Ago 06

Farpas

Os clubes históricos, já sem direitos económicos, são como as velhas nações endividadas. Têm os alvarás, mas são obrigados a alinhar apenas com jogadores estrangeiros, para poderem competir na ilusão do jogo. Mas os adeptos gostam. Pagam as quotas, compram bilhete para ir ao estádio ou, fazem como eu, consomem a droga pela televisão, sempre para gáudio dos intermediários.

 

Um país unânime numa opinião ou num hábito, não seria país, seria gado, dizia Pessoa. Um país repartido em cinco opiniões em redil pode transformar-se apenas numa pluralidade de gados.

 

O Estado são eles. Nós apenas votamos e depois entramos em suspensão de cidadania, apenas somos auditores, salvo no caso do pagamento das taxas, dos impostos, das portagens. As velhas canalizações da representação política continuam enferrujadas. Eles agora até já são a sociedade civil.

 

Três horas de conversa de Seguro com Passos começam a dar alguns frutos, para além da votação sobre o orçamento rectificativo. Esperemos que dure até depois do Natal. Para que o desacordo possa ser sustentável e vivo.

 

Secretas. Já repararam que, neste jogo de soma zero, perdemos todos. Menos as secretas dos outros, a quem convinha que Portugal perdesse poder.

 

Grande parte das coisas políticas tem a ver com as realidades que não se conseguem vislumbrar sem símbolos. E todos os símbolos, como a pátria ou a humanidade, são, para um vesgo, coisas ridículas. São como as cartas de amor. Que são ridículas. Mas mais ridículo era não escrevermos cartas de amor. E suicida era mesmo não amarmos.

 

O partido de Karl Marx era o social-democrata O movimento de Salazar era a democracia-cristã. O resto é literatura de justificação, ou música celestial. Só os burros é que não mudam. Mas há quem goste de gato por lebre, ou da banha de cobra. E a manipulação compensa.

 

Há umas semanas, eram os financeiros que ocupavam o “agenda setting”. Hoje é a Caritas e a União das Misericórdias. Tanto uns como outros são efectivos especialistas na respectiva tecnocracia, fundada em vastas organizações, complexas e hierarquizadas, com uma nova oligarquia, mais dependente do aparelho de Estado, do que a que brotava da concorrência de pequenas unidades autónomas.

 

Não devemos brincar com coisas sérias, como a pobreza. Mas quando leio o anúncio de Mota Soares (“O Programa de Emergência Social (PES) deverá chegar a três milhões de pessoas”), tenho de concluir liminarmente que passámos de dois para três milhões de portugueses abaixo do limiar da pobreza. Se assim for, é uma vergonha nacional!

 

Desejo sinceramente que o Mota Soares e o PES tenham êxito. Um novo Estado Social contra o falhado Estado Social, por causa das leis do Estado e das instituições do Estado é o melhor dos exercícios a que nos podemos dedicar. Embora fosse mais reformista mudar as leis e reformar as instituições, evitando que o normal continue anormal. Poupávamos mais.

 

O discurso de Mota Soares, naturalmente em solidariedade com Marco António, e, portanto, cumprindo um plano do governo, constitui a mais explícita confissão do falhanço, não do Estado Social, mas na gestão estadual das políticas públicas de luta contra a pobreza, a doença e a exclusão social. O exemplo do lar não aberto por ter um vão de 2,5 metros, quando a lei impõe 2,7 impõe que se mude a lei, não que se fure a lei! Para ganharmos todos.

 

Quando o senhor Padre Maia e o meu amigo Manuel Lemos prometem gerir melhor os meios públicos para bem de todos, não percebo a razão pela qual não lhes confiamos, nem que seja em concessão de emergência, a gestão do próprio todo? Porque eu quero que o Estado seja exactamente o de lei igual para todos, tratando desigualmente o desigual, isto é, fazendo justiça.

 

Ai de nós, e do governo, se chegarmos à conclusão que estes publicitários são mesmo uns exagerados! O governo entrou em zona de alto risco e não me incomoda nada se tiver êxito nos atalhos escolhidos. Podem estimular que todos sigam até ao fundo da questão, matando as vacas sagradas.

Ago 06

Afonso Costa

Desde 1717 que qualquer sociedade liberal ou democrática sabe, como alguns proclamados liberais e democratas parecem desconhecer, que uma sociedade secreta iniciática não pode ser uma sociedade secreta política. Até na Noruega, onde os 20 000 maçons são publicamente escrutináveis. Sempre que se confundem os planos, de um lado e de outro, há um risco de regresso à intolerância, ao fanatismo e à ignorância.

Quando o jovem Afonso Costa, na sua dissertação académica de 1895, A Egreja e a Questão Social, assumia o hibridismo da colectivização social, mas sem estatização da economia, ele estava a profetizar um modelo que se tornou dominante entre nós, do salazarismo ao presente “ismo” do social e das respectivas armadilhas. Porque todos os que podem, livremente, fazer, da política um distanciado objecto de análise, conseguem notar que, na prática, as teorias dos programas eleitorais e das ideologias invocadas são sempre outras. Basta recordar, seguindo Vitorino Magalhães Godinho, que, em 1832, os rendimentos das ordens religiosas andavam pelos 1 162 contos, enquanto o Estado recolhia apenas 1 600 contos em impostos directoos. Isto é, as políticas públicas eram exercidas fundamentalmente pelas pelo clero e a nobreza, do ensino à saúde, incluindo a segurança e a defesa. Por outras palavras, por cá, tanto foram os liberais que implantaram o Estado como, depois, vai ser Salazar a instituir o que, meio século antes, fora semeado por Bismarck. Tal como, depois, vão ser os socialistas de Soares a pôr o socialismo nacionalizador na gaveta e a iniciar a era das privatizações e de acordos neofeudais com as forças vivas de uma economia privada que nos condicionou sem mercado. Infelizmente, a peneira das ideologias não consegue tapar-nos o sol de um dos nossos falhanços estruturais: a existência de uma classe média geradora de receitas fiscais, porque ela é cerca de um quarto dos que estão abaixo do limiar da pobreza e paga mais de metade dos impostos. Daí o perigo da insustentabilidade do sistema, onde quase um milhão de eleitores bailarinos costumam passar do PS para o PSD, e vice-versa, os tais “self made men” que ainda confiam que o aparelho de poder vai tratar desigualmente o desigual, premiando o mérito e combatendo o principal inimigo do Estado e do social: a desigualdade da herança, da cunha e da compra do poder.

Ago 06

Farpas

Os clubes históricos, já sem direitos económicos, são como as velhas nações endividadas. Têm os alvarás, mas são obrigados a alinhar apenas com jogadores estrangeiros, para poderem competir na ilusão do jogo. Mas os adeptos gostam. Pagam as quotas, compram bilhete para ir ao estádio ou, fazem como eu, consomem a droga pela televisão, sempre para gáudio dos intermediários.

Um país unânime numa opinião ou num hábito, não seria país, seria gado, dizia Pessoa. Um país repartido em cinco opiniões em redil pode transformar-se apenas numa pluralidade de gados.

O Estado são eles. Nós apenas votamos e depois entramos em suspensão de cidadania, apenas somos auditores, salvo no caso do pagamento das taxas, dos impostos, das portagens. As velhas canalizações da representação política continuam enferrujadas. Eles agora até já são a sociedade civil.

Três horas de conversa de Seguro com Passos começam a dar alguns frutos, para além da votação sobre o orçamento rectificativo. Esperemos que dure até depois do Natal. Para que o desacordo possa ser sustentável e vivo.

Secretas. Já repararam que, neste jogo de soma zero, perdemos todos. Menos as secretas dos outros, a quem convinha que Portugal perdesse poder.

Grande parte das coisas políticas tem a ver com as realidades que não se conseguem vislumbrar sem símbolos. E todos os símbolos, como a pátria ou a humanidade, são, para um vesgo, coisas ridículas. São como as cartas de amor. Que são ridículas. Mas mais ridículo era não escrevermos cartas de amor. E suicida era mesmo não amarmos.

O partido de Karl Marx era o social-democrata O movimento de Salazar era a democracia-cristã. O resto é literatura de justificação, ou música celestial. Só os burros é que não mudam. Mas há quem goste de gato por lebre, ou da banha de cobra. E a manipulação compensa.

Há umas semanas, eram os financeiros que ocupavam o “agenda setting”. Hoje é a Caritas e a União das Misericórdias. Tanto uns como outros são efectivos especialistas na respectiva tecnocracia, fundada em vastas organizações, complexas e hierarquizadas, com uma nova oligarquia, mais dependente do aparelho de Estado, do que a que brotava da concorrência de pequenas unidades autónomas.

Não devemos brincar com coisas sérias, como a pobreza. Mas quando leio o anúncio de Mota Soares (“O Programa de Emergência Social (PES) deverá chegar a três milhões de pessoas”), tenho de concluir liminarmente que passámos de dois para três milhões de portugueses abaixo do limiar da pobreza. Se assim for, é uma vergonha nacional!

Desejo sinceramente que o Mota Soares e o PES tenham êxito. Um novo Estado Social contra o falhado Estado Social, por causa das leis do Estado e das instituições do Estado é o melhor dos exercícios a que nos podemos dedicar. Embora fosse mais reformista mudar as leis e reformar as instituições, evitando que o normal continue anormal. Poupávamos mais.

O discurso de Mota Soares, naturalmente em solidariedade com Marco António, e, portanto, cumprindo um plano do governo, constitui a mais explícita confissão do falhanço, não do Estado Social, mas na gestão estadual das políticas públicas de luta contra a pobreza, a doença e a exclusão social. O exemplo do lar não aberto por ter um vão de 2,5 metros, quando a lei impõe 2,7 impõe que se mude a lei, não que se fure a lei! Para ganharmos todos.

Quando o senhor Padre Maia e o meu amigo Manuel Lemos prometem gerir melhor os meios públicos para bem de todos, não percebo a razão pela qual não lhes confiamos, nem que seja em concessão de emergência, a gestão do próprio todo? Porque eu quero que o Estado seja exactamente o de lei igual para todos, tratando desigualmente o desigual, isto é, fazendo justiça.

Ai de nós, e do governo, se chegarmos à conclusão que estes publicitários são mesmo uns exagerados! O governo entrou em zona de alto risco e não me incomoda nada se tiver êxito nos atalhos escolhidos. Podem estimular que todos sigam até ao fundo da questão, matando as vacas sagradas.

Desde 1717 que qualquer sociedade liberal ou democrática sabe, como alguns proclamados liberais e democratas parecem desconhecer, que uma sociedade secreta iniciática não pode ser uma sociedade secreta política. Até na Noruega, onde os 20 000 maçons são publicamente escrutináveis. Sempre que se confundem os planos, de um lado e de outro, há um risco de regresso à intolerância, ao fanatismo e à ignorância.

Quando o jovem Afonso Costa, na sua dissertação académica de 1895, A Egreja e a Questão Social, assumia o hibridismo da colectivização social, mas sem estatização da economia, ele estava a profetizar um modelo que se tornou dominante entre nós, do salazarismo ao presente “ismo” do social e das respectivas armadilhas. Porque todos os que podem, livremente, fazer, da política um distanciado objecto de análise, conseguem notar que, na prática, as teorias dos programas eleitorais e das ideologias invocadas são sempre outras. Basta recordar, seguindo Vitorino Magalhães Godinho, que, em 1832, os rendimentos das ordens religiosas andavam pelos 1 162 contos, enquanto o Estado recolhia apenas 1 600 contos em impostos directoos. Isto é, as políticas públicas eram exercidas fundamentalmente pelas pelo clero e a nobreza, do ensino à saúde, incluindo a segurança e a defesa. Por outras palavras, por cá, tanto foram os liberais que implantaram o Estado como, depois, vai ser Salazar a instituir o que, meio século antes, fora semeado por Bismarck. Tal como, depois, vão ser os socialistas de Soares a pôr o socialismo nacionalizador na gaveta e a iniciar a era das privatizações e de acordos neofeudais com as forças vivas de uma economia privada que nos condicionou sem mercado. Infelizmente, a peneira das ideologias não consegue tapar-nos o sol de um dos nossos falhanços estruturais: a existência de uma classe média geradora de receitas fiscais, porque ela é cerca de um quarto dos que estão abaixo do limiar da pobreza e paga mais de metade dos impostos. Daí o perigo da insustentabilidade do sistema, onde quase um milhão de eleitores bailarinos costumam passar do PS para o PSD, e vice-versa, os tais “self made men” que ainda confiam que o aparelho de poder vai tratar desigualmente o desigual, premiando o mérito e combatendo o principal inimigo do Estado e do social: a desigualdade da herança, da cunha e da compra do poder.