Escolas que mais perderam com este governo: faculdades de direito, mesmo que a Teresa Morais tenha “uma edição do Gabinete do Ministro da República Para a Região Autónoma dos Açores (2005) sobre violência doméstica” (do currículo divulgado), para além de “várias obras da área do Direito” (sic). Confirma-se a tese de certo ministro sobre a eventual não cientificidade da antiga grande área.
Distraído, não reparei, em pormenor, nesta de Carlos Fragateiro andar a ser processado. Mas ao ler a entrevista que anexo, apenas apetece comentar: a questão não é surrealista, é estúpida! Como se as leis não fossem juízos de valor sobre conflitos de interesses e a liberdade criativa não merecesse a prioridade desta hierarquia simbólica.
Acabei de ler o programa de governo. Um espaço de transacção entre o programa Catroga, as ideias pessoais de alguns ministros e a falta de ideias consolidadas dos dois partidos da coligação. Nalguns casos, tornam-se impenetráveis as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados e metade do texto poderia ser subscrito pelos anteriores governantes socráticos.
Faltam ideias claras de reformismo, sendo marcante a cedência ao politicamente correcto da velha pilotagem automática, dando esperança às forças da inércia, numa confusão de estilos que revela sincretismo de fichas e certas banalidades discursivas. Será um texto devorável pelo contexto e onde o estilo dos ministeriáveis e a ditadura das circunstâncias acabará por ser predominante.
Quando eu era um miúdo, cheguei a ser especialista em programas de governo, nomeadamente nos presidenciais. Sei como se fazem essas coisas com assessores e adjuntos, como eu fui. Foi e é um erro, esse de programar discursos antes de fazer coisas. Porque, como dizia Camões, vale mais experimentá-lo que julgá-lo, mas que o julgue quem não pode experimentá-lo.
Se um sujeito sempre foi conformista face ao micro-situacionismo, é previsível que continue a ser conservador do que está, quando é elevado às alturas do macro-ministerialismo. Daí o telefonema que recebi de um anterior ministro socrático, rindo-se a bandeiras despregadas: “como vês, ainda continuo no poder, pelo menos no mental, nem estas quixotadas prometidas conseguem livrar-se da minha pesada herança”
Depois de ler o “download”, decidi reler outros programas de outras eras. Por exemplo, o da “Seara Nova” de 1921. Basta comparar. Até para me penitenciar face ao que, durante muito tempo, a minha ignorância pouco douta, julgou de Sérgio. Quando ainda não tinha compreendido o que devia ser um reformador à Descartes sem cartesianismo.
Passei depois para a revista Homens Livres – Livres da Finança & dos Partido: “Anima-nos o mesmo fogo sagrado contra a barbaria dos tempos presentes, – é nosso comum mandamento desafrontar o claro sorriso de Minerva das fumaradas insolentes de Vulcano…A esse brado respondemos sempre a tudo que seja por Portugal e a que não falte o selo dignificador da inteligência”.
Governo quer mais celeridade nos processos relativos a direitos da personalidade. A privatização de um dos canais públicos a ser concretizada oportunamente e em modelo a definir face às condições de mercado. Será apresentado “um novo PRACE que será objecto de uma execução rigorosa e ambiciosa”. Eis algumas das novidades, segundo as parangonas. Dá para muito e para o seu contrário.
A retórica ratoeira: “Cada ministro é responsável pelo estrito cumprimento dos limites orçamentais fixados para o seu ministério. Eventuais desvios serão compensados pelo próprio dentro do mesmo exercício”. O próprio não é o ministro, é o ministério…
O governo quer “reduzir substancialmente” o “Estado paralelo”, ou seja, a reavaliação dos institutos, fundações, entidades públicas empresariais, empresas públicas ou mistas ao nível da Administração Regional e Local. Mas num minstério fica a administração pública, no outro, a “reforma administrativa”, assim mantendo o duplo Estado, o dos macros e o dos micros, como se o pagante não fosse o mesmo.
Um velho amigo que agora voltou ao situacionismo e ficou assim aliviado, ainda há pouco lamentava aquilo que qualificava como “radical irredentismo”. Gostaria mesmo de não ter razão neste meu desassossego com os pés no chão, mas não me conformo com os conservadores do que está e que estarão. Prefiro seguir meu signo de pensar ser dizer não, principalmente depois de ler a confirmação do rotativismo.
O estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais e grande demais. Pequeno demais para os nossos grandes problemas. Grande demais para os pequenos problemas do quotidiano, quando os poderosos, fracos perante os grandes, se vingam nos pequeninos. Apenas estou a glosar Daniel Bell e a rir-me do espectáculo e da retórica do estadão.
Bastava uma dúzia de decretos à Mouzinho da Silveira para refundar o Estado onde ele faz falta e extingui-lo no que ele é inútil. E somando reforço com abolição, a conta seria bem menos mesada. Por outras palavras, não chega liberalizar, impõe-se a libertação. Até dos chamados liberalizadores de fachada.
Qualquer especialista no estudo dos novos métodos de análise do conteúdo que pegasse no programa de governo, poderia chegar a conclusões interessantes sobre o conflito de discursos ou a banalidade de alguns “sound bites”. Comecei por espreitar a questão da corrupção, que aparece cinco vezes…
Em quatro das cinco vezes, a corrupção aparece sob os auspícios da palavra “combate”, banalizando os dois termos e gerando contradições, porque uma vezes é posta ao nível do combate “a posições dominantes”, outras vezes aos “conflitos de interesses”, para atingir o seu auge como secção da política desportiva: “erradicar fenómenos como a corrupção, a violência, a dopagem, a intolerância, o racismo e a xenofobia”.
Dez das catorze vezes em que aparece a palavra universidade, ela é precedida ou está dependente da palavra empresa, nunca rimando com humanismo…
A palavra combate aparece 38 vezes… Luta, só uma vez, e contra a violência doméstica. Nação e pátria, nunca. República, só para compromissos internacionais, uma vez. Comunidade, 26 vezes, mas sem nunca ter o sentido que lhe deu o Infante D. Pedro…
Já a palavra empresa aparece cento e vinte vezes… Por outras palavras, é, com efeito, a medida de todas as coisas. Isto é, gastou-se pelo uso e perdeu-se pelo mau uso da falta de ideia de obra.
Por isso partilhei esta nota de Leonor Martins de Carvalho, do avô:
“Confesso-me inocente da culpa de haver nascido com alguma tendência para endireitar o mundo, em cada caso ouvindo pessoas discretas dizerem-me que era torta a vara da minha justiça. Então olhava para ela e parecia-me direita… quem serve ao comum, não serve a nenhum”. Leiam tudo e confirmem que só é novo aquilo que se esqueceu.
Em presença deste sumário de inquietações, mudanças e perseguições, não posso dizer que fiz uma carreira oficial, digna de apresentar-se como exemplo a seguir por quem tenha ambições ou aspire à satisfação de as ver realizadas.