Hoje é o dia de Portugal, dito de Camões e das comunidades portuguesas, data que já foi dia da raça, quando a raça, antes de ser higienista e racista, ainda era III República Francesa, muito à maneira da positivista trilogia de Taine, fundadora do naturalismo sociologista do último quartel do século XIX. Quando, à direita e à esquerda, se aceitava a existência de um conjunto de caracteres biológicos transmitidos hereditariamente, porque as tradições, as crenças, os hábitos mentais e as instituições modelariam os indivíduos, tal como se ensaiava no eugenismo e se admitia nos criminologismos de Lombroso, antes de haver campos de concentração para judeus, japoneses, alemães, negros, ciganos, contra-revolucionários, aborígenes, fundamentalistas, párias ou comunistas. Por mim, herdeiro de uns mestiços mediterrânicos que chegaram a Portugal no século XIX e que aqui se juntaram a cristãos novos e velhos, fazendo acrescentar complexidade a essa aventura de genes do moçarabismo paleocristão, a que me orgulho de pertencer, recordo-me sempre de pôr a minha mão pretensamente branca ao lado de uma mão chinesa, em plena aula sobre a matéria, em pleno Extremo-Oriente, para reparar que os pretensos brancos eram os amarelos e que eu não passava de um pele vermelha, a quem os outros chamavam diabo. O conceito de nação varia conforme o tempo, o espaço e a unidade política que o pretende invocar. Na realidade, cada nacionalismo é sempre marcado pelos mais variados paradigmas, conforme as circunstâncias. Todos tendem para o futuro e todos tentam acreditar numa idade de ouro passada, procurando restaurar uns quaisquer anos de glória que teriam, outrora, acontecido. E lá vão falando no passado ou no presente de acordo com as conveniências dos fins, ora dizendo, de forma conformista, que a história é que faz a nação, ora replicando que é a nação que faz a história. De facto, o nacionalismo tanto pode invocar o passado, o regresso às origens com o respectivo culto pela tradição, como provocar um construtivismo progressista e reformador. Tanto pode iluminar conservadores como revolucionários; tanto pode ser liberal como autoritarista; tanto pode pugnar pelo centralismo como pela descentralização. Os fins de qualquer nation building justificam, com efeito, todos os meios e instrumentos ideológicos, pelo que, neste sentido, o romantismo nacionalista, neste sentido, também é, paradoxalmente, maquiavélico. Mesmo, a nível português, eis que, em nome do nacionalismo, tanto se defendeu o Portugal do Minho a Timor, pluricultural e pluri‑racial, como agora se defende um Portugal uniformemente cultural, sem minorias nacionais. O nacionalismo foi defendido por idealistas e racionalistas, por românticos e utilitaristas, por individualistas e culturalistas. Os franceses napoleónicos influenciaram o discurso nacionalista de Fichte; mas é também o romantismo alemão que vai, depois, dar alento ao nacionalismo místico francês; os portugueses nacionalistas provocaram os movimentos de libertação angolanos, tal como os romanos acirraram a identidade dos lusitanos e os jesuítas filipinos fomentaram as conspirações dos manuelinhos de Évora e coleccionaram argumentos que vão, depois, ser brandidos pelos juristas da restauração. O conceito de nação situa‑se, com efeito, na zona de fronteira entre a história e a poesia. Uma história concebida como o género literário mais próximo da ficção, como, noutro contexto, referia Armindo Monteiro, ou uma poesia mais filosófica que a história, conforme as palavras de Aristóteles. A nação é, pois, uma manifestação dessa terceira dimensão da sociabilidade. Mas porque é um sonho de futuro partilhado (Georges Burdeau), há tantos conceitos de nação quantos os sonhos desses diversos povos nacionais. E mesmo cada povo nacional vai variando de sonho conforme os respectivos instintos de legítima defesa. Ora, é nessa variedade, feita à imagem e semelhança da própria personalidade humana, que se encontra o essencial da respectiva universalidade. Com efeito, só existe uma nação quando um qualquer povo atinge a dimensão de entidade impossível de repetir‑se. É que, como assinala François Perroux, os espíritos nacionais distinguem‑se uns dos outros conforme a representação que fazem de si mesmos. O mito, como dizia o nosso Fernando Pessoa, é um nada que é tudo. Como cada nação é sempre um grupo humano mais a sua circunstância, que tanto encara mitologicamente o respectivo nascimento e crescimento, como visiona poeticamente o seu futuro, eis que se torna absolutamente impossível capturar racionalmente um conceito geral e abstracto de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo. Os ensaios jurídicos, politológicos e filosóficos que tentam aprisionar o conceito de nação são, portanto, normalmente inconsequentes quanto à obtenção de um conceito intemporal e universal de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo. Cada nação é sempre um determinado grupo humano na sua circunstância política, onde confluem as três unidades do tempo em dialéctica, ora se encarando as origens de forma mitológica, ora perspectivando-se o futuro, de forma sonhadora. Torna-se assim impossível que os textos jurídicos sejam capazes de capturar a fluidez do nacional, dado que este exige sempre uma porta aberta para o imaginário. Como a este respeito, observava Harold Laski, o nacionalismo é uma concepção subjectiva que escapa a qualquer definição concebida em termos científicos.