Anarquia

 

 

Aos meus avós e primos anarquistas

Quoique très ami de l’ordre, je suis anarchiste.

Proudhon

 

por José Adelino Maltez

 

Anarquia vem do fr. anarchie e este, do grego anarchia. A palavra foi introduzida através das traduções latinas de Aristóteles. Em sentido etimológico, é o mesmo que ausência de chefe, porque, em grego, quer dizer an (privação de) mais arche (poder, ordem). Se a inicial teoria anarquista terá sido elaborada por Godwin, é Proudhon, em 1840, quem, primeiro, se qualifica como tal, pela defesa de uma anarquia positiva baseada no renascimento da vida local. Gera-se, a partir de então, um movimento social e político revolucionário que, durante a vigência da I Internacional, entre 1864 e 1872, rivaliza com o marxismo.

O movimento é particularmente assumido por autores russos. A ala de Bakunine defende a utilização da violência para a destruição do capitalismo e do Estado. A de Kropotkine opta por uma via de cooperação voluntária, assumindo um anarquismo comunalista, mutualista e solidarista, defensor de uma sociedade baseada na lei da solidariedade e da ajuda mútua, ou entreajuda, porque o homem tem predisposição natural para ela. Assim, considera que a comuna tem de ser proprietária de todos os meios de produção, em nome de uma política norteada por ideias morais, por aquilo que qualifica como o progresso moral da nossa raça. Como confessa, na Sibéria, perdi toda a fé na disciplina do Estado. Assume-se também contra o livre-cambismo, que terá dividido a humanidade em fábricas nacionais, cada uma com a sua especialidade, saudando a nova corrente que leva as nações civilizadas a ensaiar no seu interior todas as indústrias e a encontrar vantagens em fabricar tudo o que dantes recebiam dos restantes países. Insurge-se também contra o darwinismo, que tão marcantemente influenciou o marxismo russo, criticando especialmente a teoria da luta pela vida, apelando, em alternativa, à cooperação e ao auto-governo da solidariedade espontânea. Na sua obra é marcante a influência de Proudhon. Trata-se de um anarquismo que se volta fundamentalmente contra o centralismo tentando delinear uma espécie de anarco-comunalismo.

É evidente que não me considero anarquista, embora não rejeite a mestria de Proudhon, reconheça a importância do anarco-sindicalismo, particularmente vibrante durante a I República, nomeadamente com João Evangelista Campos Lima, Alexandre Vieira ou Manuel Joaquim de Sousa e não possa esquecer as coincidências afectivas que mantive com herdeiros do anarquismo místico, nomeadamente Agostinho da Silva.

Com efeito, não posso deixar de comungar com todos aqueles que, reagindo contra o absolutismo, tentaram, pela via consensualista, institucionalizar formas de controlo do poder, estabelecendo travões ao mecanismo autofágico do Leviathan soberanista. Porque no soberanismo absolutista, o poder supremo não só não admite o controlo fáctico, da divisão e separação de poderes, como o próprio controlo normativo, nomeadamente pela não admissão do conceito de abuso do poder, esse poder supremo que, em nome de um terrorismo da razão, foi a fonte primordial do próprio terrorismo de Estado.

Daí subscrever Alberto Camus e as fortes palavras que no próprio ano do meu nascimento, em O Homem Revoltado, deixou contra o idealismo alemão, em defesa do pensamento do meio-dia que é o espírito mediterrânico, onde a inteligência é irmã da vigorosa luz, a comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade reflectida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas, em suma o equilíbrio contra o desequilíbrio. Porque, na ideologia alemã,  culminam vinte séculos de luta vã, em primeiro lugar, contra a natureza em nome de um deus histórico e em seguida em nome da história divinizada. Logo, insurge-se contra a ideia de revolução e defende a atitude da revolta, do homem que resiste à injustiça para melhorar a sorte dos seus semelhantes.

Por outras palavras, assumo a herança libertacionista e individualista da criatividade, de ser o homem a fazer a história, em vez de ser o processo histórico, ou a ideologia a fazer o homem, mesmo que o homem faça a história sem saber que história vai fazendo, como assinalava Alexis de Tocqueville.

Acresce que raramente se refere que a nossa herança anarquista restaura a palavra política mais autêntica, a de comundidade, fazendo-a rimar com liberdade. Porque as comunidades  têm forte poder normativo (símbolos, valores e sentimentos), embora pouco poder coercivo (meios de violência) e utilitário (activos económicos e capacidades técnicas e administrativas).

Por isso é que interessam menos os nomes e mais as coisas nomeadas, para quem gosta de recordar Alexandre Herculano de Carvalho Araújo (1810-1877), na véspera de morrer, em Fevereiro de 1877, numa carta dirigida a Joaquim Pedro de Oliveira Martins, quando se declarava um liberdadeiro impedernido no pecado, considerando que o socialista vê no indivíduo a cousa da sociedade; o liberal vê na sociedade a cousa do indivíduo. Fim para o socialista, ela não é para o liberal senão um meio, criação do indivíduo que a precedeu, que lhe estampou o seu selo…a liberdade limita-se apenas pela liberdade, o direito pelo direito, considerando-se entalado entre a tirania em nome do céu e a tirania em nome do algarismo e rejeitando a solução do socialismo chamada monopólio, preferindo contra os abusos da liberdade mandar patrulhar a região do crédito por dois agentes de polícia chamados da prisão celular e presídio d’África, porque esses banquistas daí são uma alcateia de tratantes e burlões e que o Governo quer o monopólio da coisa para uns amigos seus de Lisboa que vão tratando da vida.

A única maneira de superarmos o actual situacionismo está na emergência de uma alternativa que aposte numa nova atitude político-cultural e ao serviço da clássica procura dos valores do melhor regime e da boa sociedade, sem que se continue a entoar a ladainha da repristinação, dominada pelos reciclados homens de sucesso do neo-riquismo, essa imagem que leva os incautos a confundir o liberalismo com o negocismo de gente com fax para o off shore; e o pluralismo dos legítimos grupos de interesse e de pressão, com tráfego de influências. Não sou liberalista, sou liberdadeiro. Não sou libertário, sou libertacionista. Mesmo que me fique o excesso de uma doutrina imperfeita. Os novos-velhos clérigos da nossa intelligentzia e da nossa nomenklatura nunca passaram os olhos pela Filozofia de Príncipes, de Bento José Souza Farinha, publicada três anos antes de se desencadear a Revolução francesa. Jamais compreenderam Silvestre Pinheiro Ferreira. Não ouviram falar nos teóricos de The Federalist, traduzidos por José da Gama e Castro. Não registaram os discursos políticos de Luís Mousinho de Albuquerque. Não conhecem os aforismos de Alberto António de Morais Carvalho (1801-1878). Não sabem da silenciada tese doutoral de António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922), Princípios e Questões de Philosophia Política. Condições Scientificas do Direito de Suffragio, de 1878, por acaso a primeira dissertação da politologia contemporânea deste nosso país. Tendo apenas uma vaga referência sobre Luís Cabral de Moncada, não entendem a angústia do radical democrata antijacobino que foi Raul Proença. Por mim, prefiro seguir a velha lição liberal de Luís Mousinho de Albuquerque, para quem o princípio único de toda a Política é a Moral. Finanças, interesses materiais, formas de Governo, tudo é adventício, tudo é subordinado a esse princípio único. Tudo são entidades secundárias, tudo são acessórios do edifício da existência social. O valor fundamental é a independência portuguesa e o carácter nacional, importando servir o Estado…o Estado, a República…este dever todo moral, todo patriótico. Seguindo tal exemplo, importa ser excêntrico a todas as parcialidades, a todas as exclusões, a todas as intolerâncias, para poder ser concêntrico com a nação, para que a nação seja governada para a nação e pela nação. Quer ser governada no interesse de todos, e não no interesse de alguns; quer ser governada pela influência colectiva de todos, e não pela influência exclusiva de uma parcialidade; quer o concurso de todas as virtudes, de todos os talentos, de todas as probidades para presidir aos seus destinos, sem distinção de cores, sem exclusões partidárias. Por isso, há que assumir uma bandeira nacional, que seja excêntrica a todas as paixões, a todos os ódios, a todas as vinganças, em nome do desejo do povo que não aspira à governança, mas sim à felicidade. Por um governo representativo, não em nome, mas em realidade. Por um regime, verdadeiro e sincero, para que a nação seja governada com justiça, com verdade e com amor; porque mal dos povos que não são governados com amor, mal das nações que são regidas sem sinceridade. Podem as nações ter a faculdade de renascer pela reacção contra a força; mas da gangrena moral ninguém ressurge, não é essa gangrena uma das fermentações tumultuosas que transformam uns produtos em outros; é a fermentação pútrida, que destrói radicalmente o ser orgânico, que desagrega, que dispersa os átomos componentes.

 

 

José Adelino Maltez

 

Mas a primária e permanecente forma anarquista é a filosófica, como a do escritor russo Lev Tolstoi, invocando o pacifismo da lei do amor do Sermão da Montanha, contra o estadualismo, entendido como a violência organizada, semente donde brota o anarco-pacifismo de Gandhi, visando o estabelecimento de uma revolução não-violenta.

 

 

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