É-me grato estar convosco, na terra que foi o berço e o túmulo de Manuel Fernandes Tomás, o Patriarca da Liberdade, para vos apresentar – diria melhor, para vos falar- deste precioso livro, a que o autor, o nosso fraterno amigo José Adelino Maltez, deu o título, algo enigmático, de Abecedário Simbiótico. Obra indispensável para quem queira alargar a vasta bibliografia sobre a temática maçónica, veio preencher um espaço ainda aberto na abóboda da historiografia da Arte Real, ou, dito de modo simbólico, constituir-se como pedra de fecho – passe o oximoro – da obra, sempre inacabada, da Augusta Ordem.
O Professor Adelino Maltez é um dos mais cultos e respeitados académicos, e um dos mais lúcidos e argutos comentadores da actualidade. Conhecemo-nos quando, como Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, o convidei para proferir uma conferência integrada nas celebrações dos 200 anos da Casa-Mãe da Maçonaria Portuguesa. Essa conferência encheu o salão nobre da Ordem dos Advogados, em Lisboa, a 15 de Abril de 2004 e versou o tema: “A Influência da Maçonaria no Pensamento Jurídico-político do Portugal contemporâneo” e foi publicada com a chancela do Grémio Lusitano, em 2005.
Nesse tempo, Adelino Maltez ainda não conhecia a acácia e, assumindo-se como profano, “logo foi alvo de críticas e denunciações por conviver com os pedreiros livres”, como escrevi no prefácio à referida publicação. Creio, porém, que a investigação a que procedeu para abordar aquele tema, também desenvolvido em obra de maior fôlego, e a conclusão a que chegou sobre a influência construtiva da Maçonaria no nosso ordenamento jurídico-social, o levou a aproximar-se das duas colunas que, replicando o pórtico do Templo de Salomão, traçam as fronteiras entre o sagrado e o profano.
Ao usar esta expressão estou eu próprio a colocar-me no pórtico deste livro e a convidar os seus leitores a descobrir a sabedoria, a força e a beleza que irradiam das suas quase 800 páginas. Só um grande investigador, dotado de invulgar inteligência e cultura, poderia conceber e produzir uma obra desta natureza e complexidade, com o rigor de quem mostra saber usar o esquadro da rectidão e o compasso da probidade intelectual.
Na conferência acima referida, Adelino Maltez escreveu a concluir: “Julgo que há toda uma concepção do mundo e da vida que está à espera de inventário, a fim de se demonstrar a influência do humanismo laico, de raiz maçónica, no pensamento jurídico-político português”. Essa semente – afirma ainda – lançou raízes que nunca mais serão decepadas.
O inventário de que fala é este precioso livro, cujo título nos interpela. Abecedário significa, além do mais, rudimentos de qualquer ciência, cujos conceitos são ordenados por ordem alfabética.Simbiótico ou simbiose respeita, como sabemos, à associação de dois seres ou de duas coisas diferentes, que harmoniosamente convivem e se completam. A simbiose verifica-se aqui entre a Maçonaria e a História ou entre a Pátria e a nossa Augusta Ordem, por isso que a Maçonaria ajudou a escrever a História de Portugal desde que um católico inglês, chamado Dugood ou Dogut, abriu a primeira Loja em Lisboa, conhecida pela Loja dos Hereges Mercadores, em 1727 ou 1728, já lá vão quase 300 anos. É desde esses recuados tempos que os valores maçónicos, mais largamente difundidos após a criação do Grande Oriente Lusitano, em 1802, impregnaram a vida e moldaram as instituições portuguesas, deixando plantadas, ao longo dos últimos três séculos, as pedras vivas que ainda hoje, como os velhos landmarks, adaptadas às exigências do presente, apontam o caminho do futuro.
Recordo-vos que os pedreiros livres traçaram os planos e ajudaram a construir, primeiro a monarquia constitucional, e depois a república democrática ou a democracia res-publicana. Foram também eles que construíram, literalmente falando, a Lisboa pombalina após o terramoto de 1755. Do liberalismo vintista ao Estado Social de hoje, ou seja, da Constituição de 1822 à de 1976 foi, com alguns incidentes de percurso, longa a caminhada que tem a marca identificadora dos valores que nos são caros: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Progresso, Tolerância, Justiça. Foram os nossos Irmãos do Sinédrio, no qual pontificaram Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho que desencadearam o Movimento de 24 de Agosto de 1820 que derrubou o regime absoluto e iniciou a construção do Estado de direito, ainda e sempre em aperfeiçoamento. Foram prevalecentemente os “filhos da viúva” que difundiram os ideais republicanos e implantaram a República, em 5 de Outubro de 1910, de que destaco Sampaio Bruno, Basílio Teles, João Chagas, José Falcão, Miguel Bombarda, Almirante Reis e Machado Santos. Acrescento três Ilustres Grão-Mestres do GOL: Magalhães Lima, Bernardino Machado e António José de Almeida, os dois últimos Presidentes da República. Entre as duas datas é oportuno referir os reformadores Mouzinho da Silveira, Passos Manuel e Sá da Bandeira, os juristas e legisladores António Luís Seabra, Levi Maria Jordão, Vicente Ferrer Neto Paiva e o Bispo António Aires de Gouveia, que começaram a construir o Estado moderno, garantindo direitos civis e políticos, abolindo a escravatura e a pena de morte, traçando uma nova arquitectura administrativa e judiciária.
As letras pátrias são também iluminadas por Irmãos tão ilustres como Garrett, Antero, Camilo, Herculano e Eça. As ciências brilham com o contributo de Avelar Brotero, Ribeiro Sanches e , mais tarde, Egas Moniz.
Após a proclamação da República destacam-se as reformas profundas de António José de Almeida e Afonso Costa, com as suas leis relativas à instrução e à saúde – o primeiro – e da família, do divórcio, do registo civil e da separação da Igreja do Estado – o segundo – que ainda hoje vigoraram nos seus princípios essenciais.
Os maçons do liberalismo monárquico ajudaram decisivamente a consolidar a liberdade. Os construtores da República reforçaram essa coluna e levantaram outra -a da igualdade, pois a Constituição de 1911 aboliu todos os títulos e privilégios nobiliárquicos. Os maçons do nosso tempo, que criaram as condições para o derrube da ditadura do Estado Novo e participaram na Revolução de 25 de Abril de 1974, estão a trabalhar a coluna da fraternidade, através da construção do Estado Social, baseado na Justiça, na solidariedade e na dignidade da pessoa humana.
Perguntarão: a que prepósito vem este arrazoado, se eu apenas me propus apresentar-vos esta última obra de Adelino Maltez? Respondo que todos os factos e personagens acima referidos, constituem matéria nele explanada. A obra tem duas partes: a primeira é, efectivamente, um abecedário de signos, conceitos e expressões correntes e maçónicas. Vou exemplificar, apenas com a letra A, que o autor nos elucida representar a pedra filosofal e símbolo do homem como senhor da terra: abóbada, absolutismo, acácia, ágape, agnosticismo, alma, alquimia, altos graus, anarquia, anticlericalismo, aprendiz, areópago, arquitecto do universo, arte real, avental e axioma.
A segunda parte é, como lhe chama o autor, uma Cronobibliografia Maçónica cobrindo o período de 1717, ou seja, o início da maçonaria moderna ou filosófica até 2011. Aqui se faz a verdadeira simbiose entre Maçonaria e História através da ligação e enquadramento de eventos maçónicos, sociais, culturais e políticos. Se a primeira parte é um dicionário com entradas conceituais e onomásticas de A a Z, a segunda é uma sinopse histórica-maçónica, um verdadeiro Digesto, ou seja, uma compilação metódica, e sintética à maneira do Digesto do Imperador Justiniano, de 530, não de textos jurídicos, mas de personagens e acontecimentos relevantes que moldaram a História Pátria e Universal nos últimos 300 anos. Vejamos a súmula cronobibliográfica-maçónica dos primeiros 10 anos (pag 555/6): 1717- acto fundador da maçonaria iluminista ou especulativa com a instituição da GrandLodge of London and Westminster, em 24 de Junho, dia de S. João Baptista. Em 1718 é eleito grão-mestre George Payne e em 1718 Jean Théofile Desaguliers. O grupo assume o livre-pensamento, expressão surgida em 1697, quando W. Molineux, numa carta dirigida a John Locke qualifica Tolland como a candid freethinker. Também em 1717 Voltaire é preso por ter publicado várias sátiras políticas e religiosas. É nesse ano que se inicia a construção da Biblioteca da Universidade de Coimbra e o Convento de Mafra. Em 1718 é publicada a edição póstuma da História do Futuro do padre António Vieira. Em 1723 são apresentadas as Constituições de Anderson e surge a Grande Loja da Irlanda. O médico Ribeiro Sanches, a que atrás aludi, é obrigado a deixar Portugal para fugir à Inquisição, em 1726. Em 1727 funciona em Lisboa uma Loja maçónica de comerciantes ingleses, também já referida. Em 1720 é fundada a nossa Academia Real de História e em 1725 morre Pedro o Grande. No ano seguinte o Irmão Motesquieu publica Lettres Persannes e Leibniz os Principia Philosophiae ou Monadologias.
Dei-vos uma pequena amostra do conteúdo e consequente indispensabilidade deste livro. Deve ficar na nossa estante ao lado de obras marcantes, como as do nosso saudoso Irmão A.H.Oliveira Marques. É um trabalho que honra e investigação histórica e a narrativa maçónica. O autor chamou-lhe, em subtítulo “Um digesto político contemporâneo com exemplos sagrados e profanos”. Eu chamo-lhe uma excelente e preciosa peça de arquitetura. Há aqui muita pedra desbastada muita aresta polida, muitas verdades desocultadas. A nossa Augusta Ordem só ganha com trabalhos desta amplitude e seriedade.
Antes de terminar, parece-me útil, até para sublinhar a oportunidade desta obra, reproduzir uma pergunta que, recorrentemente, é lançada ao vento com boas ou obscuras intenções: nas sociedades abertas e democráticas, onde há liberdade de associação e de filiação partidária, ainda se justifica uma instituição de natureza secreta ou discreta, que usa rituais e símbolos milenares, cultiva o esoterismo, trabalha com instrumentos da construção e utiliza vestes arcaicas, de entre as quais o avental que é, frequentemente, objecto de irrisão de plumitivos provocadores ou ignorantes?
A Maçonaria é, no tempo mercenário que vivemos, cada vez mais necessária pelos valores humanistas que perfilha e difunde, porque pratica a filantropia e o aperfeiçoamento moral dos seus membros para, dessa forma, ajudar a construir uma sociedade mais justa. A História Pátria e Universal mostra-nos que os maçons estiveram sempre na primeira linha da defesa dos direitos fundamentais, da dignidade e da libertação do Homem. Mas além de necessária, porque é constituída por pessoas de bem, de honra e probidade, é também insubstituível: nenhuma outra instituição acolhe no seu seio homens e mulheres de todas as ideologias democráticas, de todas as raças e religiões, ou descrentes de todas as sensibilidades, em total fraternidade. Por isso nós dizemos que uma Loja é a imagem do mundo futuro: um espaço de convívio ético, onde as diferenças, simbolizadas pelo pavimento em mosaico branco e negro, conjugam a harmonia do colectivo e onde todos se tratam como irmãos.
Perguntar-se-á, contudo, se os partidos políticos não poderão realizar o objectivo de aperfeiçoamento cívico e de construção de um mundo melhor. Como já escrevi, “os partidos, essenciais ao regime democrático, não substituem a Maçonaria como forma de intervenção ético-social”, até porque alguns se transformaram em “simples máquinas de conquista do poder. Os seus fins e modos de actuação são completamente distintos. A Maçonaria quer despertar no Homem o sentido do eterno. Os partidos procuram no eleitor a adesão ao efémero” (*).
Os que criticam os rituais e as alfaias maçónicas não conhecem o valor dos símbolos nem o papel da semiótica na expressividade humana. Deixo aqui, em resumo, alguns exemplos, para ilustração dos profanos (não maçons), retirados do livro que aqui nos convocou:
Cinzel: simboliza o princípio activo e masculino. Recebe os impulsos do malho e direcciona-os de forma precisa – que podemos equiparar à capacidade de análise, classificação, cálculo e pensamento racional.
Compasso: símbolo cosmológico que serve para traçar o círculo, que, por sua vez, representa a criação do universo.
Esquadro: significa equidade, rectidão, rigor, precisão, identificando-se com a ideia de justo. O esquadro e o compasso são emblemas universais de Maçonaria, simbolizando a associação entre o espírito e a matéria.
Avental: símbolo do obreirismo dos maçons. É totalmente branco para os dois primeiros graus, mas têm orlas vermelhas (ou azuis conforme o rito) para os Mestres.
Quanto à natureza secreta dos ritos maçónicos, isso acontece, como escreveu o Grão-Mestre Norton de Matos na carta endereçada ao Presidente da Assembleia Nacional, em 1935, tentando travar a lei que ilegalizou o Grande Oriente Lusitano, “ não porque nelas haja qualquer coisa a ocultar, mas pela força do sentimento que leva cada família e cada irmandade a celebrar as suas cerimónias íntimas sem a presença de estranhos”. O ritual e os símbolos maçónicos estão hoje largamente difundidos em diversas publicações e na internet. É certo que as reuniões rituais se realizam “a coberto da indiscrição dos profanos”. Mas também o Conselho de Ministros, como anotou Fernando Pessoa no seu conhecido artigo em defesa da Ordem Maçónica, devia qualificar-se de secreto porque se reúne à porta fechada (*).
O que dizem ou o que fazem os maçons em Loja para se resguardarem da devassa dos curiosos? No início dos trabalhos o presidente, a que chamamos Venerável Mestre, pergunta:
-Para que se reúnem os maçons em Loja?
Responde ao 1º Vigilante, segundo o Ritual de aprendiz:
-Para combater a tirania, a ignorância, os preconceitos e os erros, glorificar o direito, a justiça, a verdade e a razão.
Tendo objectivos tão nobres, a Maçonaria é também uma instância moral que nos momentos difíceis, em que os valores éticos e civilizacionais são postos em crise e a Pátria agoniza, devia ter, como acontece com a Igreja Católica e outras Instituições, uma palavra justa e ponderada para unir e mobilizar os portugueses, como fez grão-Mestre do GOL em 15 de Janeiro de 2003, numa “Mensagem ao Povo Português”, a primeira que um Grão-Mestre dirigiu à Nação, denunciando o descrédito das instituições e da generalidade da classe politica, a corrupção e a degradação dos valores éticos”, procurando acender uma luz de esperança e incentivar os portugueses para a tarefa colectiva e patriótica de “trabalhar para vencer os males do presente e construir um Portugal soberano mais livre justo e fraterno, que nos honre e nobilite”.
Espero que numa próxima edição, Adelino Maltez inclua no lugar próprio uma referência a esta mensagem histórica, que foi difundida em conferência de imprensa, com a presença de muitos jornalistas, pois foi a primeira vez que o Palácio Maçónico recebeu os órgãos da comunicação social para significar que a Maçonaria está aberta ao mundo e trabalha para o bem da Pátria e da humanidade.
Já me alonguei mais do que pretendia. Por isso remato esta “prancha” pedindo emprestadas ao Grão-Mestre do GOL, Fernando Lima, que saúdo fraternalmente, as últimas palavras do seu prefácio para confirmar que esta Digesto “ficará para sempre como um livro de referência e uma obra monumental a acrescentar à grande cultura e humanidade do José Adelino Maltez”.
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(*) Introdução à Maçonaria, 6ª ed, Coimbra Editora, 2009.
F.Foz 6/4/2012.