DESCODIFICANDO A FALSA IDEIA CLARA DE SEGURANÇA NACIONAL
Por José Adelino Maltez
Os primeiros teóricos que autonomizaram o estudo das relações internacionais foram os que, preocupados com o fenómeno guerra, tentaram elevar polemologia a uma perspectiva tão absorvente que a própria guerra passou a ser vista como a continuação da política por outros meios, e a política, a ser entendida como a continuação da guerra, também por outros meios. Não faltou sequer a transformação dos Estados, como homens em ponto grande, em luta pela vida, mas onde só alguns poderiam atingir o nível da auto-suficiência, capaz de os transformar em Estados Normais (List, 1841).
No princípio esteve, sem dúvida, Karl von Clausewitz (1780-1831), o estrategista prussiano, director da Academia Militar de Berlim desde 1818, criador daquele conceito de guerra total que marca a actuação do Segundo Reich na guerra de 1914-1918, sob a direcção de Hindenburg e Ludendorff. A bíblia do modelo, Vom Kriege, foi por ele escrita entre 1818 e 1831, mas apenas publicada postumamente, em 1832.
Celebrizado pelo facto de considerar a política como uma espécie de guerra sem efusão de sangue, logo perspectiva a guerra como uma simples continuação da política dos Estados, por outros meios. Porque a guerra não é senão uma parte das relações políticas e, por conseguinte, não é qualquer coisa que seja independente das mesmas … A guerra não é senão a continuação das relações políticas pelo recurso a outros meios. É o acto de violência cujo fim é forçar o adversário a executar a nossa vontade.
Mas, como comenta Gustav Radbruch, a citação encontra, com efeito o seu fundamento, não tanto no facto de ser a política a inspiradora da guerra, como no de ser a guerra a inspiradora da política (1961, II, p. 172).
Assim, o estrategista fala na estranha trindade da guerra. O seu elemento é a violência original. O seu modo de ser é o jogo (a probabilidade, o acaso). O seu espírito é a política. E tudo foi suscitado pelos efeitos externos da Revolução francesa e de Bonaparte, esse deus da guerra, quando o sujeito político passou a ser o povo e a guerra absoluta, uma guerra popular. Porque, com a nação em armas, a guerra identificou-se com o Estado em movimento (Laski), fundado na soberania do povo. As respectivas obras são traduzidas em francês depois da derrota de 1870. Raymond Aron dedica-lhe o seu Penser la Guerre. Clausewitz, de 1976.
Aliás, não é por acaso que os departamentos estatais, agora ditos da defesa, começaram como ministérios da guerra. De facto, a racionalização que os sustenta, a estratégia, vai buscar o nome ao étimo grego de general ou chefe militar, o dito estratego, a soma de stratos (exército) com agein (conduzir).
E também não é por coincidência que em Portugal damos o nome constitucional de defesa nacional ao que, noutros países, tem a designação de estratégia nacional (caso dos Estados Unidos da América), grande estratégia (caso inglês) ou estratégia total (teses francesas do General André Beaufre).
Várias têm sido as tentativas portuguesas para a definição desse conceito complexo, feito de palavras analógicas, que Clausewitz começou por definir como a arte de utilizar as batalhas como um meio para se atingir o fim da guerra. Para Abel Cabral Couto, a estratégia tem por fim desenvolver e utilizar, com o máximo rendimento possível, as forças morais e materiais de um Estado ou coligação, com vista a atingir os objectivos fixados pela Política e que suscitam ou podem suscitar, a hostilidade de uma outra vontade política.
Para Quesada de Andrade, é a arte e a ciência que se ocupa da escolha, preparação e emprego dos factores do poder nacional ( expressão integrada de todos os recursos da Nação – políticos, económicos, psicológicos e militares ), em tempo de paz , de tensão ou de guerra, para a realização dos objectivos definidos pela Política.
Por seu lado, Coutinho Lanhoso, considera-a como o processo de como fazer para realizar o que fazer (objectivos fixados pela Política), a despeito dos antagonismos, onde existe um potencial estratégico ou força total (o conjunto de forças materiais – ou tangíveis- e morais – ou intangíveis – que um estado ou uma coligação de Estados tem à sua disposição, como base de apoio da sua estratégia
Finalmente, para Virgílio de Carvalho, ela é a ciência e a arte de mobilizar o poder material e anímico dos países, e de o utilizar, por forma a realizar objectivos, vencendo a oposição de antagonismos.
Estas definições, constantes dos manuais dos cursos de defesa nacional, do Instituto de Defesa Nacional, que, com muito proveito, frequentámos em 1987, são tributárias dos esforços de alguns autores do behaviorismo sistémico que tentaram, de forma newtoniana, reduzir o poder de uma determinada unidade política a uma fórmula matemática. Para Ray S. Cline (1975 e 1980), antigo adjunto do director da CIA, por exemplo, o poder internacional poderia medir-se através da seguinte fórmula:
Pp= (C+E+M) x (S+W)
P= poder apercebido (perceived power)
C= massa crítica (critical mass): população e território
E= economic capability
M= military capability
S= strategic purpose
W= will to pursue national strategy
Assim, o poder apercebido[Pp] é igual à massa crítica – função do território e da população [C] – mais capacidade económica [E], mais capacidade militar [M], vezes a coerência e adequação da estratégia nacional [S] mais a vontade nacional [W], em função quer da vontade anímica da população, quer da sua adesão à estratégia nacional concebida pelo poder estabelecido.
Os três primeiros elementos seriam os elementos tangíveis (tangible elements) que poderiam ser objectivamente quantificados. Os dois últimos já seriam intangíveis, e só poderiam ser subjectivamente quantificados, embora assentassem em bases tangíveis.
Outras fórmulas costumam também ser invocadas, como a de Nicholas J. Spykman (1893-1943), onde a defesa equivale ao potencial dinâmico:
→
V= Q x1 ED
Aqui, Q é o potencial mássico (o somatório das forças materiais) e → é o factor dinâmico. Na mesma fórmula E representa a resistência do meio e D, a distância a que o potencial mássico se encontra do ponto de aplicação. Já V é o potencial num determinado ponto e numa situação concreta.
Por seu lado, o General A. Beaufre utiliza a fórmula
V= KYF
Aqui, as forças morais são representadas por Y, F são as forças materiais e K, as circunstâncias do meio.
Também Richard Nixon ensaiou o seu modelo:
PN= (PH + Recursos) x Determinação.
Por seu lado, para Michael Handel o Poder é igual ao Poder próprio (condições geográficas, condições materiais, recursos humanos, capacidade estrutural), mais o Poder derivado de fontes externas (alianças formais ou informais).
Cabral Couto, procurando sincretizar este modelos, propõe a seguinte:
Poder= F x Y
F= Recursos militares, económicos, humanos, morais, etc.
Y= Auto-imagem + opinião dos outros).
Com efeito, a definição de estratégia nacional, está, assim dependente da noção de poder nacional. Segundo a escola sul-americana, ele é constituído por factores de toda a espécie; compreende todas as capacidades e disponibilidades do Estado, isto é, os seus recursos humanos, naturais, políticos, económicos, sócio-psicológicos e militares. É um conjunto de poderes que abarca todo o campo de acção do Estado, donde se define a estratégia nacional como a arte de preparar e de aplicar o Poder Nacional para obter ou manter objectivos fixados pela Política Nacional.
Nesta base, François Martins define o Poder Nacional como a capacidade que um Estado Nação possui para determinar o comportamento de outra unidade política ou impedir que por outra seja determinado o seu, abrange todo o conjunto de meios e recursos (‘forças’) de que esse Estado-nação possa dispor numa determinada situação concreta para aquele efeito (1984).
A este respeito, apenas diremos, como já proclamavam os clássicos, que omnis definitio periculosa est, dado traduzir aquele essencialismo metodológico que, segundo Karl Popper significa a tentativa de resolver um problema factual com referência a definições, implicando a construção de pretensos axiomas, a partir dos quais, por dedução, seria possível explicar todas as coisas desse universo e estabelecer um sistema hierarquizado de conceitos, com as consequentes derivas normativas. Pensamos, sobretudo, nos manuais de planejamento estratégico, à maneira da Escola Superior de Guerra (ESG) do Brasil que tanto influenciaram o estrategismo português durante a Guerra Fria, por força dos modelos provindos do National Security Act norte-americano, de 1947.
Veja-se, a propósito, o Método para o Planejamento da Acção Política da Escola Superior de Guerra do Brasil, onde se estabelece que o que é estratégia para um escalão dará origem à política para o escalão imediatamente inferior. Para este modelo, o vértice do sistema está no estabelecimento dos objectivos nacionais permanentes (ONP), os propósitos da associação nacional e, portanto, do consenso – o mais amplo possível – de seus membros. Ora, para a consecução desses fins definidos pela Política Nacional, emprega-se como meio o Poder Nacional. A maneira como se dará esse emprego constitui a Estratégia Nacional e ao Governo como delegado da Nação, caberá precisar essa opção estratégica nacional, estabelecendo o Conceito Estratégico Nacional“. Depois, haverá necessidades básicas, que são as carências que devem ser atendidas para que se concretize a conquista ou manutenção dos ONP, bem como o levantamento dos óbices, a determinação dos obstáculos que dificultam ou poderão dificultar o atendimento das necessidades básicas, a fim de se poder avaliar o Poder Nacional e definir os Objectivos Nacionais Atuais (ONA) que são de duas origens: os que visam atender directamente às Necessidades Básicas e os que visam ao preparo do Poder Nacional, verificado ser este insuficiente para aquele fim.
Este trumanismo, ao acentuar a variante intelligence nos domínios da defesa, veio introduzir os elementos intangíveis na estrutura da defesa militar, possibilitando a degenerescência do Estado de Segurança Nacional, marcado pelo fantasma da guerra subversiva, que teve os seus epígonos nos autoritarismos sul-americanos dos anos sessenta e setenta e nos anos do fim do regime português da Constituição de 1933[1].
A intelligence, se nasceu como resposta à propaganda nazi da totaler Krieg, veio a desenvolver-se como processo de resposta à estratégia indirecta da Guerra Fria. Apenas não previu a hipótese de subversão a partir do aparelho do Estado e da cadeia de comando político-militar, como ocorreu com o golpe de 25 de Abril de 1974
Nestes domínios, é impossível dar uma fórmula matemática à variante imaginação (aquilo que Spykman refere como espírito nacional), que pode levar o pequeno David a vencer o gigantesco Golias, desmentindo, assim, a inevitabilidade do púcaro de barro poder ser esmagado no choque com a panela de ferro. As potencialidades, numa perspectiva dinâmica, podem transformar-se em vulnerabilidades, isto é, o excesso de poder, através de uma espiral concentracionária, pode levar ao próprio fim do centro do poder, como aconteceu com a União Soviética.
Com efeito, os Davids têm sempre à sua disposição uma espécie de poder funcional. Porque, como salienta o general André Beaufre, a estratégia não deve ser uma doutrina única, mas um método de pensamento que permite classificar e hierarquizar os acontecimentos e, depois, escolher os processos mais eficazes. A cada situação corresponde uma estratégia particular; qualquer estratégia deve ser a melhor numa das conjunturas possíveis e detestável noutras conjunturas. Assim, a estratégia é arte da dialéctica das vontades que utiliza a força para resolver o respectivo conflito, onde a decisão é um acontecimento de ordem psicológica que se pretende produzir no adversário: convencê-lo de que desencadear ou prosseguir a luta é inútil (1965, pp. 16-17).
A estratégia, como todos os globalismos que pretendem relacionar forças com ideias, tem, pois, a ver com o conceito de poder entendido à maneira de Thomas Hobbes, com os meios de obter qualquer bem aparente futuro, ou, como diz Bertrand Russell, com o conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados. Participa, assim, no jogo da constelação de poderes, que inclui forças, influências, contrapoderes, micropoderes e o próprio poder dos sem poder (cfr. Maltez, 1996, pp. 114 ss.).
O que neste ponto temos de reconhecer é que urge estabelecer uma estratégia fundada numa ciência portuguesa da estratégia, que trate de nacionalizar conceitos importados da América do Norte, do Reino Unido, do Brasil e da França, nos fulgores da Guerra Fria, e da guerra subversiva que dentro daquela vivemos, aproximando-se tanto de uma visão própria das nossas relações internacionais como de uma endogeneização da nossa teoria política.
No caso português, outras vulnerabilidades importa referir: a insuficiência da nossa teoria (sobretudo, a não existência de uma resposta coerente face à ideologia anti-ideológica da modernização e do desenvolvimento, que aparece embrulhada nas teses do fim da história); a incapacidade da nossa educação; a fragilidade da nossa economia (porque não se cura o económico senão com o económico, mas não só com o económico e porque somos também a única economia ocidental – da UE e da OCDE – que não dispõe de uma única multinacional.
A inevitável e desejável internacionalização da nossa economia, através da total inserção no processo ocidental de troca e livre circulação de bens, serviços e capitais, significa que já não podemos ter a ilusão autárcica de vivermos com aquilo que produzimos, como era timbre do nacionalismo económico. Porque já estamos quase dependentes do exterior no plano agro-alimentar, na produção de bens de equipamento e na energia, o nosso equilíbrio passou a viver segundo o ritmo do constante jogo das grandes negociações internacionais, nomeadamente quando a uma crise bolsista ou a uma alteração drástica dos preços de determinados bens essenciais. Isto é, no plano da economia, perdemos as alavancas fundamentais da independência, sendo apenas salvaguardados pela circunstância de estamos diluídos na zona do euro.
Isto é, importa aproximar a estratégia da teoria das relações internacionais e da ciência política, mas também fazer com que estas se enriqueçam com o contributo da estratégia. Mais do que isso: importa fazer embrenhar a estratégia da metapolítica, para que esta possa compreender a zona dos valores intangíveis, que constituem sempre o seu factor dinâmico.
Como acaba por concluir François Martins, não há defesa nacional sem que haja vontade de defesa, e de nada serve organizar e preparar a defesa se essa vontade não estiver assegurada. A vontade colectiva de defesa passa claramente pelo patriotismo. Se não há dedicação pela realidade social substanciada na Nação e politicamente organizada e representada pelo Estado, como pode haver disposição para aceitar os sacrifícios, em dinheiro, em esforço, ou em vidas, que a sua defesa necessariamente impõe? (1984).
Acontece apenas que quando as guerras, enquanto continuação da política por outros meios, enquanto guerras dos povos (Ludendorff, 1937, p.22) passaram a guerras civis, regionais ou mundiais, a tensão dialéctica começou a fazer-se entre pólos complexos. Isto é, a guerra deixou de ser mero confronto entre o que está cá dentro e o que pode vir de fora, entre o amigo (Freund) e o inimigo (Feind), e passou a polemizar-se entre o que está cá dentro e é a favor do que está cá dentro e um outro pólo que inclui o próprio estrangeiro de dentro ou quinta coluna.
A este respeito, basta assinalar que tanto há agressões externas como agressões internas exteriormente fomentadas. E estas últimas tanto podem visar o simples aparelho de poder instituído (caso do chamado golpe de Estado), como o próprio Estado-Comunidade (a guerra revolucionária ou subversiva, inserida, ou não, num processo de agressão externa).
Com efeito, todas as guerras contemporâneas tendem a transformar-se em guerras civis ideológicas, onde as guerras propriamente ditas são apenas um capítulo de uma guerra mais vasta, que também inclui a longa fase das guerras frias, com as inevitáveis agressões ideológicas e as consequentes estratégias indirectas.
Para Clausewitz, por exemplo, a política externa era mais importante do que a guerra: a guerra não é apenas um acto político, mas também um elemento, uma continuação das relações políticas, um prosseguimento destas por outros meios é a própria política que troca a pena pela espada.
Nesta senda, Ludendorff considera que a guerra é a suprema expressão da vontade da vida racial. Eis porque a política deve servir a guerra. Esta vontade anímica, esta alma do povo do mesmo general alemão resultaria da comunidade consciente de raça e de experiência racial de Deus, sendo equivalente à voz do sangue e tendo a interpretá-la o Estado, como organismo racial, segundo a expressão de Adolf Hitler (1889-1945). Mas nunca é demais salientar que nem esta raça tem a ver com a raça do nacionalismo místico francês adoptada por Teixeira de Pascoaes (1877-1952), nem esta alma tem a ver com o Volksgeist de Savigny (1779-1861) e da Escola Histórica do Direito, onde o povo é entendido como um ser vivo marcado por forças interiores e silenciosas e gerador da consciência ou do espírito popular.
Era a consagração da tese do Estado-Força, onde o próprio Marx se inspira quando observa que a guerra é militar em última instância. A sua sorte decide-se, antes de tudo, nas frentes da guerra económica e psicológica.
Teses que tanto levaram Lenine a considerar que a política é a continuação da guerra, como foram assimiladas por certas doutrinas ocidentais do realismo político que apostaram na derrota do adversário comunista pelas vias da economia e da informação.
De qualquer maneira, eis que a própria paz se transformou numa espécie de continuação da guerra por outros meios. Na verdade, os reflexos condicionados da guerra global levaram a que todo o homem passasse a ser uma guerra civil (Jean Lartéguy), dado o desenvolvimento de processos como a guerra psicológica (psywar) e a guerra económica (economic warfare)
Coisa que o nosso Padre António Vieira já tinha antevisto muito antes do General Beaufre ter cunhado a expressão estratégia total, quando considerava a existência de uma causa comum, que toca a todos em particular e no mais particular de cada um, porque a mais perigosa consequência da guerra e a que mais se deve recear nas batalhas é a opinião. Na perda de uma batalha arrisca-se um exército; na perda da opinião arrisca-se um reino (Sermão pelo Bom Sucesso das Nossas Armas, de 1645).
Isto é, a estratégia deixou de ser, como em Clausewitz, o emprego da batalha na guerra e passou a ser defesa nacional, estratégia total, grande estratégia ou estratégia nacional. Por outras palavras, tanto fugiu da alçada dos militares ou da política externa, como passou a ser grande política, ao mais alto nível de valores e ao mais alto nível de decisões.
Para além da simples soma da estratégia directa com a estratégia indirecta, eis que, com a Guerra Fria que se traduziu numa espécie de paz armada, a paz e a guerra deixaram de ter fronteiras. Mais do que isso, segundo Fernando Carvalho Rodrigues, até ao surgimento da SDI, as forças em conflito trocavam entre si preponderantemente massa e energia. A partir da SDI as trocas passaram a ser de energia e informação. Portanto, manipular de forma matematicamente calculada a informação, eis onde está a guerra. camuflar, dissimular, criar a ignorância para ganhar a surpresa, e então agir com tremenda energia, rapidez e precisão (1990).
Neste sentido global, a guerra também passou a ser uma espécie de jogos de guerra, um pouco como nos duelos dos torneios medievais, pelo que, mais do que nunca, o se queres a paz, se queres evitar a guerra, prepara-te para a guerra, tornou a ser o essencial da própria guerra, tanto antes de se desencadear guerra, como durante, e depois, do desenrolar das operações da mesma guerra.
E será sempre assim desde que entendamos a paz na óptica da balança do poder, a paz como simples estado a que chegaram os Estados, essa ilusão de estática num mundo que é essencialmente movimento, esse nem paz nem guerra de uma balança sem fulcro e sem fiel, onde a espada que tenta corrigir os desequilíbrios já não é sustentada pela deusa Justiça, tenha, ou não, os olhos vendados.
Do mesmo modo, é ilusório dar à paz o nome de um desenvolvimento identificado com o crescimento, o qual apenas é para cima, em termos estatísticos, e não para dentro, em termos humanos. Porque tal desenvolvimento é concorrência, competição, lei do mais forte, sucesso, uma luta pela vida, onde a vida é considerada luta, ambição do homem de sucesso num movimento circular, que é retorno da violência sobre si mesma.
O homem só se contém quando sublima a sua violência pelo transcendente, por aquele transcendente situado que toque na sua autonomia e na sua interioridade. Um transcendente que, em termos de razão, se chama direito; que, em termos de Deus, se chama religião; e a que, em termos de simbolismo, damos o imperfeito nome de valores. E a política é, precisamente, o tal processo global que faz a troca dialéctica desse processo humanizante – do indivíduo feito pessoa, do grupo feito república maior, do animal sagrado por Deus; da cidade (urbe) transformada em universo (orbe); da história volvendo-se poesia; da guerra sendo vencida pela paz, entre os homens de boa vontade.
Foi por assim não nos elevarmos, que o fim da Guerra Fria gerouum estado de guerra gelada, ainda mais fria, ainda mais guerra dentro de paz, porque continuamos a não ter ideias pelas quais valha a pena morrermos
Foi o historiador bismarckiano Heinrich Gotthard von Treitschke (1834-1896) quem, adoptando a ideia do Estado ser a mais elevada categoria da eterna sociedade humana, cunhou a expressão der Staat ist Macht. Baseando-se na perspectiva hobbesiana, segundo a qual o direito é igual ao poder, retoma também as teses do suíço alemão Karl Ludwig von Haller (1768-1854), em Restauration der Staatswissenschaft, de 1816-1825, onde se elevava o Estado à categoria de domínio independente que comanda os outros e que não está ele mesmo ao serviço de ninguém.
Nestes termos, defende que, como no mundo inanimado, o forte oprime o fraco, assim entre os animais e também entre os homens se encontra a mesma lei embora com aspectos mais nobres, pelo que constitui mandamento imutável e eterno de Deus que o mais poderoso deve dominar e sempre dominará.
O Estado passou a entender-se como um senhorio destinado a aplicar a autoridade de um senhor, ao mesmo tempo que se considerou que o indivíduo estava preso, por uma série de laços, a um todo que o ultrapassava infinitamente e que a força é que criaria o direito.
A tese está próxima das Realpolitik, das teses belicistas, da sociologia de luta e do darwinismo social. Basta recordar que a mesma Realpolitik, que começou por ser um qualificativo da política de Bismarck, tinha antes, como sinónimo, a expressão Interessenpolitik, visando contrapor-se ao chamado romantismo sentimentalista. O próprio chanceler prussiano, num discurso proferido em Dezembro de 1850, chegou a dizer que a única base sã de um grande Estado é o egoísmo, não o romantismo. Assim, logo considerou que os grandes Estados não poderiam obedecer ao princípio clássico do pacta sunt servanda, base do direito internacional público.
Todos subscrevem, como o jurista Rudolf von Ihering (1818-1892), em Kampf ums Recht, de 1872, que a luta pela existência é a lei suprema de toda a criação animada; manifesta-se em toda a criatura sob a forma de instinto de conservação, pelo que a manutenção da ordem jurídica, por parte do Estado, não é senão luta incessante contra a anarquia que o ameaça e que, como em todas as lutas, não é o peso das forças postas em presença que faz pender a balança.
Mesmo os anarquistas reduzem o Estado à força, aceitando que a violência e a luta é que são os motores da história. Nesta base, também Lev Trotski (1879-1940) proclama que todo o Estado se funda na força, da mesma forma como Weber considera que a violência, apesar de não ser o único instrumento do Estado, constitui o seu instrumento específico, dado que ele reivindica o monopólio legítimo do uso da violência física.
Foi, aliás, num ambiente de fin de siècle que se gerou a geopolítica, que começou por ser um simples movimento doutrinário, estruturado pelo sueco Rudolf Kjellen (1864-1922), autor de Staten Som Lifsform (O Estado como Forma de Vida), publicado em Upsala, no ano de 1916, e pelo alemão Karl Haushofer (1869-1946), autor do conceito de espaço vital (Lebensraum), professor em Munique, de 1921 a 1939. Um movimento que, desde logo, procurou dignificar-se como ciência, considerando a localização geográfica como o factor determinante da política, onde os Estados eram concebidos como indivíduos geográficos e as nações, como organismos em luta pela vida.
Vejamos alguns dos antecedentes do movimento, onde Kjellen tanto foi influenciado por Ratzel, como inspirador de Haushofer, para quem o século XX seria o século dos impérios territoriais, tal como o século XIX havia sido o século dos impérios marítimos.
Foi nos últimos vinte anos do século XIX, principalmente a partir de Friedrich Ratzel (1844-1904), que se delinearam as teias da geopolítica. O fundador da chamada Anthropogeographie, título de obra publicada em dois volumes, em 1882 e 1891, a que se seguiram dois outros textos (Der Staat und sein Boden, de 1897, e Politische Geographie, de 1897), considerava, aliás, que o elemento primordial de qualquer comunidade política seria o território.
Assim, proclama que o Estado é especialmente caracterizado tanto pelo espaço (Raum) como pela respectiva posição (Raumsinn), estabelecendo algumas das chamadas leis da geopolítica: o espaço é factor primordial na grandeza dos Estados (1); um largo espaço assegurará a vida dos Estados (2); um grande território incita à expansão e ao crescimento de um Estado e que actua como força que imprime nova vida ao sentimento nacional (3); em todos os tempos só foi poder mundial um Estado que se fez representar em vários espaços (4). Conforme as suas próprias palavras, toda a vida do Estado tem as suas raízes na terra, numa terra marcada por três elementos fundamentais: a situação (Lage), o espaço (Raum) e a própria fronteira (Grenze).
Estas teses serão, depois, desenvolvidas por Karl von Haushofer (1869-1946) que, aplicando as leis de Ratzel, proclama a necessidade de um espaço vital (Lebensraum), considerando até a existência de uma injustiça na distribuição do mesmo, especialmente em benefício dos pequenos Estados, no cinturão Leste da Europa.
Karl Haushofer, professor da Universidade de Munique, um dos mestres da geopolítica, que aí ensina de 1921 a 1939. Militar até 1919, foi particularmente influenciado por Kjellen. Funda em finais de 1923 a revista Zeitschrift fur Geopolitik, mensário com publicação regular de 1924 a 1944. Tenta criar uma nova disciplina, a geoestratégia (Wehrgeopolitik). Um dos seus discípulos, Rudolf Hess, vai introduzir no nazismo a tese do espaço vital. Haushofer, contudo, estava ligado ao movimento dos jovens conservadores de Moeller van den Bruck e Othmar Spann e há-de ser preso pelos nazis em 1944, por advogar uma aproximação aos britânicos e ter ligações à resistência. No fim da guerra, em 1945, será detido, julgado e libertado, acabando por suicidar-se. Entre as suas principais obras: Geopolitik der Selbstbestimmung (Geopolítica da autodeterminação), de 1923; Geopolitik des Pazifischen Ozeans, de 1924; Wehrpolitik, de 1932; Weltpolitik von Heute, de 1934-1936; Der Kontinentalblock, de 1941.
A geopolítica nasceu assim no contexto do processo de unificação alemã, posterior a 1871, criando-se um modelo pretensamente científico que, muitas vezes, apenas foi mera literatura de justificação dos interesses expansionistas alemães. Se Ratzel deu cobertura à ânsia de Weltpolitik do Segundo Reich, já Haushofer assumiu as angústias da Alemanha derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, preparando muitas das teses que serão aplicadas no terreno pelo terceiro Reich de Adolf Hitler.
É evidente que os projectos imperialistas de outras potências não podiam subscrever posturas teóricas que proclamavam que a terra é poder. Outra teria de ser, por exemplo, a tese dos poderes anglo-americanos, desde o Reino Unido aos Estados Unidos da América, mais interessados na proclamação do sea power.
Vai caber essa tarefa ao almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan (1840-1914), para quem os Estados dotados de um território com uma larga frente ribeirinha teriam tendência para a hegemonia marítima e, consequentemente, assumir-se-iam como inevitáveis adversários das potências terrestres. Por outras palavras, criava-se agora uma literatura de justificação do desenvolvimento da marinha de guerra norte-americana, baseada numa estratégia de aliança com os britânicos e que também se fundamentava em factores políticos, como a defesa de um modelo de free trade assente na industrialização.
Estes caminhos da primeira geopolítica contemporânea representam, aliás, dois projectos de construção de modelos de superpotências, as quais se confrontariam na primeira e na segunda das guerras mundiais deste século. Se em 1918 foi inequívoca a derrota dos modelos de impérios centrais, já a partir de 1945 se deu uma espécie de revisão da primeira edição vitoriosa, com algumas variantes.
Em primeiro lugar, tal guerra mundial, começando por ser uma espécie de guerra civil europeia, acabou por ganhar laivos de guerra santa mundial.
Em segundo lugar, porque os vencedores não foram apenas as potências marítimas, britânica e norte-americana, isto é, a união federal da América do Norte (United States) e a união monárquica e democrática dos britânicos (United Kingdom), dado que apareceu outro inequívoco vencedor: a união comunista liderada pelos russos (União Soviética) que passou a assumir-se como um grande Estado Continental.
Em terceiro lugar, tal guerra não acabou em 1945, dado que imediatamente se desencadeou o processo da chamada Guerra Fria, apenas encerrado em 1989, e que produziu tanto a emergência autonómica de um novo Estado Continental (a República Popular da China), como a constituição do chamado Terceiro Mundo, após os movimentos descolonizadores que atingiram o seu clímax nos anos sessenta.
Diremos, aliás, que, em termos de linguagem geopolítica, passou a valer mais a explicação de um outro almirante, desta feita francês, Raoul Castex (1878-1978), autor de Théories Stratégiques, Paris, 1929-1939, em sete tomos, para quem existiria sempre uma espécie de perturbador continental, uma potência continental que decide caminhar para o mar, esse touro que as potências marítimas teriam que deter, num movimento defensivo, o qual só seria eficaz quando se obtivesse o apoio da chamada reacção orgânica do sistema internacional.
Uma tese que, aliás, sempre se aplicou aos processos imperialistas de construção da unidade europeia, de Carlos V e Filipe II, em nome dos Habsburgos de Madrid, a Luís XIV e Napoleão Bonaparte, dado que, em nome da desforra francesa, em qualquer destes exemplos históricos, o perturbador foi sempre detido por uma coligação negativa de outras potências, apenas conjunturalmente aliadas. As tais que, no dia seguinte à paz, ainda entendida como mera ausência de guerra, logo continuaram o jogo dos Estados em Movimento.
De qualquer maneira, tanto na sua versão de poder terrestre de cariz continentalista, como no seu momento maritimista do sea power, as teorias geopolíticas ficaram sempre presas a uma perspectiva política marcada pelo predomínio da ideia de espaço, entendido como condição ontológica básica do político.
Alfred Thayer Mahan, historiador naval norte-americano, foi professor do Naval War College e director da instituição de 1886 a 1889 e de 1892 a 1893. Influencia os defensores da supremacia do poder naval, tendo como seguidor o presidente norte-americano Theodor Roosevelt, eleito sucessivamente em 1901 e 1904, depois de ter sido secretário de Estado adjunto para a marinha. Outro dos adeptos da tese é o almirante alemão Alfred von Tirpitz (1849-1930), um dos instrumentos da Weltpolitik do Kaiser Guilherme II. Mahan está para a estratégia naval, como Clausewitz está para a estratégia militar em geral. Entre as suas obras: Influence of Sea Power upon History, 1660-1783, Boston, 1890; The Influence of Sea Power upon the French Revolution and Empire, 1793-1812, 1892; The Life of Nelson, 1897; The Interest of America in Sea Power, Present and Future, 1897.
Os próprios italianos introduzem no processo a sua especificidade, com o general Giulio Douhet (1869-1930) a teorizar o poder aéreo. Autor de Il Dominio dell’Aria, de 1921, acentua, sobretudo, o papel do bombardeamento estratégico, desvalorizando o combate aéreo. Considera fundamental a escolha de objectivos civis, em vez de objectivos militares, porque o bombardeamento de cidades e centros industriais conduz à desmoralização do adversário.
Estes cientificismos desencadearam um conjunto de falsas ideias feitas que permitiram duas terríveis guerras mundiais, atingindo-se, desta forma, o clímax daquele modelo de Estado Moderno entendido como mero indivíduo geográfico, conforme a expressão do sueco Rudolf Kjellen.
Todos os que assim reduziram a política a um simples espaço, confundindo os pressupostos com as causas, tanto contribuíram para as teses nazis do espaço vital como para a teoria do imperialismo de Lenine. Isto é, continuaram aquele primitivismo que dá o nome de ciência a certas ideologias anacrónicas. Com efeito, a chamada geopolítica serviu para cobrir, com o manto diáfano dos doutrinarismos, a verdade nua e crua de realidades como as políticas de expansão de certos Estados que ainda se concebiam como pessoas em ponto grande e em luta permanente uns contra os outros.
Tal geopolítica apenas fez regressar o mundo àquele estado de natureza, onde os Estados se assumiram, não como os bons selvagens, mas como os lobos uns dos outros, esses esfaimados seres que se vão arreganhando numa luta de todos contra todos. Um estado de natureza onde o direito voltou a confundir-se com o poder, onde cada um tinha tanto direito quanto o poder que possuía, onde o jurídico perdeu a autonomia quando a razão da força se tornou mais forte que a força da razão. Porque, como diz o francês Yves Lacoste, no expressivo título de um dos seus livros, La Géographie, ça ser d’abord à faire la guerre, de 1976.
Foi assim que a geopolítica contribuiu para a eliminação daquele direito universal que era marcado tanto pelo ius gentium como pelo ius communicationis da respublica da pax romana e da sua sucessora christiana, que nunca se esqueceram da república maior e da civitas maxima da sociedade do género humano. Assim se foi transformando o mundo num espaço de vingança privada, dominado pelo princípio das soberanias absolutas, não limitadas pela moral, pelo direito e pela natureza das coisas, dado que sempre foram fiéis ao lema do tem razão quem vence.
Não faltaram sequer as visões ditas científicas de um Halford John Mackinder (1869-1947), no The Geographical Pivot of History, de 1904, onde se visionou a Rússia como um simples Estado Pivot, como aquele poder terrestre que poderia liderar o mundo e vencer as potências marítimas se dispusesse de rápidos e eficientes transportes mecânicos. Uma russofobia que o mesmo autor desenvolveu em 1919, com Democratic Ideals and Reality, onde fantasiou a mesma Rússia como o Heartland daquela ilha do mundo (World Island) que seria constituída pela soma da Europa, da Ásia e da África. O mesmo autor, num outro escrito, de 1943, The Round World and the Winning of Peace, voltou, aliás, a temer a união da Rússia com a Alemanha, estabelecendo, deste modo, um diálogo com as teses de Haushofer, então líder intelectual do plano imperialista alemão.
O geógrafo e estrategista britânico Halford Mackinder foi educado em Oxford, onde ensinou geografia de 1887 a 1905. Director da London School of Economics and Political Science, de 1904 a 1908, foi também deputado, de 1909 a 1922. Autor da teoria do heartland, estabelecida em 25 de Janeiro de 1904 e com sucessivas revisões, em 1919 e 1943. Aí estabelece o confronto entre a potência terrestre, a heartland e o vasto anel oceânico, world-island, considerando que quem controla a massa terrestre central, a zona pivot, controla o resto do mundo. Conclui pela superioridade dos impérios centrais, invocando o exemplo das invasões mongóis e das conquistas de Luís XIV e Napoleão Bonaparte. Influencia Haushofer e terá inspirado a invasão da Rússia por Hitler. A perspectiva foi desacreditada depois da derrota das tropas nazis em 1945, mas voltou a ter influência nos começos da Guerra Fria, com a doutrina de Truman do containment, de 12 de Março de 1947, quando os ocidentais se preocupavam com a intervenção soviética na Europa Central e do Leste.
Já Nicholas J. Spykman (1893-1943) vem referir a Eurásia como uma das cinco grandes Ilhas do Mundo, ao lado da Austrália, da África, da América do Sul e da América do Norte. Esta Eurásia seria a ilha mais extensa, duas vezes e meia maior que a América do Norte, e a mais populosa, dez vezes mais que a América do Norte. Para este autor, à volta da massa continental da Eurásia, ficaria a grande rota de circum-navegação do mundo e, entre a grande massa central e a rota marítima, estaria a terra orla (Rimland), qualificando esta como an intermediate region situated as it is between heartland and the marginal seas. It functions as a vast buffer zone of conflict between sea power and land power. Looking in both directions, it must function amphibiously and defend itself on land and sea. In the past, it has to fight against the land power of the heartland and against the sea power of the offshore islands of Great Britain and Japan. Its amphious nature lies at the basis of its security problems. Tal orla compreenderia a Europa Ocidental e Central, o Próximo Oriente, com a Turquia, o Irão e zonas do Afeganistão, do Tibete, da China e da Sibéria Oriental, bem como as penínsulas da Arábia, da Índia e da Indochina. E à maneira de outros estrategistas, como Mackinder, eis que Spykman considera que a grande massa continental da Eurásia depende da orla.
Importa também destacar outros estrategistas como Saul Bernard Cohen, professor de geografia de Boston, de ascendência judaica. Opõe o chamado Mundo Marítimo Dependente do Comércio (Trade Dependent Maritime World) constituído pela América e Caribe, Europa Marítima e Magrebe, Ásia Insular e Oceânia, bem como pela América do Sul, ao mundo continental euro-asiático (Eurasian Continental Power) constituído pela Heartland russa, pela Europa do Leste e pelo Leste Asiático Continental, com choques frontais nas chamadas zonas de fractura (Shatterbelts) do Médio Oriente, do Sudeste Asiático e da África ao Sul do Saará. Refere também a existência de regiões politicamente independentes (Independent Geopolitical Region), como a Índia e as áreas ribeirinhas do Pacífico.
Isto é, em pleno século XX e no auge da segunda guerra mundial, os cientistas do poder em movimento reeditavam os mitos bíblicos do monstro terrestre (o Behemot) e do monstro marinho (o Leviathan), num jogo onde não se enfrentavam apenas figuras literárias, dado que milhões e milhões de homens iam efectivamente morrendo, já não como carne para canhão, mas antes como massificada pasta de alimentação para genocídios e explosões atómicas.
E tudo se fazia com a aparente neutralidade das teses científicas, quase transformando as universidades em institutos auxiliares da carnificina e do holocausto. Porque a ilusão cientificista do positivismo, dominante na modernidade, continuava a tolice de separar a ciência da moralidade, a política do direito e o homem do transcendente. Dessa ordem misteriosa de símbolos, onde, mesmo para aqueles que não acreditam em Deus ou na liturgia das Igrejas institucionais, sempre esteve a ordem superior da natureza ou o princípio estóico do kosmos ou do mundo, entendido de forma panteísta.
Por outras palavras, as teias da geopolítica acabaram por conduzir a ciência e a racionalidade para a loucura das bruxarias, onde Hitler, Estaline e os lançadores de bombas atómicas não foram os convenientes diabos reencarnados, mas aqueles humanos, demasiadamente humanos que ousaram chegar ao sol com as suas frágeis asas de cera.
Em nome da ciência deixávamos assim de praticar a humilde lição de bom senso que manda atingir um conhecimento modesto acerca das coisas supremas, bem como aquela moderação que nos diz que a própria virtude precisa de limites.
Com efeito, desde os alvores do absolutismo que o político se territorializou, isto é, quando nasceu a ideia de fronteira física, a tal linha que serviu para separar e dividir, cortar para quadricularizar, celulizar para englobar, segmentar para homogeneizar, individualizar para esmagar as alteridades e as diferenças, conforme a expressão de Nicos Poulantzas (1936-1979), em O Estado, o Poder, o Socialismo, na cuidada e militante tradução portuguesa daquele que viria a ser o segundo Prémio Nobel português, José Saramago, Lisboa, 1978, p. 102.
Era o tempo do Ocidente dos Estados, das potências em movimento, e a Europa passou a ser uma espécie de grande teatro de operações militares e mercantilistas, com os soberanos a moverem as peças de um xadrez de guerras iluministas. Não tarda que o mundo se torne num grande mapa onde se vão desenhando Estados e Estadinhos, todos fingindo ser Estadões, independentemente da vontade das populações, algumas das quais até foram obrigadas a deslocações forçadas e outras se tornaram vítimas de genocídios.
Era o apogeu do tal esprit geométrique que, exacerbando os planisférios, esquecia as comunidades vivas que transformaram os territórios em pátrias, eliminando a dimensão espiritual e simbólica das repúblicas, em favor dos aparelhos de poder. Chegou mesmo a consagrar-se o princípio do cujus regio, ejus religio, isto é, determinou-se que cada povo passaria a estar dependente das convenientes crenças religiosas do respectivo soberano, porque a obediência é que faria o imperante. E assim se foi cortando o mundo em fatias estaduais, desenhadas a régua, compasso e esquadro.
Os povos até passaram a ser pintados com a cor das fardas dos empregados domésticos dos soberanos, quando estes deixaram de ser efectivos príncipes, assumindo-se como meros pais de uma casa, ora na versão grega de oikos despotes, ora na versão latina do dominus (donde vem o português dono).
Isto é, as pátrias deixaram de ser uma síntese entre um chão e uma ideia (Georges Burdeau), a patrie charnelle, donde nos veio a nação. O próprio chão, entendido como o tal pays que modela a raça (Taine), deixou de ser um chão de sonhos, porque a pátria como raiz, reduzindo-se ao presente, deixou de ter o chão moral (Jacques Maritain), propiciador daquelas raízes que se estendem para o passado e para o futuro.
Aliás, na viragem do século XIX para o século XX, a geopolítica chegou mesmo a ser acelerada pelo determinismo das escolas do geographic environment, onde se destacaram as teses de Ellen Churchill Semple (1863-1932), em Influences of Geographic Environment, de 1911, onde se considerou o homem como simples produto da superfície da terra: um filho da terra, pó do seu pó, mas que a terra concebeu e alimentou, impôs tarefas, dirigiu pensamentos, criou dificuldades que lhe robustecessem o corpo e lhe aguçou o engenho…. (apud Ilídio do Amaral, A Geografia Tropical de Gilberto Freyre, in Leituras do Tempo, Lisboa, Universidade Internacional, 1990, p. 305)
Quase se retomava a trilogia de Hippolyte Taine (1823-1893), race, milieu, moment, fundadora de certas facetas do naturalismo do último quartel do século XIX, quando se aceitou a existência de um conjunto de caracteres biológicos transmitidos hereditariamente, base através da qual as tradições, as crenças, os hábitos mentais e as instituições modelariam os indivíduos. A perspectiva de um persistente positivismo que vai marcar todas as correntes sociologistas, tanto de esquerda como de direita.
Pouco faltava para que, sob impulso do darwinismo, se estruturasse o racismo, essa crença na existência de raças superiores e de raças inferiores. As superiores, assumindo a missão de submeterem às inferiores, nem sequer deveriam misturar-se com elas, para poderem manter-se puras, procurando a sua própria melhoria, conforme as propostas do chamado eugenismo, fundado pelo biólogo inglês F. Galton (1822-1911).
O racismo teórico contemporâneo terá sido desencadeado por Arthur de Gobineau (1816-1882), antigo chefe de gabinete de Tocqueville, quando este foi ministro dos negócios estrangeiros francês, que em Essai sur l’Inegalité des Races Humaines, publicado entre 1853 e 1855, defendeu que a raça branca e, dentro desta, a raça ariana deveriam ser as raças superiores e dominadoras.
Uma opinião partilhada por outros autores da época como Victor Courtet (1813‑1867), em La Science Politique fondée sur la Science de l’Homme, ou l’Étude des Races Humaines sous le Rapport Philosophique, Historique et Social, e Georges Vacher de Lapouge (1854-1936). Este último, professor em Montpellier, em L’Aryen et son Rôle Social, de 1899, chegou mesmo a propor a criação de uma nova ciência, a antropossociologia, baseada na luta darwinista pela sobrevivência da espécie. Para ele, as raças dolicocéfalas dos louros deveriam ser senhoras e dominadoras das raças braquicéfalas, defendendo, para o efeito, a prática da selecção biológica. Neste sentido, até considerou o Brasil como um vasto Estado negro de volta ao estado da selvajaria, tal como Hitler o visionará como um bando de mestiços corruptos (Chacon, 1993).
Este ambiente foi também assumido por Houston Stewart Chamberlain (1855‑1929), um inglês naturalizado alemão, genro de Richard Wagner, que, em Die Grundlagen des 19. Jaharhunderts, de 1899, considerou que os teutões (os celtas, os eslavos e os germanos) é que teriam caldeado as raízes gregas, romana e judaica da civilização ocidental, chegando a defender a intervenção do Estado no processo de desenvolvimento biológico da raça dos senhores.
Da mesma forma, refira-se o norte-americano de origem suíça, Jean-Louis R. Agassiz (1807-1873), geólogo e paleontólogo, autor de Contributions for the Natural History of the US, 1857-1862, que, baseado em medições cranianas, denunciou o perigo da mestiçagem e defendeu a superioridade dos brancos face aos negros.
Este cientismo positivista, misturado com certos impulsos de romantismo político, desaguou nas teses assumidas por Adolf Hitler em Mein Kampf, de 1924, constituindo o eixo fundamental do nacional-socialismo que subiu ao poder na Alemanha em 1933.
Em Portugal, os reflexos dessa ideologia pretensamente científica chegam nos trinta do século XX, principalmente a partir do Acto Colonial e do Estatuto do Indigenato, mas, não menos racistas, foram os movimentos políticos anticolonialistas, nomeadamente as teses de Frantz Fanon (1925-1961). Todos continuavam na senda das patetices da lei da selecção natural de Charles Darwin (1809-1882), considerando que a causa de todos os nossos problemas actuais é a ideia liberal de que o Homem pode desobedecer a leis naturais.
Talvez seja urgente recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros.
Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, isto é, o Portugal político, partiu, afinal, de uma base multicultural e apenas se identificou unitariamente por ter praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce que, entretanto, por efeito da prescrição secular, se volveu nos actuais brandos costumes. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado, tanto na metrópole como no espaço imperial.
Aliás, importa também assinalar que muito do nacionalismo português do século XX, esse que se baseia no neogarrettismo e no saudosismo, permitindo o patriotismo da I República e do Estado Novo, constitui mera reinvenção de marca estrangeirada, influenciada pelo nacionalismo místico da III República Francesa, onde até nos inspirámos para o neo-imperialismo colonialista, falando numa raça que era apenas um carácter, uma meta-raça ou uma raça cósmica.
Feliz ou infelizmente, depois de 1974, não podendo nacionalizar tendências importadas, até porque a nossa descolonização foi atípica e não acompanhou o ritmo europeu, tanto o do modelo francês, entre o socialismo de Mendès-France e o patriotismo gaullismo, como o do modelo britânico, marcado pelo cepticismo conservador da cedência aos winds of change, eis que nos sentimos náufragos no tocante à habitual inspiração estrangeirada.
Feliz ou infelizmente, tivemos que viajar dentro de nós e, sem grandes teorizações nem as consequentes vulgatas ideológicas, experimentando o nosso modo de estar no mundo, antes de o julgarmos e reconstruindo uma nova comunidade nacional sem obediência a prévios programas vanguardistas.
Feliz ou infelizmente, o Portugal a que chegámos acabou por ser escrito por aquela mão invisível, segundo a qual o mundo é mais o produto da acção dos homens do que o resultado das boas ou más intenções de alguns deles.
Logo, os portugueses de hoje, se quiserem continuar portugueses, têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer-se, de alargar-se em novos círculos concêntricos de uma mais complexa identidade. Por isso, talvez seja de rejeitar tanto a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como o paternalismo de certos pretensos reconstrutores, que esquecem as raízes e não conseguem compreender a base do nosso universalismo.
Repetiremos, muito literalmente, que não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história, mas sem saber que efectiva história vai fazendo. Com efeito, há sempre uma chamada mão invisível que nos condiciona. Porque a polis, a respublica, o regnum ou o Estado, resultam sempre de uma tensão entre os modelos da racionalidade técnica e da racionalidade ética, entre a racionalidade dos fins (a Zweckrationalitat de Weber) e a racionalidade dos valores (a Wertrationalitat).
Tal como o homem não é apenas inteligência e vontade, mas também imaginação e emoção, também as comunidades políticas precisam de conjugar a ética da responsabilidade com a ética da convicção, a frieza da razão do Estado com a emoção da Nação libertadora, a consciência com a memória e a autonomia com a identidade.
Para que Portugal continue a querer viver como pensa, para que os portugueses continuem a querer a independência, importa que, no espaço da memória, essa inteligência que visa a autonomia possa ser compensada por uma reinvenção da identidade que, longe de conservar o que já não há, insista-se, assuma a criatividade das saudades do futuro, através uma identidade nacional aberta às novas circunstâncias.
Acrescente-se que novas formas de terraquismo, invocadoras do cientificismo geopolítico, foram acirradas mais recentemente pelas teses de certa vulgarização etológica, nomeadamente pelas imaginações literárias com pretensões a ciência que, depois de rebaixarem a política ao reino animal, chegam mesmo a considerá-la como directa emanação de um instinto territorial, conforme as teses de Robert Ardrey.
Robert Ardrey é um dos principais teóricos do etologismo e do elitismo em nome do homem como animal territorial. Critica a ideia igualitária do contrato social de Rousseau, pelo facto deste ter tratado de um contrato social entre anjos decaídos, defendendo, em contraposição, uma aliança de macacos evoluídos. Do mesmo modo, considera que em vez da utopia da sociedade dos iguais, importaria uma filosofia evolutiva, porque a agressividade é o principal garante da sobrevivência. Aceita uma perspectiva elitista, ao salientar que toda a sociedade tem os seus líderes natos.
Estas vulgatas não podem desfocar a obra de Konrad Zachariae Lorenz (1903-1989) Austríaco, formado em medicina em Viena, foi professor em Viena (1937-1940) e Konigsberg (1940-1942) e Prémio Nobel em 1973. Este fundador da etologia, entendida como a ciência do comportamento animal. Considera que a sociedade humana é uma continuidade das sociedades animais. Em ambas existem animais agressivos, marcados por organizações hierárquicas e onde se distinguem nitidamente os papéis reservados para o masculino e o feminino. Nas sociedades humanas apenas podemos estabelecer medidas para limitarmos a agressividade, para canalizarmos os respectivos excessos, mas não para a eliminar. Do mesmo modo, o igualitarismo e a eliminação da diferença entre homens e mulheres não passariam de sonhos inexequíveis. Considera que o ser humano é um animal agressivo como todos os outros animais. Critica a fórmula de Hobbes, do homo homini lupus, propondo-se substitui-la pela de homo homini ratus, dado que o homem, se assemelha aos ratos. Ao contrário dos animais normais, como o lobo, eis que o homem, tal como o rato, mata os rivais da mesma espécie. Os restantes animais que apenas matam animais de espécies diferentes, apenas procuram que os da mesma espécie sejam mantidos à distância, visando a conquista de um território alimentar.
O poder político, tanto do ponto de vista dos factores internos como no plano das relações internacionais, nunca foi uma coisa susceptível de um ter. O poder político em sentido global, sempre foi uma relação entre variáveis complexas e só pode ser entendido como uma network structure, como uma relação de relações, como uma rede de redes. Tal como só é susceptível de ser gerido através de uma instituição das instituições (Maurice Hauriou), de um macrocosmos de macrocosmos sociais (Georges Gurvitch).
Mesmo o pai do estrutural-funcionalismo, Talcott Parsons, sempre ensinou que o poder tem mais a ver com a confiança do que com a força, porque, tal como a moeda, tem mais valor de troca que valor de uso, dado ser a capacidade que leva as unidades de uma determinada forma sistémica a cumprirem as funções que lhe cabem.
Assim, o jogo do poder não se reduz à mera movimentação das peças num tabuleiro de xadrez dos Estados directores e dos Estados secundários, onde estes últimos são entendidos como simples peões que a longa manus das superpotências vai movendo e comendo. Há poderes pequenos que podem assumir-se como poderes funcionais e que ultrapassam as contas da aritmética e da geometria, fazendo, das fraquezas, forças. Porque os pequenos poderes, segundo a mera perspectiva das forças materiais, podem transformar as respectivas vulnerabilidades em potencialidades.
Aliás, as pátrias, mais do que o espaço de uma simples terra, sempre foram a emoção que os homens criaram a propósito da sua santa terrinha, da pátria dos seus mortos e do espaço vivido onde nascerão os seus filhos. E nós, portugueses, dotados daquele telurismo atlântico de que falava Miguel Torga (1907-1995), sempre soubemos vencer os determinismos geográficos. Depois daquela reconquista onde a fronteira Sul sempre foi o espaço aberto do ermamento que ondulava como as searas, eis que passámos a ser desafiados pela fluidez do mar, descobrindo sertões pelas navegações bandeirantes. Gerámos assim um novo espírito de fronteira que sempre nos animou a violarmos os limites fixados pelos Bojadores, Tormentas e Tordesilhas, descobrindo e semeando novos espaços e novas terras. Porque navegar é preciso, viver não é preciso.
Mas crise do Estado pode não ser crise do político, se entendermos que o mesmo político tanto existe antes dos Estados, como está ao lado e acima dos próprios Estados. Crise do Estado pode não ser crise do político se formos capazes de teorizar um político supra-estadual e um direito verdadeiramente universal. Se percebermos que essa zona do político não se confunde com as chamadas organizações internacionais, cujos sócios apenas podem ser os Estados. Se entendermos que esse necessário direito universal não é exactamente a mesma coisa que o actual direito internacional público. Se até ousarmos dizer que crise do Estado não é o mesmo que crise da Nação, caso a assumamos, à maneira de Fernando Pessoa (1888-1935), como caminho para uma super-nação futura, como passo de libertação, como ponto de passagem para uma civilização superior.
Vivemos um tempo de revolução global, aliás, a primeira revolução global da história da humanidade. Onde o global não é necessariamente a restrita globalização económica e financeira proclamada por certo pensamento único de um pretenso neoliberalismo, realmente pouco ético, marcado pelo hobbesiano do individualismo possessivo (Crawford Brough MacPherson), mas um sentimento de planeta unidimensional, provocado pela existência de ameaças globais que roubaram aos campos da profecia e da poesia os sonhos da sociedade do género humano, essa civitas maxima, onde todos podemos ser cidadãos do mundo.
A ameaça já não vem apenas de outras entidades políticas diferentes da nossa, de um inimicus, vizinho ou idêntico, mas daquelas coisas que ameaçam realmente todos os homens: do risco tecnológico maior, à fome; da doença provocada por vírus que não conhecem fronteiras, às questões da segurança; dos problemas do ambiente, às tolices de um conceito de desenvolvimento quantitativo que esqueceu a entropia, gerando uma sociedade de desperdício, cheia de lixeiras físicas e morais. Essa hipocritamente dita sociedade da abundância, mas que apenas se mantém pela criação das necessidades artificiais do consumismo, nesse absurdo sítio onde se morre pelo excesso de comida, enquanto no resto do mundo se passa fome.
Para além das organizações internacionais, marcadas pelo inter-estadual dos Estados a que chegámos, com a consequente tentação da Realpolitik dos Talleyrand (1754-1838) e dos Kissinger, há também sinais e sementes de integração internacional, com a criação de novos pólos de poder supra-estaduais, de novos centros, de novas acrópoles, de novos espaços supra-domésticos, polidos e civilizados, para onde os indivíduos podem transferir expectativas e lealdades, gerando uma rede de pluralidade de pertenças, uma constelação de massas de actividade, que só uma perspectiva pluralista do político pode contemplar e que só o princípio da subsidiariedade pode abarcar.
Os velhos Estados, nascidos do primitivismo da modernidade ocidental, ainda submetidos aos reflexos condicionados dos hábitos de obediência, aos medos do Leviatã de Thomas Hobbes (1588-1679) e aos complexos do pessimismo antropológico de Nicolau Maquiavel (1469-1527), talvez sejam filhos daquela visão constantina, agostiniana, maometana, luterana ou pré-leonina que considera a política como um castigo divino, por causa do pecado original, partindo do preconceito que há sempre uns, que subjugam, e outros, que se submetem, pelo medo da violência, proclamando que o imperante, e a não a verdade, é que faz a obediência. Esses mesmos que perspectivaram o homem-lobo-do-homem e que continuam a reduzir o político ao verticalismo da pirâmide ou da elite no poder. Até porque o chamado maquiavelismo, iludido por parecer ter razão a curto prazo, além de ser uma não-moral é também uma péssima política, deixando de ter razão no médio e no longo prazos.
Outras perspectivas podem ser reabertas neste dealbar do milénio. A velha polis grega do discurso de Péricles (492-429 a.C.), os medievais concelhos do regresso da política, as observações de Pero Vaz de Caminha sobre o estado de natureza do bom selvagem, que tanto influenciaram Rousseau, ou a leitura kantista da política, com um Estado-Razão, onde não tem que ser majestática a Razão de Estado. E se a perspectiva hobbesiana continua a ser repudiada pelos seus parentes grocianos, julgamos que importa ir além do mero tratado, do útil pacta sunt servanda, e assumirmos o sonho dessa terceira via estratégica que ainda vai mais além, a caminho do justo, porque dá ao mundo aquele cosmos da raiz do político, que é a autonomia da participação cidadânica, onde a urbs nos pode dar o orbs. Anthropos physei politikon zoon…
Onde o poder não é proveniente do diabo ou do pecado. Onde o poder é do povo. Onde o poder vem do consentimento que cada um dá ao todo. À polis, à civitas, à res publica, à comunidade, a esse todo feito de cidadãos que decidem.
E onde até o governante não é um soberano que diga que o Estado é Ele, dado não passar de um representante, do que está presente em lugar daquele outro que é cada um de nós. Onde o governante é ministro, minister, servus ministerialis, escravo da função, funcionário, um minus ou minor, que, mesmo dentro da sua missão, tem de obedecer ao magis, ao maior, do magistrado, do magister, desse que, sendo auctor, tem autoridade, e não apenas potestas. Esse complexo exercício da razão inteira que faz acrescer, à racionalidade técnica do bonum utile, a racionalidade ética do bonum honestum, simbolizado no princípio da justiça.
E é em torno deste que vamos discutindo ideologias e programas, partidarizando-nos, para, do confronto entre partes, não partirmos o todo, mas competirmos, em jogos de soma variável, e pluribus unum. Esses que permitem fazer, da vontade de todos, uma vontade geral, onde não se decide em nome do interesse privado de cada um, do omnes ut singuli de Francisco Suárez, mas antes, educados e mobilizados pelo interesse geral do bem comum, do omnes ut universi, que constitui o mesmo que o imperativo categórico de Kant, onde cada um decide como se ele próprio fosse o todo, de tal maneira que, da sua conduta decisória, pode extrair-se uma máxima universal.
[1] Uma última forma estatolátrica que importa referir, situada nas raias do totalitarismo e do autoritarismo, prende‑se com os modelos de Estado de Segurança Nacional da “guerra fria”, que teve o seu principal epifenómeno na América do Sul, nas décadas de sessenta e setenta e especiais coincidências com o estilo de organização política de portugal sob o regime da Constituição de 1933, quando por pressão da guerra subversiva dita das “campanhas de Africa”, o Estado Novo se transformou num Estado Pós‑Corporativo, isto é, quando deixou de ter uma doutrina em acção, de Estado Ético e passou a ser um Estado marcado pela “coordenação do capitalismo de Estado, do capitalismo privado e do capitalismo multinacional, com atenção dos efeitos da estratégia indirecta, com a identificação ideológica do inimigo interno no ultramar, com empenhamento na revitalização do sistema de defesa ocidental ao qual tentava demonstrar que a nossa integridade estadual era indispensável ao equilíbrio e eficácia do todo, independentemente do regime político”
Com efeito, a estatolatria escreve‑se tanto por linhas tortas como por linhas direitas, dado ser vício que tanto afecta individualismos como colectivismos, de societários a comunitários, passando por liberais e institucionalistas.
O absolutismo, esse regime que nunca passa de poder‑ser, porque é um tipo‑puro, tem algo de paralelo com várias formas de paternalismo autoritário, desde o autoritarismo da razão de Estado, próxima do despotismo esclarecido, a certos autoritarismos hierarquistas deste nosso século.
Com efeito, todos os absolutismos dizem , e dirão, que nunca foram efectivamente absolutistas e nisso têm absoluta razão, dado que nunca os homens conseguirão levar à prática, de forma exaustiva, um modelo teórico.
Esta ideia de Estado de Segurança Nacional que recebeu de teóricos brasileiros a sua principal estruturação, teve origens nos chamados politólogos neo‑realistas norte‑americanos, como R.Niebuher, H.J.Morgenthau,G.F.Kennan e R.E.Osgood, com particular influência nas administrações posteriores à gestão dita idealista de Wilson e Roosevelt.
Os modelos destes autores foram consagrados a partir da presidência de Harry Truman,muito particularmente com o National Security Act, de 1947,onde se estruturaram tanto o Conselho de Segurança Nacional(National Security Council) como a C.I.A.(Central Intelligence Agency).
Estes modelos ao serem “exportados” para outras latitudes adquiriram contornos especiais,sendo particularmente adaptados pela chamada geo‑política,que os vai tentar conciliar com certas fórmulas do idealismo alemão e dos primórdios da antropogeografia.
Merece destaque a obra de Golbery Couto e Silva,Geopolítica do Brasil, Rio de Janeiro,José Olimpo,1967,onde fala na geopolítica como uma espécie de síntese entre o organicismo de Herder, o idealismo de Hegel, o estatismo de Fichte e o nacionalismo económico de List.Outro importante esteio brasileiro da escola é José Alfredo Amaral Gurgel,Segurança e Democracia,Rio de Janeiro,José Olimpo,1975.
A escola tem também em Robert Mcnamara, em A Essência da Segurança, de 1968, uma referência obrigatória,muito particularmente quanto ao conceito de que “a segurança é o desenvolvimento e sem desenvolvimento não há segurança”.
Para estes autores a Nação que actua através do Estado e com ele se identifica tem “objectivos nacionais”, “interesses nacionais”, “carácter nacional” e “poder nacional”, conceitos que consideram perfeitamente delimitáveis e susceptíveis de definição ,segundo uma linguagem mista de planeamento económico e de operações militares.
Consideram que o Estado é o agente da estratégia nacional encarregado de executar o poder nacional tendo em vista os objectivos nacionais e o que se define pela respectiva missão.
No Brasil fala‑se, inclusive, à maneira dos federalistas, na doutrina do “destino manifesto”, isto é, que o destino manifesto da nação brasileira é a pertença ao ocidente.Segundo Golbery do Couto e Silva, por exemplo, seria possével elencar os objectivos nacionais, que resume aos seguintes ítens:integridade territorial, integridade nacional (já de carácter espiritual), democracia , progresso, paz social e soberania.Para ele, seria, inclusive, possível definir a essência do Ocidente :”ciência, cristianismo, democracia”.
A segurança nacional, neste sentido, seria “a garantia dada pelo Estado para a garantia ou a defesa dos objectivos nacionais apesar dos antagonismos e das pressões”.
O poder nacional ,por seu lado, seria “constituído por factores de toda a espécie; compreende todas as capacidades e disponibilidades do Estado, isto é, os seus recursos humanos, naturais, políticos, económicos, sócio‑psicológicos e militares.É um conjunto de poderes que abarca todo o campo de acção do Estado”..
Concebem o poder como “a força organizadora da vida social no sentido mais amplo que detem o Estado… compreende a organização da população para exercer a autoridade sobre o espaço e sobre a massa humana localizados no interior dos limites do Estado tendo em vista por em prática a vontade do Estado”. E que o poder político “é esta componente do poder nacional que engloba os órgãos e as funções de direcção da sociedade política”, e que inclui, necessariamente , o chamado poder psico‑social.
Concluem que a estratégia nacional é “a arte de preparar e de aplicar o Poder Nacional para obter ou manter objectivos fixados pela Política Nacional”, onde as maiusculas não são um acaso.
Como salienta Comblin, esta política de segurança nacional acaba por destruir a própria política, quando instaura o reino do medo comandado pelo Estado de Segurança Nacional e pelos seus mais autorizados intérpretes, os serviços de informação militares. Ele tende “a fazer absorver a política interna pela política externa” e leva a que o Estado se “identifique com a Nação de que pretende ser uma incarnação”
Estas teses que foram particularmente assumidas pelo regime brasileiro subsequente à Revolução de 1964 e teve no Chile de Augusto Pinochet outro dos seus epígonos, não deixaram de influenciar outros autoritarismos ditos de esquerda, como o modelo peruano de Alvarado e a própria Revolução portuguesa de 1974, onde o Movimento das Forças Armadas, que tentou assumir‑se como um “neo‑peruanismo”, especialmente na versão dita “terceiro‑mundista” do “movimento de libertação do povo português”, particularmente influenciada pela experiencia de guerra psico‑social de alguns dos seus principais protagonistas.