus Maria da Costa); ou a de Artur Duarte da Luz de Almeida, recriada em 1897, onde vai enfileirar António Maria da Silva que, nas suas memórias, nos desfaz o mistério de uma organização mobilizadora, porque, segundo as suas próprias palavras: muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo; e, para esses, era de capital importância a liturgia, principalmente para os mais humildes. Descansem, leitores, não vou reproduzir a conferência, nem registar o debate. Voltei à minha pequena pátria moçárabe dos campos de Coimbra, entre a serra e o mar, onde há sinais de uma república maior, a de Portugal a caminho do Sul, esse que lutou em Aljubarrota, que resistiu no cerco de Lisboa, que elegeu o rei nas Cortes de Coimbra e que a todos nos fez porto de partida para o navegar é preciso do abraço armilar. E não deixei de homenagear os meus avoengos, mais da patuleia do que da capitaleira carbonária, esses resistentes da Revolta do Grelo e da revolta de Cernache de 1936. Foi com eles que soletrei os sinais da terra prometida e dos planetas que nos dão esse além de um mundo sem fim, o da espiritualidade, mesmo quando herética e neopagã (veja-se o S. Mateus de Soure, a queima do Judas em Cernache ou as cavalhadas do Espírito Santo em Vila Pouca, mesmo quando apenas autorizadas no Santo António). Sobretudo, o valor do trabalho, de sol a sol e de lua em noites de rega, e o sentido do sagrado da propriedade humanizada do minifúndio que permitiu o individualismo e o familiarismo da casa, da horta e do pinhal, essa enraizada liberdade na comunidade viva das tradições. As minhas origens, de nobre linhagem plebeia, regeneraram-se nesta breve viagem ao sonho que me deu sentido de luta e obrigam-me a ser fiel à tribo e aos meus. Daí que, em plena comemoração do centenário da república, tenha continuado a proclamar o meu liberdadeirismo azul e branco, defensor da restauração da república… mas com a posterior eleição do rei. E o ambiente dos meus amigos, colegas e irmãos da assistência, maioritariamente antimonárquicos, apenas demonstrou como não posso ser, como realista antigo, anti-republicano. Até recordei o “Livro da Virtuosa Benfeitoria” do Infante D. Pedro, talvez o primeiro tratado político em português, o do ambiente da constituição política de 1385, que o grupo republicano da Biblioteca Pública do Porto editou…


Um espaço complexo demais para o “more geometrico” mental de um ministro dos estrangeiros de um governo socialista que já foi vice-presidente da associação europeia das democracias cristãs e que pretende o eclético do estar bem com Deus e com o Diabo naquele estático centrismo do ficar de cócoras perante a gestão das dependências, sem se afligir até com o fanatismo daqueles manipuladores de massas que mandam queimar as bandeiras medievais da cruz, como é a dinamarquesa, quase igual à do nosso D. Afonso Henriques. Portugal foi a aula que dei na segunda-feira sobre a matéria, quando tomou a palavra uma aluna maometana, de origem fula, vestida à Sara Tavares e explicando aos colegas católicos, agnósticos e ateus, que a tolerância não é uma sebenta de jurisprudência dos conceitos. E quando foi formulada a hipótese académica de um grande jornal de grande expansão poder publicar uma caricatura ofensiva de Nossa Senhora de Fátima, foi ver a fúria compreensiva dos outros crentes. Apenas lhes disse que tudo só poderia ser resolvido com o Código Penal aplicado pelo poder judicial e não com notas oficiosas do MNE. Até porque, em direito civilizado, a rotina da acção directa não é meio de defesa. Portugal talvez seja irmos todos à igreja/mesquita de Mértola fazer uma oração conjunta no mesmo espaço divino, em português, expresso por judeus, muçulmanos, cristãos e maçons, todos portugueses, na presença de um bispo cristão e com as beatas alentejanas benzendo-se quando o Corão era lido por um oficiante mometano em lusitano linguajar. Já assisti a uma cerimónia destas, que ajudei a organizar, sob a batuta da saudosa Helena Vaz da Silva. Aconselho o senhor ministro a ler mais Camões e Agostinho da Silva. E a perceber como na nossa mais recente guerra, o factor islâmico até foi nosso aliado, morrendo por aquilo que se decretava ser Portugal. Portugal nunca rimou com a pseudo-ortodoxia cartesiana do neo-dogmatismo pretensamente antidogmático. Alguma coisa está podre neste reino da nossa Dinamarca. Viva a bandeira afonsina que outros vão queimando com a gasolina cobarde que re-exportamos para as praças do ódio. Oxalá! E até amanhã se Deus quiser!

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