Um autarca e ex-ministro, desde ontem à noitinha, que é o “day after” de uma tipologia que é comum a outras democracias e a outros Estados de Direito. Uma cultura que apenas se adquire por osmose e que nos deveria ser tão natural como o ar que se respira. O poder não é uma coisa que se conquiste, é mera relação entre o Estado-Aparelho de Poder e o Estado-Comunidade, onde este último, a república, é superior ao primeiro, o principado. O principado não está dispensado da lei que faz, ou pode contribuir para fazer. Só no absolutismo é que “princeps a legibus solutus”. E nem tudo o que o príncipe diz tem valor de lei. Apenas chateia que a voz que pronuncia as palavras da lei e as adjudica pareça muitas vezes impotente, por causa da chicana processualista. Não é apenas a pessoa do autarca que está detida. É também a maioria do eleitorado do concelho que considerou que o normal era haver o normal anormal da impunidade. É, no fundo, a nossa falta de cultura de Estado de Direito, sobretudo quando os candidatos políticos consideram que o voto popular equivale a um julgamento. No nosso modelo de Estado de Direito, nem o povo é absoluto. Porque é tão absoluto o poder de um só como o despotismo de todos. Está constitucionalmente proibida a democracia totalitária. Mas vale mais vermos esse princípio ser aplicado pelo poder judicial, no cumprimento do respectivo dever. A educação pode demorar, mas tem efeitos de difusão de valores, no meio de tanto joio.
Monthly Archives: Setembro 2011
Num jardim, à nossa beira, um presidente, um governo, tudo troikado
Numa noite de Outono amena e doce, o Presidente falou sobre o que “entendeu dever dizer”. Porque 2012 vai ser “de resistência” e “muito difícil”, com prévia audição do Conselho de Estado, depois de sermos “emergência económica, financeira e social” e “à beira da explosão”. Fingindo manter o reflexo condicionado do tecnocrata, deu uma dessas aulas de abstracta conjuntura económica a que nos habituou, com mais economia pura que darwinismo, para que continuemos a ser um “bom aluno”, porque “a Europa precisa do sucesso de Portugal”. Apenas deixou indirectas, bem fortes, sobre o defunto Governo, esse “alguém que ouviu, mas olhou para o lado”, dado que preferiu sobrevoar o “caso grave” de “não disciplina” da Madeira, sem comentar a cinzenta visita que acabou de fazer aos Açores. Até proclamou que o “padrão” da “justiça e equidade fiscal” é o sagrado IRS, o do “legislador” de 1989, isto é, ele próprio. Só foi ligeiro, reformista e ousado na palavra quando desenhou uma estratégia para a Europa. No resto, preferiu autocontemplar-se como o Presidente que exerceu de “forma mais clara” a “magistratura activa”, por causa dos últimos seis meses. E acabou dizendo que temos mais “sorte” e somos mais “felizes” que a Grécia, porque pode haver consenso entre PSD/CDS e PS, através do “diálogo permanente”. Isto é, procurou condicionar Seguro a não ser o indisciplinador, para que haja “esperança” e “imaginação”. Por outras palavras, o Governo pode ser sempre troikado. Só não sabemos é quando.
A autêntica ciência política
Largando certo exílio interno face aos donos do poder do neocorporativismo universitário, fazer um breve esboço avaliativo da presente ciência política portuguesa.
Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.
Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raúl Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo …
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Resta-nos a esperança de um rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha…, que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores. Um rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.
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se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem. Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.
Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.
Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.
Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.
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Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação dessa espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.
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Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.
Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.
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Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda da direita, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencistarepresentada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.
Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.
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Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.
Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.
Alguns exemplos preocupantes, poderíamos anunciar. Com efeito, até o ancestral confronto universitário português entre o humanismo católico e o humanismo laico, um, tendencialmente marcado pelo nihil obstat e outro, mais ou menos maçónico, depois de se perder nos meandros das teorias da conspiração, deixou de ter sentido.
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As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori. Com efeito, em Portugal, mesmo as minorias intelectuais com intervenção na política não cessam de viver em rebanho, para, numa curva da estrada, caírem na tentação de serem conselheiras de um qualquer césar de multidões, como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.
A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e mesmo os que dela estão dependentes foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.
Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, deixam transformar-se em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.
O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, tem levado os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.
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Aliás, o nosso sistema político-partidário constitui um sistema de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole. Isto é, continuamos a dar razão a meia dúzia de autores bem lusitanos, desde Joaquim Pedro de Oliveira Martins a Raúl Brandão, desde Ramalho Ortigão ao próprio Fernando Pessoa, desses que, sem catastrofismos, perceberam Portugal nas suas próprias entranhas e que continuarão perenes enquanto os portugueses forem os inveterados portugueses que somos.
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Os factores de poder que o dito subsistema politico-partidário pode gerir são ínfimos, dado que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências. Da mesma forma, o poder internacional do Estado português não é uma coisa é uma relação, medindo-se menos pela física do poder e mais pela estratégia, pelo que as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades.
Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão, percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que cientificamente temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.
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Quem não tiver consciência desta realidade, está a perder aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano, muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel ter inventado o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin ter inventado a soberania. Seis séculos antes de começar a balbuciar-se a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.
Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.
Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.
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Ora, um professor universitário é um funcionário da comunidade, um servus ministerialis, um escravo da função que lhe foi atribuída, mas que ele deve professar, quando, para tanto, sente uma íntimavocação. Não lhe cabe apenas dar aulas e produzir trabalhos de investigação, nem pode, muito endogamicamente, reduzir-se ao claustro das escolas onde exerce a actividade. Pelo contrário, deve procurar contribuir para que a comunidade, de que é funcionário, possa pensar-se a si mesma, tentando que a universidade se aproxime da vida pública. Mas não pode esperar que o poder instalado seja influenciado pelas suas individualíssimas reflexões, nem ter a tentação de se transformar em institucionalizado opinion maker, sempre dependente da contabilidade equilibrista da mistura da esquerda com a direita, com que os patrões da comunicação social fabricam aquela polarização que lhes convém, para continuarem a controlar o centro, dando uma no cravo e outra na ferradura.
Na universidade não se trabalha para o curto prazo, onde funciona o realismo neomaquiavélico, sempre à procura do mediático e do imediato, sempre com a angústia da finitude e sem preocupação com o eterno. Neste sentido, qualquer universitário deve assumir a coragem de ter que estar em minoria, para poder ascender ao estádio da ciência, do conhecimento, o tal nível epistémico que a mera opinião da conjuntura, mas sem a negar, como estímulo.
A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Se trabalha nas coisas perenes, tem, contudo, que reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço onde se movimenta, porque as essências apenas se realizam através da existência.
Aliás, os mesquinhos detractores dos professores universitários esquecem, quase sempre, este investimento no saber pelo saber, esta consultadoria pública que não cobra honorários nem se integra em gabinetes de projectos subsidiados por fundos públicos, nacionais ou comunitários, onde muitos mercenários se escondem.
Mas quem tem como profissão, e vocação, o pensar a política, só pode procurar aproximar-se de uma qualquer dimensão científica se tentar viver a verdade, dizendo o que, na verdade, pensa. Porque a ciência, enquanto esforço racional que visa fazer ascender a opinião ao conhecimento, não tem que excluir necessariamente o compromisso da opinião, essa força vital nascida de uma concepção do mundo e da vida. Antes pelo contrário!
A autêntica ciência política, enquanto real ciência da política, pode e deve permitir que pessoas livres, com diversas e contraditórias opiniões, assentes nos mais variados subsolos filosóficos, comuniquem entre si, através dos lugares comuns do conhecimento. Mas só há diálogo quando se procuram tais placas giratórias da dialéctica que, tendo como fundações os princípios gerais do pensamento, permitem que as ideias e os valores fecundem criativamente as várias perspectivas das inevitáveis posições parcelares que cada um possui.
UM PRESIDENTE, UM GOVERNO, UMA TROIKA
UM PRESIDENTE, UM GOVERNO, UMA TROIKA
Por José Adelino Maltez
Numa noite de Outono amena e doce, Presidente falou sobre o que “entendeu dever dizer”. Porque 2012 vai ser “de resistência” e “muito difícil”, com prévia audição do Conselho de Estado, depois de sermos “emergência económica, financeira e social” e “à beira da explosão”. Fingindo manter o reflexo condicionado do tecnocrata, deu uma dessas aulas de abstracta conjuntura económica a que nos habituou, com mais economia pura que darwinismo, para que continuemos a ser um “bom aluno”, porque “a Europa precisa do sucesso de Portugal”. Apenas deixou indirectas, bem fortes, sobre o defunto governo, esse “alguém que ouviu, mas olhou para o lado”, dado que preferiu sobrevoar o “caso grave” de “não disciplina” da Madeira, sem comentar a cinzenta visita que acabou de fazer aos Açores. Até proclamou que o “padrão” da “justiça e equidade fiscal” é o sagrado IRS, o do “legislador” de 1989, isto é, ele próprio. Só foi ligeiro, reformista e ousado na palavra quando desenhou uma estratégia para a Europa. No resto, preferiu auto-contemplar-se como o Presidente que exerceu de “forma mais clara” a “magistratura activa”, por causa dos últimos seis meses. E acabou dizendo que temos mais “sorte” e somos mais “felizes” que a Grécia, porque pode haver consenso entre PSD/CDS e PS, através do “diálogo permanente”. Isto é, procurou condicionar Seguro a não ser o indisciplinador, para que haja “esperança” e “imaginação”. Por outras palavras, o governo pode ser sempre troikado. Só não sabemos é quando.
Eu e o medo somos irmãos gémeos
Hoje não há notícias, joga o Benfica. Hoje não há parangonas, o governo faz cem dias. Mesmo que Obama diga que crise financeira da Europa assusta o mundo. Anda tudo troikado. Mas falou o novo Leviathan, em três minutos de confissão televisiva de corretor bolsista. Os governos não mandam. Os mercados, também não. Quem manda é o medo. E a nova vontade de poder é ir para cama em orgias solitárias de ganhar dinheiro. Razão tinha Thomas Hobbes, nascido antes do tempo, um pouco antes da chegada da Armada Invencível: “eu e o medo somos irmãos gémeos”. Quem está dependente de planos de resgate, estabelecidos pelos cobradores do fraque do mundo a que chegámos, deve compreender que só podemos discutir neoliberalismos e proteccionismos quando voltarmos a ser homens livres de um povo livre, sustentável, na interdependência. Por enquanto, há governança maioritariamente exógena, sem espaço de autogoverno, até das algemas que libertam. Só pela libertação do indivíduo se reaprende a autodeterminação de um povo. Ser indiviso, isto é, indivíduo, tem um preço. Albert Camus dizia que era o da revolta contra a revolução. Continuo a subscrever. E dos livros de receitas ideológicas que tenho na estante, apenas confirmo que resistem as ideias, as crenças e os princípios, não os pré-cozinhados daqueles hipermercados que promovem a criação artificial das necessidades. Ainda há por aí pequenos chefes que procuram transformar os restritos conceitos que lobrigam em preceitos de decretina difusão. Costumo mandá-los imediatamente para a lixeira, mas ainda não tenho direito a remetê-los para o permanente do “spam”, apesar das muitas infecções virais pelas quais eles são causadores. Quando é que me livram destas redes estatolátricas estupidificantes que julgam acumular o ceptro e o báculo?
Das sociedades informais que para aqui exportaram testas de ferro
Quando o sindicato das citações mútuas, de cima para baixo e em ritmo decretino, transforma o pretenso conceito no concreto coice do preceito, apetece dizer que muitas vacas sagradas já exalam fedor… Afinal, a dívida é “uma coisinha de nada”. É mesmo coisa do comunismo burocrático, entre a social-democracia, o socialismo democrático e a democracia cristã. Vem desse objecto voador não identificado, desse satélite desgovernado que nos aterrou na pátria, depois da adesão à CEE. Lá para os primeiros anos da democracia pós-revolucionária, quando começámos as pré-negociações com a CEE, os chamados exercícios de direito de derivado, era eu jovem perito cá do reino e tratávamos dos diplomas comunitários sobre arranque das vinhas. Bem me lembro do técnico comunitário, no intervalo, sugerir a alguns portugueses da especialidade que era boa altura para uma empresa multinacional que se lançasse no lançamento de novas vinhas, precisamente daquelas que, quando o direito comunitário entrasse em vigor, fossem, de certeza, arrancadas e indemnizadas…. Logo, importa a criação de um grupo de trabalho entre a República Portuguesa e a União Europeia, determinando as duplas reservas mentais que geraram sucessivas terras de ninguém que suscitaram a criação de zonas de clandestinidade nacionais e supranacionais que nos continuam a explorar, comprando o poder. É tecnicamente possível desvendar o segredo desses grupos de pressão e de interesse que actuam para além do teatro da política como sociedades secretas não religiosas e não iniciáticas. Só assim haveria bases de patriotismo científico para a limpeza dos tumores internos que nos continuam a sugar através da compra de poder. Para que se devolvam à República Portuguesa os fundos que foram expropriados por essas sociedades informais que para aqui exportaram testas de ferro, mas que beneficiaram os tradicionais navegantes nessas zonas cinzentas da chamada globalização…
Os pavões de São Bento ficaram no muro que ainda não foi derrubado
Norbert Elias, na sua teorização da sociedade de Corte, não vislumbrou a possibilidade de ela se poder perpetuar, promovendo a criação de um bobo da Corte, desse sindicalista caricatural que, manipulando velhas teorias da conspiração, impede os súbditos de analisarem friamente a respectiva situação de dependência, enganando-os contra os seus próprios interesses no momento da escolha eleitoral, através da demagogia de Estado. Reparei que ontem um badalado patrão reconheceu que “estamos falidos e quando se está falido, está-se falido. Não vale a pena andar-se a discutir”. Noto também que rede de cumplicidades do presente crepúsculo tende a gerar o habitual remoinho de provisórios definitivos, daquelas decadências duradouras, onde não emerge nenhuma força moral irresistível que possa decepar o nó górdio. Isto é, nas presentes transacções situacionistas, ninguém pode dizer que o rei vai nu.. E lá acabei por ver Passos, já na repetição do começo da madrugada. Há meses, no mesmo sítio, mas com as portas abertas aos pavões, era Sócrates. Fartei-me de os comparar. Porque são políticos feitos com a mesma qualidade, embora se tenham tornado radicalmente diferentes as circunstâncias. Infelizmente, ambos continuam a gerir as mesmas dependências e a navegar na tempestade do costume. Agora em classe não executiva, com mais humildade. Para nosso bem. Julgo que Passos fez pega de caras ao pequeno monstro. Cumpriu o seu dever de dignidade de Estado e não fez como alguns partidocratas da sua corte, com sucessivas pegas de cernelha e muitas vacas chocas. Oito séculos e meio de uma entidade chamada república dos portugueses e três dezenas de anos de uma necessária secção da mesma, chamada região autónoma da Madeira, respiraram de alívio pela dignidade. Cumpriu a constituição e respeitou a democracia. Os pavões de São Bento ficaram no muro. Os assessores não os deixaram entrar com o som na sala enxuta, das comunicações ao país.
como é possível controlar o poder daqueles que mandam
O problema central de uma democracia não está em saber-se quem manda, mas antes em saber-se como é possível controlar o poder daqueles que mandam, ensinava Karl Popper. Para comentar o que agora começa a publicitar-se, sem vírgulas: o Tribunal de Contas detectou o buraco da Madeira desde 2006. O resto da democracia fez de Pôncio Pilatos. Isto é, não defendeu o contribuinte. Pelo contrário, reverenciou quem venceu. Por cá, com uma maioria, um presidente e uma região, o situacionismo rejubila. Quanto mais me bates, mais eu gosto de ti. Metade do chamado Estado (o central, o indirecto, o autónomo, o local e o regional) transformou o que devia ser serviço público, isto é, do povo, para o povo, e pelo povo, em actividade de grupo de pressão e de grupo de interesse. São uns contra os outros, em sucessivas subversões da organização do trabalho nacional. Aqueles a quem pagamos para os fiscalizarem continuam a pensar que a culpa vai morrer solteira, só porque alguns não querem ouvir falar de contas e preferem comício com porco no espeto.
Ensino dito superior
Metade dos cursos do ensino superior ficaram com a totalidade das vagas preenchidas (título da Lusa). Pela primeira vez em seis anos, o número de alunos colocados sofreu redução (título do Público). Entradas baixam pela primeira vez desde 2005 (D. Notícias). Dos candidatos colocados em cursos públicos, 58 por cento conseguiram ficar na 1.ª opção. Sobram 11 938 vagas para a segunda fase (C. Manhã). Na internet não há títulos.
Nas semanas anteriores, os gastos com publicidade enganosa de vários estabelecimentos públicos contribuíram naturalmente para o combate à crise das receitas de publicidade dos órgãos de comunicação social.
Há o macro e o micro. Numa escola de ensino superior, perto de muitos, Gestão de Recursos Humanos em regime pós-laboral e Contabilidade em regime nocturno, não tiveram qualquer ingresso. Noutra escola superior, mais perto de outros, vê-se como, puxando o lençol para um dos lados, ele destapa no outro. Maldita demografia! Maldita falta de emprego! E, pior ainda, a desertificação das mentes centrais, com música celestial!
Pena que os nomes não correspondam às coisas nomeadas. Quanto mais qualificações formais, menos prática delas nos sectores publicamente cimeiros, os dos planos e reformas das papas que enganam os tolos, mas que dão consultadoria às clientelas, incluindo a dos pretensos inimigos, mas comensais à mesa do orçamento. O futuro é que pagará mais. Por enquanto, ainda vivemos de rapar o tacho.
O pior desta engenharia de vagas do superior está no absurdo centralismo e na desbragada macrocefalia que geram. Se dão fogo às assimetrias, as consequências desigualitárias serão desastrosas. Não foi por acaso que D. João III mudou a universidade para Coimbra, quando só havia uma. E que a segunda a ser instalada foi em Évora. Como é que poderemos defender a periferia na Europa se promovemos periferias cá por dentro?
Foi por razões demográficas e por oportunismos carreirísticos que, num ápice, desapareceram universidades privadas que viviam do oportunismo da procura. Infelizmente, com os sinais evidentes de diminuição da procura, o aumento da oferta da banda larga, em nome da empregomania “entitária”, ninguém repara no suicídio institucional?
E será que também não reparam que quem mais oculta esta verdade são os partidocratas do centro e das localidades, marcadas pelo caciquismo, sobretudo os que acumulam o qualificativo de docente no ensino superior, para efeito de cartão de visitas? Basta fazerem a lista e chegarem a uma fácil conclusão
E ninguém tem a coragem de adequadas propostas de fusão? Primeiro de politécnicos com universidades. Depois de vários cursos repartidos por várias escolas do ensino superior, desde que não se afecte a concorrência, mas desde que, previamente, haja ciência, comunitariamente comprovada, sem artificiais transferências de área, para engano de papalvos da engenharia de nomenclaturas.
Ninguém repara que há muitos que se dizem importantes na política porque são docentes do superior? E que outros tantos se dizem importantes no superior porque são importantes na pulhítica? E que, somando os dois acumuladores, muitas vezes, dá menos do que zero?
Ninguém repara na artificialidade de recursos científicos formalmente fixados na escala dos que, formalmente, pela cronologia, não podem exercer no sítio onde professaram? Deviam poder exercer, não deveriam é contribuir para a estatística da engenharia de vagas…para gáudio dos patos bravos que vão fazendo coincidir o superior com o betão. Até em participações accionistas.
Devia acabar-se com o “numerus clausus” global. Cada escola deveria ser autónoma na fixação das respectivas vagas, mas arcaria com as responsabilidades. O Estado apenas deveria fixar o número de estudantes por curso que se comprometeria a financiar e que seriam escolhidos pelo critério da nota obtida.
Digo mais: fundir cursos em zonas onde os recursos científicos são escassos. Deslocalizar alguns para fora dos grandes centros. Utilizar a universidade pública como forma de luta contra a desertificação e a insularidade.
A contabilidade criativa e a engenharia financeira, ou a ciência dos buracos
O mal das decadências sempre foi o politicamente correcto do “agenda setting” e das suas campanhas de imagem, sondagem e sacanagem. O pior é que há, pelo menos, dois, os dos irmãos-inimigos, do situacionismo e do oposicionismo. Dizem o mesmo, entre a tese e antítese, sem divergências nem convergências. Deste modo, falha sempre a necessária emergência e enrodilhamo-nos em semanários do regime, comentadores do regime e empresas do regime. Pagam todos, apenas ganham alguns.
”Lapsus linguae” é o mesmo que “lapsus calami”. Pedimos desculpa por este lapso, a telenovela continua. Em política o que é, é mesmo. E tudo o que parece será, salvo se eu disser que quando quis dizer o que disse não o disse. Isso da palavra dada é chão de lagoa…
Político “ocasional”, feito ministro “colossal”, diz que o problema da Madeira é “pontual”. Ainda bem que há Gaspar. Se fosse o Mira, do angolar, já estavam extintos os serviços públicos que ele considera inúteis, com despedimentos imediatos. Zedu tentou contratá-lo para elaborar o prace, o premar, o premac e o o prozac luandenses. Amorim não deixou.
Alberto João confessou a contabilidade criativa que é um ramo da chamada engenharia financeira, a que nos foi ensinada pelos sucessivos ciclos do cavaquismo, do guterrismo, do barrosismo, do santanismo e do socratismo. Agora, troikados, estamos sujeitos a outros fiscalizadores e controladores. E começa a ditadura das contas, onde sumir não é somar. Há quem tenha perdido o prazo de validade. E há quem passe de pirómano a bombeiro. Espero que o PSD descalce a bota a que nos atou. Já chega de pé de chumbo. O tango agora é outro.
“Obviamente que a situação na Madeira prejudica a imagem de Portugal no exterior. Quando se procura, em termos de política externa, o tempo que é levado a construir um boa imagem é infinitamente superior ao tempo que a faz destruir. Os melhores esforços do Governo foram destruídos pela gestão de percepção, é uma situação infinitamente gravosa para a imagem do País. Citando Manuel Alegre, há aqui o problema típico da imagem, da sondagem e da sacanagem.”(depoimento prestado ao Diário Económico)