Chegou o tempo de perpectivarmos personalidades como Manuel Fernandes Tomás sem aqueles facciosismos historiográficos que deles fazem pretexto para interpretações retroactivas ou revisionismos que ora os deificam, ora os diabolizam. Porque todos foram intensamente amados ou odiados, segundo as concepções do mundo e da vida, ou as circunstâncias vindouras. A complexidade dos nossos egrégios avós não pode ser apenas medida pelas lentes analíticas das nossas ideologias, dos nossos medos ou das nossas esperanças.
Aqueles que dividem o mundo entre os bons e os maus, entre os patriotas e os traidores, entre os progressistas e os reaccionários, não conseguem ascender à necessária serenidade que nos pode permitir sentir a profundidade da tradição, entendida como aquelas algemas que nos podem libertar, permitindo a permanência na renovação das saudades de futuro que vão além de passados ou futuros presentes. A criatividade da história sempre exigiu vivê-la como emergência das três unidades do tempo e sempre implicou unirmos o que anda disperso.
Conheço as peças historiográficas que transformaram Gomes Freire no vazadouro dos impropérios contra o demoliberalismo e que sobre ele lançam o ferrete de traidor. São exactamente os mesmos que nem sequer reparam que Gomes Freire foi vítima de um assassinato político que, apesar de ser processualmente institucionalizado pelo ocupante, não deixa de poder qualificar-se como consequência do terrorismo de Estado.
A geração de Gomes Freire, ao liderar o processo conspiratório contra o pretenso protector inglês, semeou com a sua vida a conseguida regeneração de 1820. Uma revolta inequivocamente nacionalista e liberal que continuou as ideias e a acção do Conselho Conservador e preparou o Sinédrio. Julgo que no século XXI importa compreender as turbulência pós-revolucionária de há dois séculos. E fazer um paralelo entre homens como Gomes Freire e Fichte que, depois de cederem à pretensa “bela ordem” napoleónica, depressa aderiram à fogueira romântica das libertações nacionais e das primaveras dos povos.
Tal como os defensores das perspectivas liberais da unificação alemã e da unificação italiana, há que realçar todos os que promoveram a conciliação da ideia de nação com o sonho da casa comum europeia. E do cosmopolitismo com a o republicanismo, quando este nem sequer era antimonárquico, à maneira de Kant. Porque quem virá a ser a efectiva prisão dos povos será a Santa Aliança que estabeleceu o princípio da hierarquia das potências.
As ideias assumidas por essa geração têm mais a ver com as sementes de direito das gentes que vai ser expressa pelo krausismo, como, entre nós, foi praticado por um Vicente Ferrer Neto Paiva. Por todas aquelas libertações patrióticas do dividir para unificar que geraram os posteriores federalismos de maçons e de católicos, de liberais e de socialistas que, conciliados depois da Segunda Guerra Mundial, constituem os esteios da presente unificação do projecto europeu.
Tal como Gomes Freire, Fernandes Tomás, tal como D. Pedro IV, Passos Manuel, D. Maria II, Sá da Bandeira, Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, integram a honrosa lista dos pais-fundadores do Portugal Contemporâneo, azul e branco, que permitiu mais de um século de continuado liberdadeirismo. Denegri-los em nome do ódio e do revisionismo histórico é removermos da nossa memória uma das fundamentais pedras vivas da tradição.
Pior ainda: não cultivar com o afecto da emoção esta comunidade das coisas que se amam, chamada nação, é extirparmos reservas morais da pátria e da liberdade. Por mim, seguidor do Conselho Conservador e do Sinédrio, precisamos de revoluções que sejam restaurações da lusitana antiga liberdade. Precisamos de reaprender a palavra regeneração, conjugada pelos mártires da pátria, como Gomes Freire.
”Não é necessária muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenham ou sustentem. Num, a força das leis, no outro, o braço sempre levantado do príncipe, regulam ou contêm tudo. Mas num Estado popular é necessário um grau mais elevado que é a virtude entendida como uma renúncia a si mesmo, que é sempre uma coisa muito dolorosa” (Montesquieu).
Convém sublinhar que a religião dominante em Portugal não é, infelizmente, a católica. “Em Portugal, não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e disfarçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cívica, no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito” (Almeida Garrett)
“Quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se passa como quando um homem manipula a vontade (Simone Weil). “Porque a virtude sobrenatural da justiça consiste, se se é o superior na relação desigual de força, em conduzir-se exactamente como se houvesse igualdade” (Idem).
Grande parte das coisas políticas tem a ver com as realidades que não se conseguem vislumbrar sem símbolos. E todos os símbolos, como a pátria ou a humanidade, são, para um vesgo, coisas ridículas. São como as cartas de amor. Que são ridículas. Mas mais ridículo era não escrevermos cartas de amor. E suicida era mesmo não amarmos.
Desde 1717 que qualquer sociedade liberal ou democrática sabe, como alguns proclamados liberais e democratas parecem desconhecer, que uma sociedade secreta iniciática não pode ser uma sociedade secreta política. Até na Noruega, onde os 20 000 maçons são publicamente escrutináveis. Sempre que se confundem os planos, de um lado e de outro, há um risco de regresso à intolerância, ao fanatismo e à ignorância.
Falar de Manuel Fernandes Tomás, aqui e agora, é tratar de um símbolo.
Manuel Fernandes Tomás é nomeado em 1801 juiz de fora em Arganil, aqui se mantendo até 1805.
Manuel Fernandes Tomás é nomeado em 1805 superintendente das Alfândegas nas comarcas de Aveiro, Coimbra e Leiria, mas, desgostoso, retira-se para uma quinta que possuía em Alhadas, Figueira da Foz.
Manuel Fernandes Tomás participa, na Figueira da Foz, na expulsão da guarnição francesa do Forte de Santa Catarina (22 de Junho de 1808). É, depois, nomeado provedor da comarca de Coimbra (até 1810).
José Liberato é preso na cadeia da Universidade de Coimbra (1810). Passa, em seguida, para um cárcere privado no Convento de Santa Cruz, onde é visitado por Manuel Fernandes Tomás.
Manuel Fernandes Tomás passa a desembargador da Relação do Porto (1811). José Ferreira Borges, advogado da Relação do Porto.
Manuel Fernandes Tomás volta a Coimbra em 1812, onde vai estudar, investigar e escrever, só assumindo funções no Porto em 1814. A sua casa transforma-se numa espécie de cenáculo.
Reactivados os trabalhos maçónicos no interior de Portugal (1813), destacando-se a acção de Manuel Fernandes Tomás na zona de Coimbra e de Mouzinho da Silveira em Setúbal.
Manuel Fernandes Tomás também se instala no Porto, como desembargador da Relação (1814)
Manuel Fernandes Tomás publica pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1815, o Repertório Geral ou Índice Alphabetico das Leis Extravagantes.
Constituído o Sinédrio (22 de Janeiro de 1818). Liderado por Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho (1782-1856), com José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana. Vão entrar, depois, Duarte Lessa, José Maria Lopes Carneiro, José Júlio dos Santos Silva e José Pereira de Menezes (JP I 297 segs.).
A república dos portugueses, que tinha sido ocupada e protegida por potências estrangeiras, assume-se politicamente como Reino Unido de Portugal e do Brasil, instituído em 1816, e com a capital no Rio de Janeiro, enquanto as elites estão repartidas pela emigração, entre Londres e Paris, donde vão emitindo gazetas que continuam uma dialéctica facciosa, entre os que advogam o modelo constitucional anglo-saxónico e os que preferem os galicismos políticos, desde a moderação pós-napoleónica ao saudosismo revolucionário.
O velho reino, com sede em Lisboa, com cerca de três milhões de habitantes, tem cerca de 200 000 pessoas na capital e 60 000 no Porto, sente-se órfão e começa a visualizar-se como simples colónia do Brasil, tendo até de pagar com impostos e soldados as expedições que, do Rio de Janeiro, se fazem contra a Guiana e Montevideu. E as gazetas dos emigrados, especialmente as provenientes de Paris, atacando as decisões do Congresso de Viena, denunciando William Carr Beresford (1768-1854) e criticando a dependência face ao Rio de Janeiro, geram um ambiente de exaltação patriótica, onde se confundem os pretéritos absolutistas e os futuros liberais num nacionalismo regenerador, onde os antigos colaboracionistas com os franceses zurzem agora nos que apoiam a protecção britânica. É neste ambiente que surge o motim de Gomes Pereira Freire de Andrade (1752-1817) em 1817, ponto de partida para a revolução desencadeada a partir de 24 de Agosto de 1820.
Regeneração – Revolta liberal no Campo de Santo Ovídio, no Porto, promovida pelo Sinédrio, liderado por Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho, criando-se imediatamente uma Junta Provisional de Governo Supremo do Reino (24 de Agosto). Entre o Porto e Lisboa já se usa o chamado telégrafo de tábuas, pelo que as novas chegam à capital quase de imediato.
●De escravos a cidadãos – Escravos ontem, hoje livre; ontem autómatos da tirania, hoje homens, ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos, qual seria o vil (não digo bem), qual seria o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome Liberdade? Tal foi Portugal, tal o torna a ser… das ruínas, das cinzas de um governo representativo se elevou o formidável colosso da tirania ministerial. Os Portugueses, declarados livres nas Cortes de Lamego e de Lisboa, foram escravos de homens vis, ambiciosos, iníquos, insaciáveis (Almeida Garrett, em O Dia Vinte e Quatro de Agosto).
●Partido da tropa – Configura-se, entre as chefias dos revoltosos, uma facção de líderes militares que tanto hão-de ser furiosos radicais de esquerda, como também extremistas apostólicos, quando apenas eram movidos por motivos corporativos, querendo a demissão dos oficiais ingleses e ficando satisfeitos com o regresso do rei e a convocação de Cortes.
●Revolta em Lisboa – Desencadeada por Aurélio José Morais, com o apoio de Bernardo Sá Nogueira, futuro Sá da Bandeira (15 de Setembro). Comemorava-se mais um aniversário da vitória sobre os franceses em 1808. Em 27 de Setembro, fusão das juntas do Porto e de Lisboa em Alcobaça.
●Revolução ou Restauração? Ao contrário dos constantes discursos de justificação de certa historiografia, que continua a amarrar os portugueses a sucessivas revoluções frustradas, a chamada revolução de 1820, nas suas boas intenções, tenta assumir-se como uma espécie de regeneração, visando restaurar a liberdade perdida, tanto pelo despotismo ministerial do que virá a designar-se por absolutismo, como pelas invasões e protecções estrangeiras que se sucederam à nossa forçada intervenção nas guerras napoleónicas.
●Os nossos direitos e os dos nossos pais – Segundo as próprias palavras do Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, emitido em 15 de Dezembro de 1820, redigido por Frei Francisco de São Luís, nome beneditino dado Francisco Justiniano Saraivaö (1766-1845), o futuro Cardeal de Lisboa: não é uma inovação, é a restituição das suas antigas e saudáveis instituições, corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado; é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza lhes concedeu, como concede a todos os povos; que os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram, e de que somente há um século foram privados, ou pelo errado sistema de governo, ou pelas falsas doutrinas com que os vis aduladores dos príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções de direito público. As cortes e a constituição não são coisa nova nestes reinos: são os nossos direitos e os dos nossos pais.
●Militares contra magistrados – Segundo narra Xavier de Araújo, em Revelações e Memórias para a história da revolução de 1820, ter-se-á gerado, em Alcobaça, um conflito entre Sebastião Drago Cabreira e José da Silva Carvalho (1782-1856), com o primeiro a querer partir imediatamente para Lisboa, convocando o povo e o juiz da Casa dos Vinte e Quatro, sem se importar com a sorte da Junta do Porto.
Os dois pedem que Frei Francisco de São Luís arbitre a disputa e este convoca então o coronel Bernardo Sepúlveda, o qual é adepto de se acabarem as discórdias, marchando todos juntos até Lisboa, onde se convocariam Cortes, a quem se entregaria o governo do reino.
Os adeptos da mudança, que ainda não se qualificam como liberais, mas antes como regeneradores, vão viver sucessivos conflitos no próprio núcleo director do movimento, com o partido militar, encabeçado por António da Silveira e Sebastião Cabreira, a opor-se ao partido dos magistrados, liderado por Manuel Fernandes Tomás (1770-1822), com o apoio de Francisco de S. Luís, os chamados becas e os rábulas. Aliás, os primeiros têm apenas como objectivo a expulsão de Beresford e dos oficiais ingleses, com o regresso do rei e a convocação das Cortes à maneira tradicional.
1821
Quando há 3 501 850 almas no continente e nas ilhas, nota-se um profundo divórcio entre o país das realidades e o grupo dominante no país intelectual que cria o nominalismo proveniente do poder supremo. A profunda tradição libertacionista, da arraia miúda de 1383-1385, do sebastianismo dos manuelinhos de Évora e da tradição reinventada das Cortes de Lamego, que sustentou o Primeiro de Dezembro, acaba por ser usurpada pelas facções da direita e da esquerda que se instalam no centro político. À esquerda, as facções jacobinas chegaram a pedir a Junot um rei da família de Napoleão. À direita, o congreganismo dito apostólico, sucumbe ao encanto madrileno da Santa Aliança. O nacionalismo populista fica sem causa e sem liderança e somos arrastados para o desespero de guerras civis armadas e para posteriores pazes, onde os vencedores fazem orgias de confiscos e vindictas, enquanto continuam as guerras civis ideológicas. Por cá, segundo as palavras de José Agostinho, era pungente e geral a miséria. Fervilhavam as quadrilhas e os bandidos. A anarquia era flagrante e infame. A população enxovalhava brasileiros e galegos..
Primeira reunião das Cortes Constituintes em 24 de Janeiro de 1821.
Em 9 de Fevereiro, é apresentado projecto de bases da constituição. O presidente da Comissão que o elaborou diz que os membros da comissão, bem longe de se embrenharem no labirinto das teorias dos publicistas modernos, foram buscar as principais bases para a nova Constituição ao nosso antigo Direito Público, posto acintemente em desuso pelos Ministros despóticos que lisonjeavam os Reis à custa do povo, logo aprovado por decreto das cortes de 9 de Março. Em 15 de Fevereiro, amnistia para os crimes políticos desde 1807
Manuel Fernandes Tomás nas Cortes, na sessão de 26 de Fevereiro: Nós não estamos nas mesmas circunstâncias [da Inglaterra], precisa-se de fundar de novo este edifício, é preciso deitá-lo abaixo, e fazê-lo desde os fundamentos; e por isso proceder de um modo diferente do que a Inglaterra procedeu.
Em 5 de Abril extinguem-se os serviços pessoais e os direitos banais, por proposta do deputado Soares Franco.
Em 7 de Abril, extinguem-se o Santo Ofício, Inquisições e Juízes do Fisco, sob proposta de Simões Margiochi.
Em 25 de Abril, os bens da coroa passam a considerar-se bens nacionais, porque pertencem à Nação.
●A procura das novas cores nacionais – Discussão nas Cortes sobre o laço nacional. Até então vigora azul e encarnado que o rei qualificara como as cores da sua libré. O deputado Manuel Gonçalves Miranda propõe as cores azul e amarela, de origem maçónica. Aragão Morato consegue vencer a proposta, invocando o azul e branco, as cores do primeiro escudo português, desde o Conde D. Henrique: fiquei com a honra de ter substituído a um laço moderno por outro que, desde o princípio da monarquia, fora reputado realista e nacional (21 de Agosto).
Tem a ver, em termos simbólicos, com a luta de São Jorge contra o Dragão (o catalão Sant Jordi), no combate entre o Céu e a Terra, onde o inimigo é representado pelo vermelho e verde. O azul e o branco são o desprendimento relativamente aos valores do mundo. Tanto são as cores da Virgem Maria, como foram as da Maçonaria e, sincreticamente, do nosso liberalismo monárquico. As cores foram aprovadas como cores nacionais em 22 de Agosto de 1821, segundo proposta formalmente apresentada pelo não-maçon Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, com o apoio dos deputados maçons, já que eram usadas como símbolo dos apoiantes do vintismo, onde é um acaso elas serem típicas do Rito Francês, o único até então usado em Portugal. Curiosamente, tinha havido outras cores propostas, o verde-salsa e o amarelo-ouro, mas, desta, por um maçon, o futuro grão-mestre Manuel Gonçalves de Miranda, em 14 de Agosto. Aliás, as cores do azul e branco chegam a ser definidas como as cores invertidas de um avental de Mestre maçon. E também não é simples acidente do capricho o terem sido proscritas, com proibição do respectivo uso no vestuário, em 1828, quando também se mandaram destruir as roupas azuis, ou cosidas a azul. Talvez por tantas recordações é que elas passaram a ser nacionais com a regência de Angra. E, acaso por acaso, o azul e amarelo hão ser as cores do próprio Brasil. Porque a alma liberta-se e volta-se para o além, em direcção ao ouro que virá ao encontro do branco, símbolo do virginal, durante a ascensão no azul celeste.
É jurada pelos deputados em Lisboa, em 23 de Setembro de 1822, a primeira constituição escrita portuguesa. Em 1 de Outubro, D. João VI jura a Constituição. Em 4 de Novembro encerram as Constituintes.
Morte de Manuel Fernandes Tomás, na Rua do Caldeira, nº 2 em Lisboa (19 de Novembro). Estava na penúria e teve de levar-se a cabo uma subscrição pública.
Regeneração
Etimologicamente, novo nascimento. De regeneratio, isto é, re mais generatio, acção de gerar novamente, isto é a reparação ou restauração de algo que estava destruído. Morrer para a vida velha e nascer para uma vida nova. No Novo Testamento, Cristo diz a Nicodos que é preciso nascer de novo.
Do latim initium, enquanto começo ou fundamento, um nascer de novo de carácter psíquico, ou espiritual: renatus in novam infantiam.
Em sentido amplo, é um processo de transformação do indivíduo através de um esforço de reflexão, nomeadamente através da interpretação dos símbolos e num ambiente de comunhão de crenças, visando um aperfeiçoamento do conhecimento e da consciência, e exigindo uma evolução intelectual, moral e espiritual. Implica um esforço tanto individual como comunitário, pois dá unidade e sentido a uma procura individualmente enraizada, mas não ultrapassa os limites da revelação e dos sacramentos de uma religião (initium novae viae).
Trata-se de um psicodrama que, conforme Louis Pauwels, dá ao adepto a sensação que se despoja da sua consciência ordinária; de que morre como pessoa ligada a paixões, apetites, opiniões, interesses, etc., que afectavam tanto a sua imagem privada como a sua imagem social.
Segundo Mircea Eliade (1907-1986), qualquer forma de cosmos (universo, templo, casa, corpo humano) tem sempre uma abertura superior que torna possível a passagem de um modo de ser para outro, o que implica penetrar no ventre do monstro, equivalendo a uma regressão no instinto primordial, na Noite cósmica.
De qualquer maneira, o ritual tem sempre três tempos: o rito da separação (o caso da separação da aldeia), o rito da transformação (operação simbólica de passagem de um estado inferior para outro considerado socialmente superior); e rito de reagregação (depois das purificações, o separado regressa triunfalmente à aldeia).
Pauwells considera que o esoterismo se baseia em três princípios: o homem do mundo secular não é um homem realizado; existem uma sabedoria e uma verdade anteriores às formulações dogmáticas religiosas, depositadas desde sempre no homem; ao longo da aventura humana manifesta-se uma vontade superior e a história obedece a leis cíclicas (LQYC 216-217).
Aliás, a os ritos têm também um valor educativo, pelo que o iniciado ouve, dos mais velhos, as histórias do grupo, nomeadamente da fundação, o significado dos símbolos e outros segredos, apesar de ser sujeito a várias provações: elas facilitam a destruição da antiga personalidade, ao mesmo tempo que fortificam o novo ser; aumentam as forças vitais do iniciado, desenvolvem a sua coragem e a sua resistência à dor; dão-lhe, enfim, o sentido da disciplina social e da obediência aos anciãos.
O iniciado é o que vive a iniciação, e não apenas o que por ela exteriormente passou. O que tem a consciência de, por ela, ter sido despertado e que assim, nasceu de novo. Porque iniciar é o mesmo que fazer morrer, transpondo a cortina de fogo que separa o profano do sagrado. Como salienta Plutarco, então, o homem, desde então perfeito e iniciado, liberto e caminhando sem algemas, celebra os Mistérios.
Também a alquimia se assumia como a arte da transmutação dos metais, onde a obra era sempre uma metamorfose. Antes, o neófito, aquele que vai, com a iniciação, nascer de novo, numa espécie de regresso ao ventre materno, ao sítio da noite cósmica, pelo que tem de preparar-se para a conversão, podendo ser colocado numa caverna, no seio da terra. Também no cristianismo é a passagem do homem velho ao homem novo e os monges do deserto, sofriam as tentações e provações, onde as forças do mal eram os demónios torturando o homem, como em Santo Antão.
E é pela Graça que o próprio homem é escolhido, em vez de escolher, visando entrar na eternidade. Para Fernando Pessoa, o verdadeiro significado da iniciação é o ser este mundo visível em que vivemos um símbolo e uma sombra. Porque alguns homens, depois de terem sido iniciados, continuam profanos (Boucher, 1948, XIV).
Há um brocado, mas sem lei, que diz: uma vez maçon, sempre maçon, que não tem o significado imediato que dele pode extrair-se: a vida iniciática é uma vida e não uma doutrina – isto é, um estado de alma de emoções e intuições, que não de ideias ou de temas (Fernando Pessoa, TRL, 328).
A iniciação, segundo este poeta, pode ser exotérica, simbólica ou externa, esotérica, intelectual ou exterior à interna, e divina, vital ou interna.
A primeira é a de tipo mais baixo: é a iniciação dada a quem propriamente se não encaminhou para ela, nem para ela se preparou.
A segunda, tem que ser buscada pelo discípulo, e por ele desejada e preparada em si mesmo. Já a terceira vem directamente, e por cima de todos, das mesmas mãos, do que chamamos Deus (TRL, 168 e 177).
Porque, segundo palavras de Louis Pauwels, a qualidade de uma sociedade de iniciados pode medir-se por isto: que cada um dos símbolos empregados cumpra as suas promessas, isto é, que revele significados sucessivos, complementares e ascendentes, que funcione como o plano de uma verdade sobre a qual o espírito possa trabalhar analogicamente até à eternidade (id. 213).
Ou, como assinala Rudolf Steiner, a iniciação ocidental não se faz como a oriental, em estado de sono, mas antes em estado de vigília, onde há um escutar simplesmente, sem fé servil, mas também sem oposição sistemática, deixando agir as ideias sobre si e observando os seus efeitos (apud João Antunes, Oedipus, 23-24).
São tradicionais as denúncias da Maçonaria que a colocam sob o signo do satanismo. Outros consideram-na mera organização secreta mafiosa visando o negocismo, enquanto não faltam os que a reduzem a mera sociedade de auxílio mútuo, para não falarmos dos que ainda a continuam a ligar à conspiração judaica e bochevista, ou o imperialismo anglo-americano.
Por outras palavras, se alguns a vêem como um grupo de velhos inofensivos que gostam de brincar aos disfarces, outros referem-na como uma cabala secreta de agentes do poder que governam o mundo, para repetirmos palavras de Dan Brown.
Conforme Fernando Pessoa, o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com muita má-fé (1935).
O segundo erro em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida.
O parecer da lei salazarista antimaçónica diz que a Maçonaria, e especialmente a Maçonaria em Portugal, deve ser reprimida, porque pretende substituir a civilização cristã pela civilização maçónica, aspira à dominação do Estado e possui organização exagerada e perigosamente internacionalista. Porque tem como base ideal igualitário, sem superioridades sociais, nem distinção de classes, baseada no racionalismo ateísta dos materialistas, ou na religião humanitária da razão e da natureza herdada nas antigas tradições esotéricas, transmitidas pela cabala judaica.
Porque numa campanha anti-maçónica não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência – audácia porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir estão sob um sigilo que lhes inibem a correcção.
E glosando Pope, assinala: os parvos entram onde os anjos temem entrar.
O nosso Padre Manuel Fernandes Santana (s.J), em 1908, tudo explica pelo panteísmo e pela Cabala, o culto da natureza sob formas simbólicas de repugnante obscenidade, a torpe falolatria, gerando uma turba imunda de falofaros, numa espécie de prostituição sagrada, discriminando como causas, a heresia sociniana, os templários, propagadores do maniqueísmo e do gnosticismo, o canal pelo qual as práticas e ritos infames do politeísmo passavam do velho mundo pagão para o mundo cristão. Citando Monsenhor Meurin, acrescenta que o processo tem como agente misterioso o judeu, o verdadeiro fundador e inspirador secreto da Maçonaria, através de Satanás, o anjo decaído que seduziu os povos antigos pelas suas doutrinas mentirosas; o paganismo seduziu o judeu hipócrita e obstinado; o judeu seduziu e corrompeu os templários e continua hoje a reduzir a massa crédula dos mações.
Basta recordar que este tipo de delírio bem poderia dizer do próprio cristianismo que este, no dia pagão do deus do sol Rá, os crentes se ajoelham aos pés de um instrumento de tortura antigo e consomem símbolos rituais de sangue e carne, como expressivamente diz Dan Brown (SP 48).
Refira-se que Fernando Pessoa, em 30 de Março de 1935, diz-se fiel à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta de Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria. Mas salienta que foi iniciado por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores a (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal (AQ III, 425). Porque, pensar é existir com os deuses e com a substância visível e harmónica do mundo. Agir e existir com os homens e a natureza criada (id. 116). Porque o livre-arbítrio, a graça, o amor – são expressões cujo sentido se pode chamar um sentido, não tem nada que ver com a nossa estrutura mental (id. 117).
O companheiro de Manuel Fernandes Tomás, José Maria Xavier Araújo (1786-1860), antigo membro do Sinédrio, publica Revelações e Memórias para a história da revolução de 24 de Agosto de 1820, e de 15 de Septembro do mesmo anno, Lisboa, Rollandiana, 1846
Cadáver de Manuel Fernandes Tomás, morto em 1822, é instalado no Cemitério dos Prazeres em Lisboa, num jazigo de família, em 1868.
Manifestação de homenagem a Manuel Fernandes Tomás, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa (24 de Agosto de 1884). Republicanos conseguem mobilizar cerca de 50 000 pessoas. Há cenas macabras de manifestações anticlericais, com quebras de cruzes e sacrilégios vários (LO, p. 52).
José Elias Garcia, Grão-Mestre interino do Grande Oriente Lusitano Unido (1884-1886). Assume-se como defensor do partido liberal de Manuel Fernandes Tomás, Passos Manuel e Sá da Bandeira (4 de Maio de 1885).
Inaugurada a primeira pedra da estátua de Manuel Fernandes Tomás na Figueira da Foz em 22 de Setembro de 1907, apoiada pelo rei e governo e com discursos de António José de Almeida e João Pinto dos Santos.
Do grego symbolon, isto é, parte de um objecto partido que se apresentava como sinal de identificação, justapondo-se todos os pedaços.
Normalmente, usava-se uma tábua de argila e depois de inscrita uma informação secreta, partia-se em vários pedaços que se repartiam por vários locais secretos. Por extensão, diz-se da representação de uma ideia em virtude de uma correspondência ou uma analogia.
Para Carl Gustav Jung (1875-1961), o que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós.
Porque uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto inconsciente mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. Logo, os símbolos não se podem confundir com os signos, constituindo uma concepção que ultrapassa toda a interpretação concebível.
O símbolo, segundo Bayard, permet d’éveiller une idée (29). Não é como o signo, a expressão que se usa para designar qualquer coisa conhecida (TP 470). Apenas é vivo o símbolo que, para o espectador, é expressão suprema do que é pressentido, mas ainda não reconhecido. Incita, portanto, o inconsciente à participação…traduz um fragmento essencial do inconsciente… (TP 471).
Tem uma natureza infinitamente complexa, compondo-se de dados recebidos de todas as funções psíquicas e, portanto, não é racional nem irracional. Tem, portanto, um sentido divinatório, face à sua significação escondida, fazendo vibrar tanto o pensamento como o sentimento, numa singular plasticidade. O símbolo vivo não pode aparecer num espírito obtuso e pouco desenvolvido, pois este apenas se contenta com um símbolo já existente, tal como lhe é oferecido pelo tradicional. Só a paixão de um espírito altamente desenvolvido, para quem o símbolo oferecido já não é a expressão única da união suprema, pode criar um símbolo novo (TP 473).
Os símbolos também podem ser instrumentos para uma reflexão iniciática e, mesmo aqui, apenas reenviam para um novo universo complexo, o das significações intelectuais, morais e espirituais que ultrapassam a disciplina das engenharias dos conceitos ou os manuais da mera racionalidade intelectual.
Nem seque se limitam aos livros de instruções de certos catecismos esotéricos que tentam disciplinar de forma eclesiástica e escolástica o esoterismo que teme a metáfora e a alegoria, bem como o paradoxo e a contradição do unir pela emergência, anteriores choques da divergência e da convergência, naquilo que, em linguagem directa se pode qualificar como liberdade. Jean-Pierre Bayard considera que o simbolismo é a linguagem da ascese.
Para além do tempo e do espaço, liga a dimensão individual quotidiana, psicológica à escala cósmica, supra-individual. Pode variar na sua expressão, nas suas representações exteriores, mas os seus fundamentos permanecem imutáveis. Porque os símbolos não são simples imagens passivas, transformadores de energia psíquica, modificam a natureza secreta do homem.
Tem a ver com uma comunidade que se dividiu ou desfez, para a qual o símbolo serve para reunificar ou refazer, unindo o que ficou disperso. Por isso, tem sempre um carácter bipolar, mas trazendo dentro de si a aspiração por um sentido comum, apontando um caminho Emblema ou objecto físico que representa uma entidade mais vasta e quase sempre mais abstracta. Expressão de algo relativamente desconhecido que não se pode atingir de outra maneira (Jung).
Só que o símbolo não é evocação fixa, marcada por um ne varietur, qualquer coisa fixa que se tem de descobrir ou de desenterrar, numa espécie de um Deus escondido que guarda a verdade.
Um signo não natural, consciente ou convencional (Ferrater Mora). Para Fernando Pessoa, designa a figura, marca ou objecto que tinha significado convencional. Podendo ser também um sinal, indício, emblema ou divisa, que pela sua forma ou natureza evoca uma associação de ideias com algo abstracto ou ausente. Para Carl Gustav Jung (1875-1961), tem a ver com a abertura ao mistério: é pelo facto de inúmeras coisas se situarem para além dos limites do entendimento humano que nós utilizamos constantemente os termos simbólicos, para representar conceitos que não podemos definir nem compreender plenamente.
Para Mircea Eliade, os símbolos são o bem comum da Humanidade. Mesmo a fé cristã que assenta numa revelação histórica, isto é, na encarnação de Deus no tempo histórico, considerou, com os Padres da Igreja que a revelação trazida pela fé não destruiria as significações pré-cristãs dos símbolos: apenas lhe acrescenta um novo valor. Aliás, fala-se na Ressurreição comparando-a com a Noite que se deita e o Dia que se levanta. Até se associa o antiquíssimo simbolismo aquático ao Baptismo.
Porque, conforme Bayard, o símbolo permite elevar a procura humana ao sobrenatural… Tem por objectivo ultrapassar a aparência da criação material para atingir o absoluto… O símbolo, que quer dizer, antes de tudo, resumo, quinta essência, caracteriza a profunda e eterna aspiração do homem por aquilo que é por ele desconhecido.
Contudo, retomando Fernando Pessoa, importa observar que o caminho dos símbolos é perigoso, porque é fácil e sedutor, e é particularmente fácil e sedutor para os de imaginação viva. Eles são cheios de ilusões, de devaneios e fraudes, citando os casos de Cagliostro (1743-1795), um charlatão, e Madame Blavatzky, um espírito confuso e fraudoso. Até considera que o Rito Escocês Antigo e Aceite, que não é escocês nem antigo nem aceite – é baseado numa complexa sobreposição de fraudes. De qualquer maneira, vivemos sempre em paradoxo, porque todo o conhecimento humano não é apenas feito por conceitos e sistemas, mas também pelo simbólico e pela imaginação, pensando coisas do imaginário e com coisas que só podem ser pensadas através das representações. E os símbolos são um dos elementos fundamentais da política, porque são eles que sintetizam os objectivos da comunidade, que legitimam os poderes e que mobilizam a própria actividade política.
Como salienta Oliveira Marques, a interpretação dos símbolos deve ser eminentemente individual, cabendo a cada maçon a tarefa de os compreender e sentir no seu significado mais profundo.
Porque, como salienta Pauwels, o símbolo nunca se encontra em estado de fixidez, o respectivo significado amplia-se e aprofunda-se constantemente, porque se convida um iniciado a decifrar continuamente os símbolos, através de uma gama infinita de códigos progressivos. A experiência, a meditação e o tempo revelam os símbolos como coisas vivas cuja vida ascende até ao infinito. E o símbolo não existe senão em virtude desta dinâmica modificadora
Porque se as ciências da natureza determinam, as ciências da cultura caracterizam. Até pela circunstância do fenómeno da cultura estar carregado de significações que ultrapassam a coisa, pelo que o conhecimento só pode fazer-se por aproximações. O homem não vive apenas num universo físico, mas também num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes integrantes desse universo.
Com efeito, o homem tem o poder de construir um mundo próprio. E isto porque, para além da linguagem conceitual, existe uma linguagem do sentimento e das emoções, além da linguagem lógica e científica, existe a linguagem da imaginação poética.
O símbolo, o que faz pensar, segundo Paul Ricoeur, tem sempre três dimensões: a cósmica, a onírica e a poética. Logo, vive entre dois extremos: a hermeneutique de la confiance (a da fenomenologia da religião, que visa a reapropriação do sentido esquecido) e a hermeneutique du soupçon (como na psicanálise freudiana)
Mais não faço do que repetir os dois dois últimos artigos de Fernando Pessoa, em 1935, pouco antes de morrer. Um foi publicado pelo “Diário de Lisboa”. O outro já foi objecto de caça pela Censura. Os que o citam inadvertidamente que os leiam. Mens ag(itat Moll)em. Para os adeptos de certas metalinguagens. Como é difícil ser liberal em Portugal!
Uma última citação de Pessoa, em 1935, para certos pretensos liberais mal reciclados, sobre certas campanhas onde “não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência – audácia porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir estão sob um sigilo que lhes inibem a correcção”.