Abr 02

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Choveu e chove. As ribeiras floresceram. Mas nem todas desaguam no mesmo rio. Tal como nem todos os rios vão dar o mesmo sítio, chame-se praça, rotunda ou largo. Há muitas vias de chegar ao mar que todos procuramos. Alguns até são rios subterrâneos.

35,4% no emprego jovem. E os donos do negócio dos principais centros de formação ainda querem refinar a formosa táctica que nos conduziu ao desastre, com as habituais chouriçadas que os engordaram em títulos, honrarias e cargos, só porque a ditadura da incompetência continua a ser crime que compensa quem emite discursos de fazer chorar as pedras da calçada, só porque rimam com músicas e plágios falsamente celestiais.

Detesto burocratas broncos, sargentos de caserna, pobres de espírito e todos quantos conseguiram colocação adequada num posto de vencimento graças a eficaz cunha junto de um senhor director, bem colocado na pirâmide de sucesso da distribuição da posta. Normalmente, vêm daqueles neo-escolásticos de uma qualquer vulgata, ao serviço de um mestre-pensador, o que escreveu o livro que diz abrir todas as portas e desfazer todas as dúvidas de quem sofre a angústia da procura. Não tardará que chegue o mosca, o formiga ou o bufo e que voltemos às viradeiras do costume.

A Coreia do Norte reduziu a altura mínima exigida aos soldados de 145 centímetros para 142, uma vez que a geração atual sofre de raquitismo devido à fome que atinge o país. A propaganda do imperialismo é terrível. A fome ainda é pior.

Uma notícia altamente política que a Comissão de Censura não deveria ter deixado passar: “Depressão situada sobre a Península Ibérica está a criar instabilidade. É esperado granizo e trovoada.”

Jaquim tem sinal no pescoço. Todos os que têm esse sinal no pescoço são umas bestas. Logo, sempre que vejo um tipo com um sinal no pescoço já tenho argumento, chamo-lhe qualquer coisa. Até uso insecticida. Antes de poder mandar as moscas. Já estou habituado. Há séculos.

Segundo Weber, a moral da convicção (Gesinnungsethik) incita cada um a agir segundo os seus sentimentos, sem referência à s consequências, diz, por exemplo, para vivermos como pensamos, sem termos de pensar como depois vamos viver. Difere da moral da responsabilidade (Verantwortungsethik). A segunda apenas interpreta a acção em termos de meios–fins e é marcada pelo supra-individualismo, defendendo a eficácia de um finalismo que escolhe os meios necessários, apenas os valorando instrumentalmente, dizendo, por exemplo, como em Maquiavel, que a salvação da cidade é mais importante que a salvação da alma.

A intelectualice que emiti tem a ver com duas conversas que me chegaram. A primeira, de um velho patriarca da esquerda, sobre a instrumentalização de um velho direitista, dizendo que o deviam usar porque ele era inofensivo, vaidoso e até dava jeito. A segunda de um novo direitista no poder, dizendo exactamente o mesmo de um esquerdista. Ambos têm razão enquanto a não perderem. Com o factor mais criativo da história da humanidade: o imprevisto que produz mudanças.

Uma conclusão: em Portugal, o de hoje, e o de ontem, não há espaço para teorias da conspiração, para lutas de ideias ou para combates políticos. É tudo mais de amiguismos de jantarada e de troca de favores. No toma lá, dá cá, que nem feudalismo chega a ser. Porque este tinha lógica. De cavalaria, vergonha e dominação dos outros. Um colonizado está uns degraus abaixo do feudalizado. É mais barato.

Partilhando uma emoção. De Anna Marly, a exilada russa que desencadeou a coisa em Londres, 1943. Há quem pense que a canção tem a ver com um partido ou com uma revolução, o que não corresponde à conspiração de todos quantos criaram a libertação. Francesa e universal.

Sempre acreditei nos acasos procurados.

Um ex-ministro socialista democrático diz para um ex-secretário-geral social democrata que a social democracia está esgotada e os dois parecem de acordo. Estão ao mesmo nível da fúria do manso Seguro contra o ex-presidente do PSD, Marcelo. Não falta sequer o secretário-geral da UGT a criticar o Governo, fingindo estar zangado com Álvaro. É o chamado regime dos memorandos. Para memórias futuras. Mas, a médio prazo, com este ritmo, estaremos todos mortos, em nome das presidenciais.

Quando os do vértice pensam que ganham deixando crescer a onda, pode acontecer o que sucedeu aos que, dizendo que lutam contra os corporativismos, atacam zonas do Estado como os magistrados, os tropas, os professores ou os autarcas. Até há quem diga que alguns já lá estão desde o 25 de Abril. Sem repararem nos que lá continuam desde antes do 25 de Abril e continuam a mandar para que os de sempre continuem a pagar. Até com sentimento de culpa. E com razão. Continuamos a deixar que outros escolham por nós.

 

Abr 02

Chantal Maillard

Mesmo aqueles que acedem ao clube do pensamento pela via das vulgatas e da propaganda, quando se tornam militantes, podem atingir a autenticidade. Até no fundo de uma ideologia materialista se pode chegar à ascese. Conheço niilistas que no tudo do seu nada encontraram a dúvida criadora que lhes deu a beleza do espírito. E assim ascenderam. Daí, a importância dos símbolos.

No existe el infinito:
el infinito es la sorpresa de los límites.
Alguien constata su impotencia
y luego la prolonga más allá de la imagen, en la idea,
y nace el infinito.
El infinito es el dolor
de la razón que asalta nuestro cuerpo.

(Chantal Maillard)

Há quem jure, em palavras de mentira, que quem, como eu, fala publicamente anda de braço dado com o poder, porque, para tanto, é remunerado. Para os devidos efeitos, comprometo-me a oferecer todos esses proventos a quem vier à rede, provando-o. Basta que solicite tal informação ao fantasmagórico remunerador, naquilo que deve ser informação pública. Não cobro nada pela ofensa. Apenas reivindico a verdade. Porque, calando, pago duas vezes: pelo que não recebo e pelas doçuras com que o poder me trata. Amen!

Hoje, ando às voltas com Chantal Maillard: “cuando la lógica se aplica en ámbitos que rebasan el conocimiento, es un juego parecido al del ajedrez: tienes unas piezas y se juega en el tablero, pero si pretendes que ese tablero es la realidad exterior, es tramposo. Juegos metafísicos los hay en todas partes, pero la trampa es creer en los grandes conceptos, cuando creemos que las palabras dicen algo de lo concreto. Lo concreto es singular, y los conceptos son universales”.

O máximo de poder a que podemos aceder é renunciarmos a poder que manifestamente nos deram. Aquele poder feudal que apenas nos é fingidamente ofertado, para que, depois, ele se retribua em obediência sem consentimento. O que só se consegue quando se rejeita o título, o símbolo e a pretensa honraria que o exercício do poder parece.

A principal forma de poder que se pode exercer é alcançar aquele estatuto que permite a cada um poder não saltar para o cavalo do poder com que nos podemos cruzar. O que impõe não ter cavalariça onde gaurdá-lo. Ou sacristia onde ele possa ser exibido. Só com o anarquismo místico da procura da verdadeira ordem se alcança tal forma de ascese, isto é, de não dependência face aos bobos da Corte.

Ter poder com autoridade é não ser como aqueles politicamente correctos que, quando querem ser ouvidos, têm de proclamar que aquilo que vão dizer não é politicamente correcto. Mesmo quando, como é costume, eles continuam sem dizer nada.

Passámos do que estava para o que está. O que estará pode vir a ser aquilo que esteve. Se continuar o estar em vez do ser.

Há certas modas que deveriam já ter passado de moda. Nomeadamente, o neomarialvismo da revolução por cumprir, a que, assumindo o hierárquico e o proibicionismo do poder formal, diz que não pode cumprir a sua função porque há capitalismo, Estado, tempestades de granizo e trovoada.

Há nomes que, para corresponderem às coisas nomeadas, precisam de formas humanas que não estejam gastas pelo mau uso de certo estilo e, muito menos, se tenham prostituído pelo abuso discursivo. Esse disco riscado continua a provocar-nos alergia. Mas vai tocando o mais do mesmo. Não sou rei para o mandar calar. Apenas desligo.