Ando atarefado na preparação de duas apresentações de livros. De um lado os Primores Políticos e Regalias do Nosso Rei, de António Freitas Africano, com estudo introdutório da minha autoria, que terá lugar no dia 23, na Faculdade de Direito de Lisboa, às 18 h e 30 m. Do outro, a Ciência, Política e Gnose, de Eric Voegelin (obra traduzida por Alexandre Franco de Sá), cuja apresentação decorrerá no próximo dia 15 de Novembro, às 21h00 na FNAC Colombo. Neste tempo de império do efémero das candidaturas presidenciais, prefiro lavrar a terra do eterno, demonstrando como um livro proibido dos meados do século XVII se propagou a meados do século XX e nos dá asas para vencermos o falso transcendente dos meros ideais de uma determinada conjuntura, como é o caso das modas que passam de moda, típicas do politicamente correcto, de que se alimentam os situacionismos. Eu, pelo menos, continuo à procura de politeia com paideia. Hoje, não, amanhã será!
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Évora
Évora 9 de Novembro 2011
No mundo viveremos sempre entre a integração e a fragmentação, para utilizarmos os termos de J. L. Gaddis (1992). Seremos sempre um equilíbrio instável entre forças centrípetas, que apontam para a convergência, e forças centrífugas, que apontam para a divergência. O Estado soberano, contra o Estado-Nação; a mundialização, contra o identitarismo; a regionalização das integrações económicas e a globalização das economias, contra o proteccionismo e o autarcismo; para não falarmos da integração política, com o seu federalismo funcional, contra os princípios da cooperação política.
Porque tanto há uma globalização transnacional como uma fragmentação estadual, por vezes apoiada no inter-estadual. Porque os mundos da geoeconomia e da geofinança enfrentam o da geopolítica. E muitos outros contraditórios se irão acumulando, até porque a ordem, como concórdia dos cânones discordantes, nunca foi unidimensionalidade, mas vida.
Podemos até dizer, como Stanley Hoffmann, que, no âmbito das relações internacionais, há três mundos, o diplomático-estratégico, o económico-internacional e o meramente cívico. E que cada um deles gera círculos linguísticos, teias conceituais e percepções completamente diversas.
Apesar de alguns terem profetizado, que, a partir da segunda metade do século XX, tínhamos chegado a uma era planetária, já hoje podemos experimentar que o tal global é algo mais que a anárquica soma das várias parcelas que o compõem, dado que talvez ultrapasse a mera metáfora de uma network structure ou de uma linkage, onde se desenrolariam as relações humanas.
Este nosso todo o mundo já é mais do que o ninguém. Se ainda nem sequer se contratualizou como uma sociedade, marcada pelos laços de civilização, e está muito longe de constituir uma comunidade, animada pelos laços de cultura, segundo as teses de Ferdinand Tönnies (1855-1936), em Gemeinschaft und Gesellschaft, de 1887, sempre podemos detectar nele imensos sinais de instituições económicas globais e de uma espécie de governance, mesmo que não haja government.
Utilizando uma linguagem weberiana, podemos dizer que já não somos apenas sociedade, enquanto partilha de interesses. Já temos alguns sinais de comunidade, dado que se vislumbra uma espécie de aceitação de valores comuns. Já não vivemos apenas num modelo de ajustamento de interesses racionalmente partilhados, pois começamos a ter acções orientadas pelo sentimento de pertencermos a um todo.
Importa pois inventariar algumas das linhas fundamentais da chamada globalização, a que a originalidade dos teóricos franceses gosta mais de chamar mundialisation, e que nós, como portugueses, até poderíamos dar a bela designação de abraço armilar, conforme a poética profecia de Almerindo Lessa (1909-1997) que promoveu um simbólico colóquio sobre A Unidade do Género Humano, em Maio de 1965, naquilo que então era o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, em colaboração com a Societé Pierre Teilhard de Chardin e o Centro Português de Estudos Europeus..
Não poucos salientam a própria existência de uma revolução global, expressão que começou a ganhar contornos de estabilidade nos finais da década de oitenta, entre os especialistas da ciência política e da teoria das relações internacionais, acabando por ser consagrada num relatório para o Clube de Roma, em 1991, da autoria de Alexander King e Bertrand Schneider, onde se falava que vivíamos the first global revolution, a primeira revolução global da história da humanidade, na qual o principal estímulo para a identificação e a sobrevivência das comunidades políticas já não viria dos tradicionais amigos/inimigos da velha pretensa essência do político, de Carl Schmitt e Julien Freund, mas antes dos inimigos globais de todas as comunidades humanas.
Isto é, partindo do clássico princípio, segundo o qual o nós precede o eu, que cada um só ganha consciência de si mesmo quando consegue estabelecer uma fronteira com o outro - o que tem levado à sobrevalorização da ameaça vinda de força, como principal elemento de desintegração -, King e Schneider consideram que só no nosso tempo ter surgido uma espécie de ameaça global. Paradoxalmente, foi esse risco maior, o elemento mais acelerador da mundialização, foi desse medo global que nós, todo o mundo, começámos, assim, a identificar-nos, que os homens todos começaram a ganhar consciência existencial da globalidade humana..
Mesmo o mais recente modelo cosmopolita salienta que os problemas ambientais como o aquecimento global do planeta, o buraco do ozono ou as chuvas ácidas não podem continuar a ser vistos como problemas locais, nacionais ou regionais, mas antes como problemas que afectam a humanidade como um todo.
Alguns, como J. E. Lovelock, em Gaia. A New Look at Life on Earth, de 1979, falam até numa nova concepção de natureza geocêntrica, que não pode ser considerada como exterior ao homem, como objecto que nos é estranho, e sobre o qual acrescentávamos, pela cultura ou pelo artificial alguma coisa de humano, mas antes como uma totalidade, onde devem incluir-se, como simples parcelas, as próprias relações humanas. Aliás, só agora é que ganham fundamentos científicos visionarismos como os do Padre António Vieira, que incluímos como epígrafe deste livro, da Terra como a mãe que nos cria e que, como tal, havia de se chamar mátria (Sermoens, Lisboa, MDCLXXIX, VI, p. 288, apud José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, IV, p. 78).
Contudo, a revolução dos mercados assume hoje novo sentido com a emergência da chamada geofinança, dessa network structure por onde escorrem quotidianamente os fluxos das bolsas de valores de todo o mundo, e onde, minuto a minuto, podem pôr-se em causa empresas, moedas, Estados de todas as dimensões e até grandes espaços. Um quase esotérico sector, onde apenas saberão operar cerca de uma dezena de grandes holdings mobilizadores daqueles peritos que detêm as passwords desse esotérico processo. Esses novos poderes que, segundo Bouthros Bouthros-Ghali, transcendem as estruturas estaduais, gerando um poder mundial que escapa aos Estados.
Mais: no jogo das bolsas mundiais, todos os dias, cerca de 95% das divisas que mudam de mão prendem-se com actividades meramente especulativas, sendo ultraminoritárias as que correspondem a actividades clássicas, comerciais. Com efeito, o volume de operações de câmbio é cinquenta vezes mais importante que o do comércio mundial de bens e serviços (Andreff, 1995, p. 112).
Daí que propostas de criação de uma taxa mundial mínima sobre as transacções bolsistas, como a que veio do Prémio Nobel de 1981, James Tobin (1918-), tenham tido pouco acolhimento institucional têm tido, quando tal modelo de aplicação da justiça mundial poderia gerar um rendimento de cerca de mil milhões de dólares, quantia capaz de compensar os também milhões que morrem de fome ou de doença.
O mais importante dos novos poderes passa por esse fluxo marcado pelo imediatismo, pela desmaterialização, pela permanência e pelo planetário, ao mesmo tempo que ressurgem certas formas de inconsciente colectivo, como o revivalismo dos rumores, dos receios e da própria fé nas bruxarias. Passámos assim a viver nas teias de uma sociedade de casino, nessa nova religião dos mercados que tem como principais activistas os descendentes dos yuppies, que vão agitando uma massa informe de devotos de um pretenso capitalismo popular, marcado pela velha lógica do enrichissez vous.
A figura dos corretores aventureiros quase ameaça substituir a dos garimpeiros e dos achadores de volfrâmio, e a realidade quase se transforma numa ficção folhetinesca de telenovela, aproximando-se de muitos dos meandros do romance de Dona Branca. Aliás, podem reunir-se, sob os holofotes televisivos, os líderes das superpotências ou do G8, bem como as cimeiras da NATO, da UE ou da OSCE, mas não se conhece o rosto dos mestres do mercado, desses novos predadores para quem os valores da justiça e da honra parecem não contar.
A este respeito, importa sublinhar que revolução dos mercados, expressa pela livre circulação dos capitais, foi precedida pelo processo da desregulação e das privatizações. Assim, o poder económico desmaterializou-se, deixando de ter como base preponderante os chamado factores de produção da teoria marxista, como eram a terra, os recursos naturais e as máquinas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças.
Com efeito, deu-se uma espécie de desmaterialização de certos mercados, onde não faltam as próprias mercadorias imateriais, como os chamados futuros puramente financeiros. O impacto da desmaterialização é, aliás, particularmente patente nas chamadas indústrias culturais, dos livros, da música, das artes plásticas, do cinema e até dos próprios títulos escolares, dado que hoje podem negociar-se mestrados e doutoramentos, quase virtualmente (Capella, 1997, p. 246).
O poder, incluindo o poder económico, transformou-se numa rede de poderes. Deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter, e volveu-se em relação, numa rede de muitos micropoderes, em que os novos mestres predadores e conquistadores já não são apenas os detentores do capital nem os organizadores da era dos managers, mas antes os efectivos manipuladores dos tentáculos dessa rede, principalmente os que conseguem, por todos os meios, a necessária inside information. Surgiram, deste modo, novos grupos que, escapando às anteriores formas de representação e de legitimação política e social, logo manifestaram desprezo pelo bem mais precioso de qualquer democracia: aquela informação que permite a consolidação de uma opinião crítica.
Continuando a seguir o inventário do professor de economia de Lovaina, Ricardo Petrella, num artigo célebre Les Nouveaux Maîtres du Monde, publicado em Le Monde Diplomatique, de Novembro de 1995, esses novos poderes têm, com eles, legiões de aliados e colaboracionistas, desde os quadros da tecnociência aos criadores de símbolos, onde também é marcante o conúbio entre os universitários e os opinion makers, aliás paralelo à própria entrada dos grandes media no sistema dominante.
Aliás, estes novos elementos até diferem qualitativamente dos anteriores managers ou organizadores, denunciados em 1940 por James Burnham (1905-1987), do mesmo modo se distanciando dos chamados tecnocratas dos anos sessenta. Até vieram dar uma nova dimensão à chamada investigação científica, tornando caducas as velhas estruturas universitárias, quando algumas destas ficaram dependentes das empresas e das fundações transnacionais e se libertaram dos subsídios públicos, directamente recebidos das agências estaduais ou das organizações inter-estaduais. O grupo, cada vez mais cosmopolita, até ganha algumas características de casta apátrida, encontrando-se nas mesmas escolas de formação permanente e actualizando o velho receio da sinarquia, conforme as profecias de Saint-Yves d’Alveydre (1842-1900), para quem o mundo poderia ser conquistado por um sociedade secreta que integraria uma elite de técnicos e de representantes dos banqueiros.
Já não temos as sete irmãs das multinacionais petrolíferas, das grandes famílias que dominavam o tempo de mera troca de mercadorias que marcou o auge da revolução industrial. Passámos para a sociedade da informação, onde o novo bezerro de ouro é um produto que não se consome, como acontecia com o petróleo ou a alimentação, dado que se cria pelo uso e até pode reproduzir-se pelo abuso.
Como assinala Robert B. Reich, na sua obra The Work of Nations, de 1991, as actuais empresas multinacionais já não cabem no universo concentracionário dos modelos burocráticos e centralizados, tendo constituído uma vasta rede de entidades descentralizadas, de tal maneira ramificadas pelo mundo que até já não podem receber um bilhete de identidade nacional. As empresas em causa deixaram, definitivamente, de ter pátria, até pelas participações cruzadas que se foram estabelecendo entre as que representavam as principais marcas do mercado.
O cientista e filósofo húngaro Karl Polanyi (1886-1964) em The Great Transformation, de 1944, já referia a dinâmica interna da produção em massa de mercadorias, porque voltada sobre si mesma, levou a um crescimento ilimitado das trocas e a uma autonomização incontrolada do mercado.
O chamado fim do comunismo não foi, afinal, o fim da história, dado que a vitória dos modelos ocidentais significou a consagração de um estilo de organização marcado por factores totalmente diversos daqueles que poderiam ser captados por Karl Marx ou Lenine. Em primeiro lugar, surgiu a resposta teórica keynesiana, geradora daquilo que uns qualificam como consenso social-democrata e outros, como mero socialismo de direita. Seguiu-se o exemplo do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, assente na aliança entre o capital e o trabalho. Avançou-se, depois, no compromisso fordista. E, na Europa Ocidental, social-democratas e democratas-cristãos promoveram a instauração de um Welfare State que acabou por ser eficaz, tanto para a superação do Warfare State, como para a competição com os modelos do socialismo real, de marca sovietista.
Acontece que, com o fim do mundo bipolar, mais do que a emergência de uma só superpotência, começou a desenhar-se um nebuloso império dos grandes países ricos, fundador do Grupo dos Sete, império esse que assenta em três moedas sólidas (dollar, deutsche Mark e yen), tem, como guardas avançadas, duas ou três praças financeiras fortes, núcleo duro que, pelos recursos, pelo poder de mando e pela atracção mimética, foi controlando quase todas as principais elites dos chamados países periféricos, e navegando num mar informativo manejado por agências como a Reuters ou a Dow Jones.
Com a chegada do euro, apenas nos apetece recordar que também o dinheiro não tem pátria. Aliás, o americano dollar tem origens etimológicas no alemão thaler, começando até por ser a designação dada pelos ingleses ao peso espanhol que circulava nas possessões sul-americanas, antes de se transformar na unidade monetária norte-americana desde 2 de Abril de 1792. E foi em nome da americanização que se instituíram o deutsche Mark, gerado pela ocupação americana, e o próprio Yen japonês. As três pessoas da tríade, estão, por dentro, unidas por uma neutra perspectiva circulatória…
A humanidade, depois de 1989 e do dobrar do milénio, também não chegou ao fim da história, porque logo se sucedeu uma espécie de balkamondialisation, com o regresso das nações e até das etnias, não se confirmando a previsão de um Kenichi Ohmae, o mr. Strategy, que proclamava o fim do Estado-Nação e a chegada de uma redentora entidade maior, a que chamava Estados-Região, porque, face à emergência de um capitalismo supra-territorial, os Estados apenas exerceriam funções transitórias no âmbito da organização e da regulação económicas.
Com efeito, o ritmo da política internacional que nos passou a marcar, depois da Guerra Fria, acabou por aproximar-se de modelos típicos dos anos vinte do século passado, dado que inúmeras Nações sem Estado voltaram a emergir. Os nacionalismos, muito particularmente os etnonacionalismos, eram, afinal, brasas por extinguir, que logo se avivaram com os novos ventos da história, quando estes sopraram as cinzas dos superpowers que os proibiam. O explodir do espaço controlado pelo imperial-comunismo soviético; os problemas que o Império Britânico deixou por resolver no Médio Oriente e no subcontinente indiano; a questão do renascimento árabe; ou as guerras civis africanas, afinal, não são causas, são sintomas. Por muito novas que fossem as maravilhas do século XX, nenhuma das forças instaladas no comando do universo foi capaz de construir um desses homens novos que as mesmas, repetindo o Iluminismo gnóstico, prometiam edificar sobre a pretensa tabula rasa do homem de sempre.
A globalização económica, onde a geofinança passou a comandar a geoeconomia, ao mesmo tempo que se desenvolveram instituições globais de vigilância como o G7/G8, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, vai levar a que se assista à eliminação do modelo de Welfare State e à crise das ideologias que o geraram, da democracia-cristã à social-democracia.
O dinheiro transformou-se no mais mobilizador dos valores universais do nosso tempo e, com ele, veio uma difusa forma de corrupção, onde se compram e vendem factores de poder, pelo simples uso da inside information. Porque a sociedade contemporânea, marcada pela difusão da informação, ao criar uma hiper-informação, teve que passar a assentar em redes de circulação, logo, quanto mais a informação de difunde, mais a rede se valoriza.
O poder deixou, assim, de ser uma pirâmide e transformou-se num labirinto, onde, ao mesmo tempo que os actores da decisão se multiplicam, se torna brutalmente desigual o acesso ao que é relevante, dado que raros sabem qual o local onde as fundamentais decisões são realmente tomadas.
A tal raça branca, apesar de não ser minimamente científico o próprio conceito de raça e dos mesmos brancos serem menos brancos do que aqueles que eles chamam amarelos e a quem estes chamam vermelhos, os ditos homens brancos, com que muitos confundiam a civilização ocidental, segundo alguns cálculos, se representavam 25% da população mundial nos começos da década de 1970, talvez não passem de um restritos 15% no fim da primeira década do milénio, porque o aumento do bem-estar gera o egoísmo da quebra de fecundidade, em nome do adiamento da entrada no mercado de trabalho e do comodismo da geração do filho único.
Continuamos, com efeito, a viver sobre uma bomba humana que ameaça o Planeta, para utilizarmos a expressão do professor de Yale, Paul R. Ehrlich. Porque ela não acontece exclusivamente nas relações do Sul com o Norte e não se detecta apenas nas praias vizinhas de Gibraltar, onde os polícias da Europa-Fortaleza tentam evitar o desembarque de muitos boat-people vindos de África. Ela é particularmente visível no interior do próprio Terceiro Mundo onde estão cerca de vinte e duas das actuais megalópoles com mais de dez milhões de habitantes, com essa quase quotidiana migração das populações camponesas para o sonho da grande cidade, à procura de pão, casa e luxo.
Com efeito, a população mundial que se manteve estável desde os tempos de Jesus Cristo ao ano mil, multiplicou-se por vinte no último milénio. Mas, na segunda metade do século XX, entrámos em ritmo quase febril: se em 1939 havia 2. 195 milhões de homens, esses números passaram para 4. 453 milhões em 1980 e para 4. 842 em 1985, prevendo-se que atinja os 8. 177 milhões em 2025.
Ora, as preocupações malthusianas dos demógrafos dos anos sessenta, defensores de zero population growth, temendo que a proporção geométrica do aumento do número de homens continuasse a ser acompanhada pela mera proporção aritmética dos recursos alimentares, levou à criação daquela engenharia desenvolvimentista, iludida pelo mero crescimento económico. Emergiram então os métodos do controlo da natalidade, bem próximos daqueles cálculos utilitaristas que justificavam a guerra como um processo de brutalidade higiénica, para a salvaguarda dos mais aptos. Só depois do rotundo fracasso dessas pretensas receitas universais é que começaram a surgir outras preocupações, mais assentes nas ideias dos que acentuam que cada homem é o próprio centro do mundo, apelando para uma análise qualitativa do fenómeno.
Basta recordar que em cada 100 homens (6.310 milhões, em meados de 2002), há pouco mais de 10 europeus, quase 6 norte-americanos, outros tantos da ex-URSS e menos que 9 sul-americanos, contra 22 chineses e 20 membros do subcontinente indiano, para pouco mais que 11 africanos, enquanto quatro quintos da riqueza mundial continua a caber a uma sétima parte da população do mundo.
Vejamos os seguintes dados do United Nations Population Fund, de 2001 (em milhões):
Total da população mundial em 2001 |
Previsão para 2050 |
|
Mundo |
6 134,1 |
9 322,3 |
Regiões desenvolvidas |
1 193,9 |
1 181,1 |
Regiões em desenvolvimento |
4 940,3 |
8 141,1 |
Países menos avançados |
675 |
1 829,5 |
África |
812,6 |
2 000,4 |
Ásia |
3 720,7 |
5 248,2 |
Europa |
726,3 |
603,3 |
América Latina e Caraíbas |
526,5 |
805,6 |
América do Norte |
317,1 |
437,6 |
Oceânia |
30,9 |
47,2 |
Se a população mundial, que triplicou nos últimos setenta anos, também se multiplicou por seis, nesse período, o volume de água utilizada. O crescimento demográfico é bem maior que a produção de alimentos, principalmente em África, apesar da América do Norte, da Europa e da Austrália continuarem excedentárias, graças a modelos de agricultura intensiva. Segundo a FAO, nos países em vias de desenvolvimento, há 800 milhões de pessoas que sofrem de má nutrição crónica.
Este aumento quantitativo do número de seres humanos dá-se perante o vazio de um conceito de justiça mundial e com a utilização de defeituosos conceitos de desenvolvimento. Basta recordar que sobrexplorámos os quatro principais sistemas biológicos que sustentam a vida humana, das terras aráveis às pastagens, das florestas à própria fauna dos oceanos, devastando e degradando a bioesfera.
A pobreza absoluta vai grassando. A fome choca-nos diariamente. A doença alastra. Gerámos milhões de refugiados. Transformámos o desemprego em mero número estatístico para a gestão dos macro-economistas. E apesar de muitos esforços, não nos revoltamos com o analfabetismo e, mesmo democratizando a instrução e a educação, não reparamos na explosão da iliteracia. Porque espalhando tantas canas de pesca, esquecemo-nos que não era pelo quantitativo que poderíamos ensinar a pescar.
A sociedade de massa gerou, com efeito, uma espécie de analfabeto educado, como nos ensina C. Wright Mills (1915-1962), dado que a educação perdeu a sua função crítica e passou a ser domesticada pelas necessidades da economia desta sociedade de massa com crescente especialização de funções, dado que se disfarça a existência de um poder invisível, fundado no arbitrário e manipulado por uma power elite.
Importa, contudo, assinalar, como gosta de recordar Fernando Henrique Cardoso, que talvez fossem os portugueses os inventores da globalização, ao gerarem aquilo que Toynbee identificou como a era gâmica da história. Do Infante D. Henrique à passagem das Tormentas, muitos marcos podemos assinalar, desde o engano de Cristóvão Colombo, de 1492, à chegada dos lusíadas a Calecute, em 1498, para não falarmos na descoberta oficial do Brasil, em 1500, ou na viagem de circum-navegação, de Fernão de Magalhães, em 1521. Esse dar novos mundos ao mundo, feito sonho de um novo mundo, que acabou por ser ponto de partida para aquilo que a todo mundo aconteceu em 1957, quando os russos nos lançaram além da própria terra. E para que, desse além-mundo, víssemos inteiro, num só retrato, o planeta azul. Não tardaria até que, com os norte-americanos, fosse dado esse pequeno passo para o homem pelas cinzas da Lua, quando Neil Amstrong, depois de agradecer ao Criador, proclamou que estávamos a dar um grande passo para a Humanidade.
Talvez importe reconhecer que no processo de ocidentalização do mundo, os dois povos ibéricos apenas foram agentes de um mais vasto movimento, acicatado pela imitatio da pax romana, num impulso, depois repetido pelo Império Britânico, mas que não deixa de estar presente no invisível soft power da actual República Imperial dos norte-americanos, com quem todos temos íntimas cumplicidades.
De certo que, como expressava um marinheiro português, chegado à Índia, procurávamos fazer cristãos e buscar canela. Por outras palavras, tanto traduzíamos o ideal de missionação, expresso na Cruz de Cristo, como também procurávamos rendas e abastanças.
Assim, a expansão europeia, se, por um lado, ousou estender à terra inteira o ideal da res publica christiana, volveu-se, por outro, no free trade do British Empire. Tanto surgiram missionários como negociantes, misturados com soldados e aventureiros, num movimento que, ora explorou as teias do comércio de escravos e as técnicas do corso e da pirataria, ora também levou a um diálogo de culturas.
Mesmo depois do mercantilismo, o século das Luzes, ultrapassando o cristianismo nas suas próprias raízes, foi às raízes estóicas do panteísmo e volveu-se em ideal do humanismo laico, mais ou menos ligado às maçonarias.
É desse encontro interior dos ocidentais que emergiu o processo da Revolução Atlântica, onde foram marcantes a Glorious Revolution inglesa, a independência norte-americana e o longo e doloroso processo da Revolução Francesa.
Segue-se a vaga das independências na América conformada por portugueses e espanhóis, nos começos do século XIX, para, em meados do mesmo século, termos a ilusão de uma Primavera dos Povos, a qual, contudo, precisou da Grande Guerra de 1914-1918 para ser aplicada à Europa Central. Uma ideia que só depois da Segunda Guerra Mundial se estendeu ao mundo afro-asiático e que teve de esperar pela queda do Muro, em 1989, para ser semeada na Europa do Leste e noutros territórios até então integrados na URSS.
Mesmo a conjugação da Revolução do free trade com a Revolução Industrial, apenas chegou a todas as sete partidas do planeta nas duas últimas décadas do século XX, depois de se ter estabelecido o modelo da mundialização pela Guerra e pelo medo de um confronto nuclear.
Nesta encruzilhadas, apetece-nos dizer, como Ernesto Sábato, que continuam a faltar mundiólogos. Há mundializações no plano das ideias, das religiões, da política ou da economia. Continua a ameaça nuclear. Começamos a ter uma consciência ecológica global. São evidentes as consequências de uma mundialização da cultura, expressos pelo cinema, pela música e pela televisão. São inequívocos os sinais de uma crescente unidimensionalidade de usos, costumes e consumos. Contudo, aquilo que devia ser o objecto central das nossas preocupações, continua a passar por disputas ideológicas, até quanto à própria qualificação desse todo. Porque dizer mundialização não é o mesmo que dizer planetarização, nem o globalista pode confundir-se com o cosmopolita. Quase apetece subscrever o que, a este respeito, proclamou Edgar Morin: o internacionalismo queria fazer da espécie um povo. O mundialismo quer fazer do mundo um Estado. O cosmopolitismo quer tornar-nos cidadãos do mundo.
Porque, se há um mundialismo jus-racionalista e revolucionário, que pretende realizar a mesma ideia abstracta em todo o mundo, ainda que se destruam as formas do ecossistema pré‑existente, há também os que proclamam o direito à diferença, ao particularismo romântico, considerando que a história não se escreve a priori, pois é o homem que, ao fazer‑se, vai fazendo a história. E a história não pode ser senão uma co‑criação de homens livres, como assinala Emmanuel Mounier (1905-1950).
Outra é a perspectiva daquele que diz pertencer ao mundo inteiro e não apenas a uma localidade ou a uma nação, esse velho ideal, segundo o qual, em todo o mundo, pode estar-se em casa, porque, como cantava António Sardinha, em todo o mundo, há terra portuguesa, desde que a alma a tenha na lembrança e a sirva sempre com fervor igual. A ideia básica é a do ideal estóico de fraternidade, assumida por Marco Aurélio (121-180) ou Séneca (4 a. C.- 65 d. C.), para quem a natureza faz de nós uma única família. Esta postura, amplamente reforçada pelo cristianismo, vai também aparecer como um dos três lemas da Revolução Francesa que, ao tentar laicizar os ideais cristãos, apenas repete os próprios ideais estóicos.
Porque, como dizia São Paulo (10?-65?), já não há grego nem judeu, nem circuncizado nem incircuncizado, nem bárbaro, nem cidadão, nem homem livre, mas Cristo que é tudo em tudo (Galatas 3:28 e Colossenses 3:11).
Por outras palavras, é a partir deste tópico que, felizmente, se confundem os pilares da própria civilização ocidental: o humanismo laico, de matriz estóica, depois reforçado pelo iluminismo maçónico e pelo posterior liberalismo ético, e o humanismo cristão, nessa aliança que as encíclicas papais referem quando apelam aos homens de boa vontade. Basta recordar que a expressão catolicismo vem do grego kath holon, isto é, “em geral” ou “universal”.
Em sentido mais restrito, o cosmopolitismo constitui uma tese de origem maçónica, equivalente à ideia ecuménica do cristianismo. Se no século XVIII tal ordem iniciática tinha como programa a constituição de uma república universal de irmãos, a ideia, radicada na filosofia estóica, tem como antecedentes as teses de Erasmo (1469-1536) e do jusracionalismo, com Grócio (1585-1645), defensor de um consensus gentium, Pufendorf (1632-1694) e Wolff (1679-1754), que cunhou a expressão ius cosmopoliticum. Difere contudo das velhas perspectivas da monarquia universal, dita cosmocracia.
Aliás,o primeiro a usar o termo cosmopolita terá sido o francês Guillaume Postel (1510-1581), em 1560, na obra De la République des Turcs, onde defende uma paz universal e uma unidade de todos os cristãos… mas sob o comando do rei de França. Entre 1791 e 1792 até chegou a ser editado um jornal com o título Le Cosmopolite, na linha do que, no século anterior, Pierre Bayle (1647-1736) qualificou como La République des Lettres.
Outro dos termos complexos, com que pretende desvelar-se o problema é o de ecumenismo, do gr. oikoumene, isto é, a terra habitada, o mundo inteiro. Contudo, a expressão tem uma conotação mais restrita, servindo, sobretudo, para qualificar a tendência para a união de todas as igrejas cristãs.
Mas alguns federalistas de marca horizontalista, como Hannah Arendt (1906-1975), defendendo a manutenção de uma dupla cidadania, colocam, ao lado das pertenças locais, regionais e nacionais, uma outra forma complementar, a da pertença à écumena.
Uma engenharia conceitual que tente assumir esta pluralidade de pertenças políticas, se for consequente, acabará por admitir que mesmo os Estados a que chegámos, com a modernidade, não podem esgotar o conceito da comunidade perfeita, havendo que continuar a procura da república maior que, inevitavelmente, nos levará à possibilidade de, sobre o mesmo território e a mesma população, poderem exercitar-se dois ou mais Estados, cada um deles perfeito nas áreas da sua natureza, mas repartindo as funções de acordo com o princípio da subsidiariedade. Porque tudo o que pode ser realizado por agrupamentos de nível inferior deve ser realizado por estes.
Porque cada Estado deve ser entendido, não como uma massa física separada da humanidade, mas antes como uma simples massa de actividades, para utilizarmos os termos de Arthur Fisher Bentley (1870-1957). Tal como cada indivíduo pode aderir a variados grupos, também os indivíduos, os grupos não-estaduais e os próprios Estados participam pluralmente em muitas massas de actividades, cumulativas ou concorrentes, mas nunca piramidalmente organizadas, como é dogma do verticalismo hierarquista.
Até podemos dizer, na senda de Albert O. Hirschman (1915-) que tal como os indivíduos face às comunidades políticas, também as unidades políticas, no âmbito das integrações políticas internacionais, ao quererem maximizar os respectivos objectivos, podem permanecer leais às entidades maiores em que se integram (loyalty), decidir tomar a palavra, tendo em vista uma participação activa no novo todo (voice) ou, então, numa terceira alternativa, optarem pela saída, pela deserção (exit) que também pode fazer-se através de uma mobilidade horizontal, pela passagem a uma nova situação de protesto dentro do todo (Exit, Voice, Loyalty, 1970).
Vivemos, com efeito, numa idade das redes, conforme as teses de Jean-Marie Guéhenno (1890-1978), dado que a anterior relação dos cidadãos com o corpo político de um Estado, prisioneiro de uma concepção espacial de poder, com essa pretensão de combinar num quadro único, as dimensões política, cultural e económica, entrou em concorrência quase selvagem com a infinidade de conexões que eles estabelecem fora dele, de maneira que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens em sociedade, surge como uma actividade secundária (1993, pp. 37-38).
Agora, o espaço deixou de ser o critério pertinente, resta saber se podemos continuar a acreditar na política, no regresso ao humanismo, nos valores clássicos das concepções geo-humanas.
Se a maçonaria apostou no clássico cosmopolitismo, eis que o socialismo do século XIX foi marcado por aquela ideia de internacionalismo que serviu de inspiração para as teses leninistas de revolução mundial que marcaram o sovietismo.
Em 1914 Lenine, embora defendesse o internacionalismo proletário contra o nacionalismo burguês, já reconhecia que em todo o nacionalismo burguês de uma nação oprimida existe um conteúdo democrático geral dirigido contra a opressão; e é este conteúdo que nós apoiamos sem restrições. Mas o líder do sovietismo sabia que, tal hibridismo tanto podia mobilizar um nacionalista para o internacionalismo, como desarmar nacionalismos pela mesmíssima mistura explosiva. Porque neste domínio haveria, sobretudo, que entender o movimento libertacionista, instrumentalizando a revolta em nome de uma ideia abstracta, mas desde que a mesma fosse susceptível de ser lida pelos mais contraditórios sonhadores dos amanhãs que cantam: as pessoas que não tenham examinado bem a questão acharão “contraditório” que os sociais-democratas de nações opressoras insistam na “liberdade de secessão” e os sociais-democratas das nações oprimidas na “liberdade de união”. Mas um pouco de reflexão mostra que não há nem pode haver qualquer outra via para a internacionalização e a fusão das nações, qualquer outra via da situação presente para aquele objectivo (ver Maltez, 1993, 207-209).
A globalização, parafraseando a definição da David Held e Anthony McGrew, publicada no Oxford Companion to Politics of the World, de 2001, pode ser considerada como um processo que levou a uma transformação radical na organização espacial das relações humanas e nas consequentes trocas de ideias, bens e serviços, gerando novos fluxos e redes de actividade, de interacção e de poder, entre as várias comunidades humanas, tendo surgido quatro tipos de mudança.
Em primeiro lugar, o alargamento das actividades sociais, políticas e económicas, que vararam fronteiras, regiões e continentes. Em segundo lugar, a intensificação das conexões e dos fluxos do comércio, do investimento, das finanças, das migrações, da cultura, etc. Em terceiro lugar, o aumento da velocidade das interacções e dos processos globais, bem como o desenvolvimento dos sistemas mundiais de transportes e comunicações, que incrementaram a difusão das ideias, dos bens, das informações, dos capitais e dos povos. Em quarto lugar, o crescimento, extensivo e intensivo, das interacções globais é acompanhado pelo aprofundamento do respectivo impacto, levando a que acontecimentos locais passem a ter difusão global, pelo que se tornam bastante fluidas as fronteiras que separavam os assuntos domésticos das questões globais.
Esta perspectiva ampla de globalização ultrapassa o conceito neutralmente tecnocrático do Fundo Monetário Internacional, que, em documento de 1997, ainda a restringia à interdependência económica crescente, provocada pelo o aumento do volume e da variedade das transacções de bens e serviços, bem como pela difusão acelerada e generalizada da tecnologia.
Isto é, cada um vai olhando a coisa, conforme o sítio mental onde se localiza, a função que desempenha, o fim para que tende, a concepção do mundo e da vida que o sustenta e as lentes analíticas da respectiva área científica.
Assim, se passarmos para a tentativa de definição de um jurista, como Philippe Moreau-Defarges, podemos dizer que a globalização resulta da combinação dinâmica de três fenómenos: em primeiro lugar, a multiplicação dos fluxos e das redes, desiguais de região para região, que reduziram maciçamente o espaço e o tempo; em segundo lugar, o embaratecimento do custo das comunicações; em terceiro lugar, a consequente densidade das interdependências. Desta forma, emergiu uma sociedade civil universal e um espaço público planetário, produzidos tanto pelos meios de comunicação como pela actividade das organizações não-governamentais (1999, p. 215).
Acresce que também passámos a identificar problemas globais, como a alteração do clima, a necessidade de preservação das florestas, o tráfico de droga e os movimentos de capitais.
Desta forma, continuando a seguir o mesmo autor, a própria globalização gera novos problemas jurídicos. Primeiro, porque os actores internacionais reclamam mais transparência e mais previsibilidade na gestão da interdependência. Segundo, porque a multidimensionalidade dos problemas suscitados pela globalização implica que a complexidade em causa tenha que ser domada. Terceiro, porque dá origem a um espaço público mundial, que tem em germe uma espécie de sociedade mundial.
Já o professor de Filosofia do Direito da Universidade de Barcelona, Juan Ramón Capella, fala numa mundialização desigual das relações sociais e numa globalização multifacetada que impõe uma nova estrutura ou campo de poder: a forma Estado perde a sua primazia, ao subordinar-se a um soberano privado supra-estadual, de carácter difuso. Surge assim um campo de inter-relações, onde há nova redistribuição de funções (1997, p. 239).
Acrescentaremos, a este respeito, que, a partir da década de noventa do século XX, a radical alteração do ambiente internacional comprimiu, de forma drástica, a margem de manobra dos factores internos de poder, de tal maneira que o sistema político quase deixou de ser uma consequência da soberania, correndo o risco de, no plano interno, tornar-se mero subsistema face à economia e à sociedade.
Diante do desafio de tal mundialização, a reflexão sobre o fenómeno político, libertando-se daqueles quadros que pareciam duradouros, foi obrigada a ter saudades do futuro, dado que, para conseguir entender-se o nascimento do amanhã, temos de voltar a peregrinar pelas origens, a fim de ultrapassarmos certa ditadura de um pretenso processo histórico, que acompanhava o gnosticismo da modernidade.
Com a queda do muro de Berlim em 1989 e o subsequente colapso do sovietismo, ruiu aquela velha ordem mundial, estabelecida pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, e que viveu, durante quase quatro décadas, segundo o ritmo de uma bipolarização fomentada pela Guerra Fria. Contudo, com a emergência da questão do Golfo Pérsico, em 1990, que levou à operação Tempestade no Deserto do ano seguinte, logo verificámos que, afinal, não tínhamos atingido o gnóstico fim da história, mas que, pelo contrário, talvez começássemos a viver um regresso da história, muitas vezes, traduzido num retorno às questões não resolvidas pelos tratados que encerraram o ciclo da Grande Guerra de 1914-1918.
Esses acontecimentos do fim da década de oitenta do século XX, desde a ascensão de Gorbatchov à queda do muro, com a imediata implosão da URSS, foram até menos causa do que consequência da tal revolução global
A superpotência URSS não era suficientemente poderosa para ser autárcica. Podia ter armas como os SS-20, mas deixara que um simples Cessna pilotado por um teenager alemão aterrasse na Praça Vermelha. Podia ter iniciado com o Sputnik e, depois, com Gagarine, a era da astronáutica, mas não sabia produzir transístores nem máquinas fotocopiadoras. Era suficientemente poderosa para amedrontar o mundo com as bombas termonucleares, mas não conseguia domar os mujaheddin no Afeganistão nem controlar os chechenos. Tal como os norte-americanos não aguentaram o voluntarismo pertinaz dos guerrilheiros vietcong, que também assumiram a sua eficaz mistura nacional-comunista.
Podemos não ter chegado ao almejado fim da história, mas assistimos a uma radical mudança, onde se detectam, entre outros, os seguintes sinais políticos dos tempos:
Em primeiro lugar, com o findar da Guerra Fria e com os sucessivos acordos entre norte-americanos e russos, tornou-se um facto consumado a abolição da guerra entre os principais centros estaduais de poder.
Em segundo lugar, deu-se a inequívoca emergência de um novo centro mundial do poder estadual: o conglomerado das unidades políticas ocidentais, com ramificações mundiais, assentes numa vasta rede de instituições internacionais, lideradas pela ONU, que redobraram a legitimidade da ordem internacional.
Em terceiro lugar, incrementaram-se modelos democráticos, entendidos à maneira ocidental, que se tornaram numa espécie de símbolo do desenvolvimento político.
Em quarto lugar, emergiu um outro direito internacional, assente em novas instituições, como os tribunais internacionais especiais, destinados aos julgamentos dos crimes de guerra e genocídio sobre o Ruanda e a Jugoslávia.
Podemos assim inventariar cinco grandes parcelas da chamada revolução global: a revolução técnico-científica; a revolução da informação; a revolução dos mercados; a revolução demográfica; e a revolução da guerra. De qualquer maneira, todas elas são marcadas pelo ritmo de uma revolução biossocial, que se liga ao crescente aumento da automação; ao crescente aumento do lazer; e ao crescente aumento da média da vida humana (Freyre, 1973, p. 51).
Grande parte das perspectivas sobre relações internacionais continua a ser dominada pelo discurso daqueles que se dedicam profissionalmente às matérias dos negócios estrangeiros, da foreign policy ou da politique étrangère. Dessa arte de conduzir a negociação entre os Estados, para utilizarmos a clássica definição de uma expressão que foi pela primeira vez usada em 1796 por Edmund Burke (1729-1797). Se a diplomacia logo passou a abranger o campo mais vasto das relações entre Estados, organizações internacionais e entidades equiparadas, consideradas sujeitos formais de direito internacional, nela sempre foi dominante a execução da política externa de um Estado, através daquele pessoal especializado a que chamamos corpo diplomático.
Com efeito, a diplomacia continua a ser uma discípula dilecta da arte política, dessa arte de governar os povos, e não é por acaso que, mesmo nas Faculdades de Direito, antes de haver matérias de história das relações internacionais, se institucionalizaram disciplinas de história diplomática. Também o direito internacional público se desenvolveu pela via institucional do estudo das organizações internacionais, antes de surgir uma disciplina globalista do fenómeno das próprias relações internacionais, e de começar a procurar-se uma teoria geral do fenómeno, além da diplomacia pura.
Aliás, num pequeno Estado como o português, a matéria começou a ser estudada de forma empírica, atendendo ao peso de certos negócios na nossa política externa. Por isso é que a abordagem científica das relações internacionais foi iniciada na escola universitária que se dedicava ao estudo da política e do direito coloniais, ou ultramarinos. Pela mesma razão, quando, depois, explodiram as questões da política e do direito da integração europeia, e do comunitarismo consequente, foram os cultores destes ramos que desenvolveram tais processos.
Os recursos científicos portugueses sempre foram bens escassos e nunca se desperdiçaram em divagações doutrinárias por domínios etéreos, onde deixamos que continuem a pontificar os grandes deste mundo. Curiosamente, foi na entidade herdeira da Escola Colonial, fundada em 1906, que, nos anos sessenta do século XX, se lançaram os primeiros estudos universitários sobre a integração europeia.
Importa também assinalar que as representações diplomáticas permanentes apenas surgiram na Europa a partir do século XV, revelando que o Estado começava a ser pensado, e praticado, como unidade permanente, como assinala Max Beloff. Assim, Veneza e Génova, já no século XVI, têm relações diplomáticas normais com o Império Otomano, recebendo, sobretudo, a tradição do Império Bizantino. Aliás, Veneza talvez tenha sido o primeiro Estado a organizar os seus arquivos de política externa de forma sistemática.
Em França, Richelieu (1585-1642), em 1626, organiza um ministério dos negócios estrangeiros e, com Luís XIV (1638-1715), já surgem embaixadas permanentes e em Roma, Veneza, Constantinopla, Viena, Haia, Londres, Madrid, Lisboa, Munique, Copenhaga e Berna.
É neste ambiente que D. João V emite o alvará de 28 de Julho de 1736, onde surgem as três primeiras secretarias de estado, base dos actuais ministérios. Voltada para dentro do espaço estadual, estrutura-se a dos Negócios Interiores do Reino. Visando o império, surge a da Marinha e dos Domínios Ultramarinos. E, olhando para os outros Estados, emerge a dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Só mais tarde, por alvará de 15 de Dezembro de 1778, é que vai acrescentar-se a dos Negócios da Fazenda que, contudo, só entra em funcionamento em 6 de Janeiro de 1801. Aliás, as secretarias são coordenadas por um ministro assistente ao despacho, equivalente ao actual primeiro-ministro.
Com efeito, o modelo iluminista posterior à Paz de Vestefália era bem simples e não podia deixar de juntar os negócios estrangeiros à guerra. Mas num Portugal que vivia a vertigem da reprodução do Estado a nível do espaço ultramarino, principalmente num tempo de edificação do Brasil, matéria que ocupava o principal esforço das nossas relações externas.
Só depois da Revolução Liberal e no momento da própria separação do Brasil é que, por decreto de 22 de Setembro de 1822, a matéria dos Negócios Estrangeiros se separa da Guerra. Curiosamente, é a partir de então que Lisboa passou a ter que viver segundo o ritmo da chamada balança da Europa, quando nos tornámos totalmente dependente dos modelos dominantes no Velho Continente, ao sermos obrigados a uma ruptura com o Novo Mundo, que fomos construindo, principalmente naquilo que era, até então, a América Portuguesa.
Resta saber se, face ao desenvolvimento dos meios de comunicação em sentido amplo, as actividades clássicas das missões diplomáticas não se transformarão em sítios meramente protocolares, dada a mobilidade dos mais altos responsáveis políticos. Para não falarmos de alguns grandes globetrotters da política internacional, como Kissinger ou João Paulo II, importa assinalar que, mesmo no caso português, as grandes linhas da política externa passaram a ser representadas na cena internacional pelos próprios chefes do governo, transformando-se os ministros dos estrangeiros e os seus diplomatas em simples assessores dessa unificação.
A efectiva realidade do contacto de indivíduos e grupos fora dos canais das entidades políticas instituídas, levou a que, desde sempre, tenha procurado teorizar-se, de forma prática, o enquadramento de tal troca de pessoas, ideias e mercadorias. Pelo menos, desde que os romanos chegaram à societas gentium e que os medievais, sob inspiração da Igreja Católica, assumiram e praticaram a res publica christiana.
Surgiu, entretanto, o Estado Moderno, primeiro, com o chamado Estado Absoluto que, começando por ser patrimonial se transformou em paternalista, depois, com o Estado do Povo Soberano, que, iniciando-se no Liberal, ousou ser Democrático e começa agora a querer ser de Direito e até de Justiça.
Nesta sequência, se há os que defendem a mera organização internacional, que apenas pode actuar inter-estadualmente, outros advogam a integração internacional, já de carácter transnacional. Contudo, os chamados integracionistas dividem-se por vários modelos.
Uns continuam na senda do método da hegemonia, considerando que todos os centros políticos particulares devem ceder perante um deles. Outros defendem que deve instaurar-se uma sociedade política mundial, um governo mundial, com ligação directa entre esse centro político e todos os homens. Um terceiro grupo, por seu lado, apenas sugere a criação de um directório, ou uma aliança, entre unidades políticas dominantes.
Hegemonia, que, etimologicamente, quer dizer acto de caminhar à frente, vem do grego hegemon, o chefe ou comandante, chegando, em Roma, a significar o mero poder absoluto. Só no século XIX é que o termo passou a ser usado em matéria de relações internacionais, visando qualificar o papel de um Estado dominante, face aos que são por ele influenciados. Surgiram assim os Estados directores, as potências hegemónicas, feudalizando multidões, bem alinhadas, de Estados secundários.
Hedley Bull (1977, pp. 214-215) define a mesma hegemonioa como a situação onde uma grande potência exerce a sua liderança usando esporadicamente, e não habitualmente, a força, ou a ameaça da sua utilização, distinguindo-a dominação (o uso habitual da força) e da primazia (o uso habitual da negociação).
Na verdade, o Congresso de Viena veio estabelecer novo mapa político da Europa, ao abrigo de uma balança de poderes que garantiu a paz global europeia durante cerca de quarenta anos. Talleyrand considerava, então, que deveriam estar representados todos os Estados: os mais pequenos e os maiores, inteiramente independentes da força. Contudo, logo reconhecia que só as Grandes Potências têm a ver com o todo, dado que as pequenas apenas poderiam intervir no sistema particular onde se inserissem: les grandes puissances seules, embrassant l’ensemble, ordenneraient chacune des parties par rapport au tout.
Consolidou-se assim uma divisão entre Estados Directores e Estados Secundários, repetindo-se o processo com a ordem internacional surgida da Segunda Guerra Mundial, quando surgiu uma hierarquia mundial do poder que, conforme Adriano Moreira, consistia em duas superpotências, grandes potências (os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, dotados de poder atómico), potências médias, pequenas potências e Estados Exíguos (1989, p. 39).
Numa observação da distribuição da população e do rendimento, Karl Deutsch, em 1954, observava que sete dos Estados então existentes abrangiam quase sessenta por cento da população e do rendimento do mundo (China, Índia, URSS, USA, Paquistão, Indonésia e Japão). Que havia catorze Estados de grande porte, isto é, com mais de quarenta milhões de habitantes, cinquenta e nove de porte médio (entre cinco e quarenta milhões de habitantes) e sessenta e três Estados pequenos.
Isto para além dos Estados Honorários e dos chamados Estados Exíguos, como o Liechenstein, o Principado do Mónaco e a República de São Marino que, embora com a formal capacidade jurídica dos demais Estados, têm limitações no uso da respectiva soberania, parcialmente desempenhada pelos vizinhos protectores, não sendo também membros de pleno direito da Organização das Nações Unidas.
Aliás superpotência diz-se em inglês superpower. Um Estado que, no plano internacional, dispõe de suficiente poder militar e económico que lhe permite ter uma influência global ou mundial, pelo que é capaz de pressionar um qualquer outro Estado durante um longo período de tempo e de ter acções efectivas em zonas dependentes de outro Estado, sem necessitar que o mesmo lhe dê de consentimento.
O princípio da hierarquia das potências teve importantes reflexos entre nós, principalmente a partir das invasões francesas. Porque, desde então, passámos a ter que ser bons alunos das potências que nos secundarizavam e, apesar da memória de uma anterior grandeza, logo integrámos o ranking dos pequenos e médios Estados, daqueles que, no contexto de uma hierarquia de potências, têm de gerir dependências, para poderem ser independentes. Isto é, que estão condenados a praticar a chamada acomodação, esse processo de ajustamento face a um conflito, em que grupos ou forças, sem resolverem a fonte real do conflito, fingem que deixam de ser hostis, ao estabelecerem um modus vivendi, ou um modus non moriendi, que só não é harmonia porque, de um momento para o outro, quando um qualquer solista tem suficientes interesses para desafinar, tudo volta, num ápice, à berraria da lei da selva.
A expressão vem de commodus, de cum mais modus, o mesmo que com modos, com medida. Aquela atitude que tenta evitar atritos, procurando sempre a conciliação. Até se diz que a acomodação, quando é provocada pela cobardia, gera o conformismo, diferindo da acomodação corajosa, levada a cabo por quem é norteado por um sincero desejo de paz.
Esta hierarquia subjacente às relações internacionais também pode ser manifestada pela criação de uma aliança ou de um directório entre as principais potências dominantes, os tais great powers. Ainda hoje, no plano da integração europeia, muitos falam no regresso ao directório, quando assistimos aos esforços da locomotiva franco-alemã, para não citarmos o caso das alianças que sustentavam o mundo bipolar da Guerra Fria.
Refira-se que aliança vem o latim ad ligare, o mesmo que juntar a, expressão que entrou no vocabulário contemporâneo através do francês alliance. No plano das relações internacionais, é uma forma permanente de colaboração ou de cooperação entre Estados e pode dizer-se alinhamento, quando não é formalizada através de um escrito. Em qualquer dos casos, as entidades participantes na aliança conservam, formalmente, a respectiva independência ou autonomia. Também, de origem francesa é a expressão bloco, de bloc, que, no plano da política internacional, quer dizer um grupo de Estados que se juntam sem prévio tratado ou aliança, sendo exemplo do processo o grupo de Estados que se juntaram contra a França revolucionária.
Por outras palavras as sucessivas ordens mundiais do mundo contemporâneo acabaram sempre por ser meras situações de anarquia ordenada, através de um neofeudalismo dos donos do poder mundial, criando teias onde se diluíram muitas esperanças movidas pelos sentimentos da paz e da justiça.
Já quanto à ideia de governo mundial, importa assinalar muitos dos grandes impérios do passado a tentaram assumir, nomeadamente sob a forma de monarquia universal. Felizmente, nunca nenhum deles conseguiu concretizar essa embriaguez hegemónica, para utilizarmos uma expressão de Norbert Elias, em Humana Conditio, de 1985, nenhuma atingiu a dimensão de um Estado global unificado, governado a partir de um único centro.
Contudo, as várias civilizações nem por isso deixam de constituir, para utilizarmos a linguagem de Arnold Toynbee, um só mundo (One World), uma super-civilização, sem bárbaros nas fronteiras. Este mesmo autor falava em cinco civilizações: a ocidental-cristã (Western), a cristã oriental (Orthodox Christian), a islâmica (Arabic… now incorporated with the Iranic into the Islamic society of to-day), a indiana e a chinesa, referindo que todas elas ousaram transformar-se em Estado Universal.
Segundo as respectivas teses, cada civilização seria produto de uma minoria criadora, que responderia a sucessivos reptos, desenvolvendo-se. Primeiro, elas cresceriam através de uma espécie de élan, that carries them from challenge through response to further challenge and from differentiation through integration to differentiation again (II, 1934, p. 128).
O crescimento aconteceria quando, ao desafio, se segue uma aceitação, provocando novo desafio e assim sucessivamente. Haveria, contudo, um momento de paragem, quando a minoria deixa de ser criadora e apenas procura conservar o poder que deixou de merecer, levando a que o povo, ou proletariado, a deixe de seguir.
Passa-se, então, ao estádio de Igreja Universal, aquela que nasce da existência dos humilhados e ofendidos da conjuntura interna (o proletariado interno), para se unir aos bárbaros vindos do exterior (o proletariado externo). Só depois viria a desintegração, já no momento da instituição do Estado Universal.
Noutra perspectiva, e ainda com linguagem actual, diremos que se alguns preferem um novo centro marcado pelo unitarismo, outros defendem uma estrutura federal. Mas, entre os não unitaristas, se há teses federalistas propriamente ditas, que advogam o imediatismo de um novo contrato, eis que também surgem posições marcadas por aquilo que alguns qualificam como o federalismo funcionalista e gradualista, o chamado federalismo sem dor, de Robert Schuman e Jean Monnet, que prevê a transferência para o novo centro de apenas algumas funções dos anteriores centros políticos.
Numa posição terceirista, surgem também os que, na linha de Kant, advogam uma república universal, entendida como uma exigência ética, no sentido de levar cada Estado existente a comportar-se como se todos os Estados existentes, formassem um Estado Mundial, uma civitas humana, a fim de poderem limitar-se os poderes do Estado-Leviatã. Esses que, indo além do Iluminismo, mergulham no próprio conceito de Cícero (106-43 a.C.), sobre a república, ou coisa comum, que tanto exige a multitudo, como a communio, uma comunidade de intereses e de fins, sempre norteadas pelo consensus iuris.
É a posição assumida por Wilhelm Röpke que defende um plano global de luta contra o espírito de guerra, o nacionalismo, o maquiavelismo e a anarquia internacional, capaz de inverter o facto da soberania dos Estados tender para o absolutismo, por gerar a identificação da massa com a nação e com o Estado, marcado por um maquiavelismo que é não apenas uma má moral, mas também uma má política (1945/1947, pp. 22, 41, 39 e 57)..
Na mesma senda, o referido Arnold Toynbee, em nome da mãe terra (Mother Earth, 1976), se defende uma cidade mundial, rejeita um governo mundial, dada a importância dos Estados historicamente existentes, que deveriam encaminhar-se para um novo Estado mundial federativo. Qualquer tentativa de eliminar do mapa político os Estados actuais, como aconteceu com os prussianos, e de redesenhar totalmente o mapa, não seria uma tentativa de política prática.
Utilizando a terminologia da escola funcionalista norte-americana, a integração internacional poderá ser definida como o processo através do qual os agentes políticos transferem, para um novo centro político supranacional, lealdades, expectativas e actividades políticas (Ernst B. Haas, 1966, p. 70), assentando em doutrinas e em instituições que têm como objectivo a aplicação de um direito universal acima das jurisdições nacionais, segundo as quais pode atribuir-se, a uma entidade superior aos Estados, aquele poder decisório que penetra na tradicional jurisdição interna dos Estados.
Foi, aliás, o cientista político britânico, de origens romenas, David Mitrany (1888-1975), quem, primeiro, fez uma aplicação dos modelos funcionalistas ao fenómeno da integração internacional, em 1943, ao considerar negativo o modelo de integração da Sociedade das Nações, defendendo a criação de uma rede de organizações internacionais, com vocação técnica e com um objectivo utilitário, tendo em vista a realização de tarefas concretas e necessárias. Tudo em nome da velha ideia, segundo a qual são as funções que determinam os seus órgãos apropriados, nomeadamente um instrumento executivo adaptado à sua actividade própria. Até porque a maior parte das funções poderão ser organizadas com o consenso dos governos nacionais mais interessados.
Invocando o cepticismo entusiasta do fundador do conservadorismo, Edmund Burke, segundo o qual o governo é uma tarefa prática, livrando-se de formas constitucionais para prazer dos visionários, aconselhava que, finda a guerra, a manutenção da paz não deveria assentar em grandes instituições supranacionais, mas através da cooperação dos Estados, no sentido da realização de objectivos bem concretos, respondendo a necessidades económicas e sociais. Até porque não asseguraremos a paz no mundo se a organizarmos segundo o que a divide, pelo que os elementos de um sistema funcional poderiam começar a sua actividade sem autoridade política geral. Um objectivo pragmático seria o único mobilizador, apesar de poder também constituir um ponto de partida para posteriores projectos, já mais ambiciosos.
Em nome da conciliação de interesses comuns pretendia ajustar a liberdade nacional à organização internacional. A ideia acabou por influenciar a modelação do próprio sistema da ONU e, depois, serviu de inspiração a Jean Monnet para o lançamento do projecto europeu.
Mas foi no próprio ano da institucionalização do modelo do Tratado de Roma e da subida ao poder de De Gaulle que a escola funcionalista norte-americana de ciência política, pela pena de Ernst B. Haas, analisando o processo de construção europeia marcado pela integração económica da CECA, começou a falar em integração funcional, considerando que decisões económicas limitadas seriam as mais aptas para a obtenção de escolhas políticas cruciais, as quais seriam provocadas mais por convergências de interesses do que por opções políticas.
Neste sentido, referia poder existir a passagem automática de uma união económica para uma união política, dado que a dinâmica ascendente da integração permitiria que a mesma se estendesse progressivamente a outros sectores económicos, a sectores políticos e até a outros países. E isto, porque o novo centro político, gerado pela integração sectorial económica, entraria em relações directas com os principais actores sociais e políticos, os grupos de interesse e os partidos políticos, pelo que as próprias crises levariam ao reforço da integração e da comunidade por ela gerada. No fim do processo, atingir-se-ia, inevitavelmente, um novo Estado de natureza federal.
Para se conseguir tal objectivo, bastaria o desencadeamento do processo de estabelecimento de uma instituição supranacional num determinado sector económico, que levaria automaticamente à cobertura de outros sectores (Haas,1958).
O choque gaullista e o consequente desaparecimento do motor federalista, ao mesmo tempo que se começavam a pôr em causa os mecanismos do Welfare State do pós-guerra, levaram a que o próprio Haas tivesse que modificar a sua teoria em 1964. Assim, é obrigado a temperar o seu determinismo sócio-económico, reconhecendo que a lógica da integração funcional já não é automática, mas probabilista: trata-se de um processo frágil, susceptível de voltar atrás e a sua evolução depende de muitas variáveis, entre as quais destaca o poder das lealdades nacionais e das lideranças, as quais podem ser distintas dos automatismos integracionistas.
Por outras palavras, a Comunidade passa a ser perspectivada segundo o velho modelo realista da balança de poderes, traduzindo-se num equilíbrio entre forças integracionistas e forças anti-integracionistas. A integração deixa de ser um mero processo, sem referência a um fim político, e trata de mergulhar, mais uma vez, no domínio dos valores, nomeadamente nos da democracia e do Estado de Direito, o que, para além das lideranças políticas, implicaria o próprio apelo à participação dos cidadãos.
Partindo de alguns destes pressupostos da nebulosa federalista, eis que, entre nós, o Professor Adriano Moreira ensina que essa mesma integração internacional tanto poderá ser federalista como funcionalista, salientando que, nesta última, há as seguintes variantes: integração económica (zonas de comércio livre, mercados comuns e mercados únicos), a integração social (livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas), a integração política (institui novos mecanismos de decisão política, nomeadamente poder legislativo, poder executivo, poder judicial e poder confederativo, ou política externa) e a integração militar (instaura uma política comum de segurança e defesa que visa optimizar a defesa e a segurança, aumentar o potencial político na balança internacional dos poderes, ou eliminar as causas de anteriores conflitos entre os agentes que participam na integração).
Dentro da escola norte-americana, há quem tenha da integração política uma opinião mais geral, ligando-a a um conceito global de unificação. É o caso do professor da Universidade de Columbia, Amitai Etzioni, para quem há três tipos de integração numa comunidade política, correspondentes a três tipos de poder. Porque as estruturas políticas e sociais não evoluem apenas pela crescente especialização ou pela ruptura das cisões. Elas também podem evoluir pela unificação, quando, perante a exigência de funções novas, para que se não encontra resposta na estrutura anterior se estabelecem novas estruturas. Caminha-se assim para a integração política, para uma espécie de epigénese sempre que não há infuncionalidade dos anteriores mecanismos.
Por outras palavras, Etzioni vai além das anteriores teses funcionalistas, segundo as quais as estruturas apenas mudam pela cisão, especializando-se crescentemente para o cumprimento de funções cada vez mais precisas, considerando que as mesmas estruturas podem evoluir pela unificação, acrescentando a si mesmas novas estruturas, as tais que nem sequer existiam em germe no contexto histórico precedente. Funções inteiramente novas podem gerar novos desafios e contribuir para esse acrescentamento, que não é mera cessão de poder, mas uma autêntica criação de um novo poder (1968, pp. 554-555).
Se atendermos ao physical power, ao poder proveniente da coerção, o mecanismo de integração é marcado pela existência de um poder de coacção superior a qualquer outro.
Distinto deste poder físico, há uma segunda forma de poder, dita material power, o poder que se fundamenta na capacidade de distribuir ou de recusar vantagens materializáveis, como no caso do poder económico, que leva a uma integração baseada num centro de decisão, com poder suficiente para influenciar a repartição de bens.
Finalmente, há um poder normativo ou simbólico, normative power ou symbolic power, o poder que se fundamenta na aptidão para se mobilizarem convicções. Assim, a integração política por este produzida assenta num centro principal, que apenas mobiliza a lealdade política dos membros da unidade em causa.
Estes três poderes actuam, normalmente, em conjunto e geram mecanismos de integração autárcica, isto é, não dependem de entidades exteriores à comunidade em causa, tanto para o estabelecimento do respectivo espaço de actuação, como para a definição da respectiva estrutura interna.
Desse complexo, gerou-se um arquipélago de comunidades. Não apenas portuguesas, lusíadas e meramente lusófonas, mas também de luso-descendentes, pelo sangue, pela língua, pela cultura, ou então pela memória de um encontro, ou de um sonho, de futuro, através da procura de uma construção conjunta.
Uma comunidade feita em torno das coisas que se amam, um patamar a caminho do mais belo de todos os ideais políticos: a construção de uma república universal, de uma paz pelo direito, marcadas pela afectividade das emoções.
Depois do fim do ciclo do nosso mais recente império terrestre, aquele que teve como principal teatro o povoamento e as campanhas africanas desse quase um século, que vai da Conferência de Berlim aos acontecimentos de 1974, eis que se tornou obsidiante frase de Pessoa, segundo a qual minha pátria é a língua portuguesa. Uma invocação que tem servido de mote para as mais variadas glosas sobre a necessidade de consolidação de uma comunidade luso-falante, cujas parcelas alguns comparam aos heterónimos do mesmo super-Camões do Portugal Contemporâneo.
E aqui importa sublinhar que, ao contrário do sucedido com o Estado espanhol que, nos finais do século XIX, foi obrigado, por pressão dos interesses norte-americanos, a abandonar Cuba e as Filipinas, apenas tentando, um pouco à maneira dos objectivos do nosso D. Sebastião, uma forte permanência colonial em Marrocos, os portugueses só fizeram uma aposta africana nesses tais cem anos contemporâneos. Foi então que se desencadeou um movimento de reconstrução imperial, fortemente influenciado pelos ciclos conquistadores daquelas potências coloniais do Ocidente europeu que tentavam humanizar a violência do mercantilismo e a hipocrisia do free trade, em nome de um missionário white man’s burden.
Aliás, talvez se tenha construído o essencial da presença portuguesa nesse continente durante as décadas de sessenta e setenta do século XX, face ao desafio da chamada guerra colonial, ou das campanhas de África, esse simples capítulo da guerra da África Austral, inserido no mais vasto livro da Guerra Fria. O que bem se demonstra pela circunstância de tal episódio bélico atípico não ter acabado com o nosso abandono de 1974-1975, tendo-se, inclusive, agravado em Angola e em Moçambique, já sem a participação portuguesa.
À maneira de Santo Agostinho, podemos dizer que em 1974-1975 não foi o mundo português que acabou, mas sim um novo mundo português que começou, dado que talvez continuem fecundantes as esperanças de Portugal. Porque, como dizia Arnold Toynbee, numa civilização em crescimento, a um desafio opõe-se uma réplica vitoriosa que vai imediatamente gerar um outro desafio diferente a encontro do qual se ergue uma outra réplica vitoriosa (The Study of History, II, 1934, p. 128).