Mar 21

Homem revoltado, sob o peso do nosso tempo

Sérgio chamava a esta coisa moluscular, cuja cobardia permitia o salazarismo, reino cadaveroso. Não vale a pena replicar, dizendo república cadaverosa. Já não somos reino nem república, mas estadão prenhe em venerandos, exigindo respeitinho. Mas continuamos o cadaveroso, do adiadamente, sempre enjoado, com medo de ficar à solta e com grandeza. Só com homens revoltados poderemos refundar-nos. Não com ministerialismo sentenciador, de ministros e ex-ministros, fingindo que são alternativa.

Os governantes que temos, isto é, que vamos tendo e tivemos recentemente, todos ele têm medo. Não do povo, que importa construir, mas da liberdade de cada um dos indivíduos. A única realidade que nos separa dos aparelhos que nos tramam em solidão, para esmagarem na nossa intimidade e a nossa criatividade. As que passam pela libertação face ao estado de necessidade com que nos continuam a escravizar. Enquanto nos enredarem nesta manipulação discursiva, continuaremos a ser mandados. Libertação, precisa-se! Para crescermos por dentro!

Glosando Pessoa, podemos dizer que o prestígio de actuais ministros também “nasceu vagamente da sugestão do seu prestígio universitário e particular, mas firmou-se junto do público, logo desde as suas primeiras frases como ministro, e as suas primeiras acções como administrador, por um fenómeno psíquico simples de compreender. Todo prestígio consiste na posse, pelo prestigiado, de qualidades que o prestigiador não tem e se sente incapaz de ter”.

Não é de estranhar que discursem sobre a meritocracia os seus exactos contrários, da mesma forma como não falta ocupação de tempos de antena de luta contra a corrupção por parte de quem, pelo menos, deveria envergonhar-se de falar no tópico. Politologicamente falando, a usurpação ainda resulta. Aqui e agora.

Os controladores do tráfego político, do “agenda setting” e da gestão da empregomania e da subsidiocracia ainda não perceberam que o respectivo GPS avariou, por mais palmas que recebam dos auditórios e por mais palmadinhas nas costas com que sejam mimoseados nos corredores da cunha. Um quarto de hora antes de morrerem ainda parecem vivos. E ainda despacham.

Nada mais clarificador do que ver juntinhos, numa só fotografia, um situacionista de agora, um situacionista de ontem e um situacionista de anteontem. São todos o mesmo. Está no registo do sindicato das nomeações mútuas.

Sou mais libertário, do anarquismo místico, que do embrulho populista com que se costuma disfarçar o jacobino, ou o seu irmão-inimigo reaccionário. Desculpem a revolta, mas os meus queridos Camus e Arendt, que pensaram o essencial no ano em que nasci, ainda me continuam a referenciar neste caminho.

Porque hoje é o dia mundial da poesia, ontem foi o mais do mesmo e amanhã, greve geral.  Vi este programa e li este artigo.

Set 27

Eu e o medo somos irmãos gémeos

Hoje não há notícias, joga o Benfica. Hoje não há parangonas, o governo faz cem dias. Mesmo que Obama diga que crise financeira da Europa assusta o mundo. Anda tudo troikado. Mas falou o  novo Leviathan, em três minutos de confissão televisiva de corretor bolsista. Os governos não mandam. Os mercados, também não. Quem manda é o medo. E a nova vontade de poder é ir para cama em orgias solitárias de ganhar dinheiro. Razão tinha Thomas Hobbes, nascido antes do tempo, um pouco antes da chegada da Armada Invencível: “eu e o medo somos irmãos gémeos”. Quem está dependente de planos de resgate, estabelecidos pelos cobradores do fraque do mundo a que chegámos, deve compreender que só podemos discutir neoliberalismos e proteccionismos quando voltarmos a ser homens livres de um povo livre, sustentável, na interdependência. Por enquanto, há governança maioritariamente exógena, sem espaço de autogoverno, até das algemas que libertam. Só pela libertação do indivíduo se reaprende a autodeterminação de um povo. Ser indiviso, isto é, indivíduo, tem um preço. Albert Camus dizia que era o da revolta contra a revolução. Continuo a subscrever. E dos livros de receitas ideológicas que tenho na estante, apenas confirmo que resistem as ideias, as crenças e os princípios, não os pré-cozinhados daqueles hipermercados que promovem a criação artificial das necessidades. Ainda há por aí pequenos chefes que procuram transformar os restritos conceitos que lobrigam em preceitos de decretina difusão. Costumo mandá-los imediatamente para a lixeira, mas ainda não tenho direito a remetê-los para o permanente do “spam”, apesar das muitas infecções virais pelas quais eles são causadores. Quando é que me livram destas redes estatolátricas estupidificantes que julgam acumular o ceptro e o báculo?

Jan 29

Os merceeiros, os enjoados e os quixotes

Os merceeiros, os enjoados e os quixotes que nos enrascam não assumem que é possível subverter a realidade através da metalinguagem e das erráticas metáforas. Não compreendem esse quanto mais poético, mais real, cantado por Novalis. A poesia sempre foi mais verdade, no sentido de mais filosófico, do que a história, como ensinava Aristóteles. Porque a via do transcendente sempre esteve mais situada nas circunstâncias do lugar e do tempo, do que as utopias e ucronias em que se enreda o pretenso cientismo, aquele que determina só existir aquilo que se pode medir, como as rígidas réguas dos paradigmas, sempre ultrapassáveis. Quem procura manejar o lume da profecia, sem o fazer esvoaçar fora do lume da razão, vive sempre fora do tempo dominante, sobretudo quando procura conjugar o eterno, longe dos que se enredam no paralelograma de forças do passado, sem as necessárias saudades de futuro. Não subscrevem aquele dito de Vieira, segundo o qual só há o verdadeiro fora do tempo. Ou melhor: fora daquilo que os donos do poder absoluta e da dita ciência certa decretam como suas verdades incontestáveis. A realidade sempre foi subvertida pelas autonomias, quando estas assumem que, no princípio, tem de estar o fim, o tal dever-ser que é, das essências que apenas se realizam pelas existências, onde só por dentro das coisas, as coisas realmente são. Todos os decretinos processadores, em nome da ideologia ou do vértice hierárquico, seja ministerialismo, sejam seus sucedâneos, directoristas, presidencialistas ou rectorísticos, temem todos os que praticam o pensar é dizer não, como dizia Alain. Ou que a revolta é bem mais fecunda que a revolução, como vai acrescentar Camus. A essência do homem ocidental sempre foi o individual do indiviso, essa dignidade da pessoa humana. Ou como assinalava Unamuno, a essência do homem ocidental é o ser do contra. Quem experimentou as garras do saneamento e do processamento da persiganga, com que os instalados tentam calar a revolta, não pode admitir que o rolo unidimensional do conformismo nos faça enjoar, sobretudo nesta praia da Europa que sempre foi partida para todas as sete partidas. O sinal do nosso futuro continua a passar pela resistência individual e pelo pensamento crítico da liberdade. Mesmo quando se rejeitam as normalizações impostas pelos pretensos antidogmáticos neodogmáticos, como esses que, perante certo situacionismo, proclamam que têm o monopólio da contestação e assim nos desmobilizam. Os bobos da demagogia, da tirania e da mentira podem alimentar-se desses irmãos-inimigos. Quem quiser continuar mesmo do contra tem que procurar o mais além e antecipar o tempo da revolta.

Dez 29

Velhas operações da cunha

Muitos desesperados chamam, às velhas operações da cunha , actividades congreganistas e maçónicas, especialmente quando a dita é elevada a manobra da nova sociedade de Corte, hierarquista e neofeudal, daqueles favores pequenos que, com favores maiores, se pagam, por mais místicas que sejam as protecções de adro, sacristia ou passos perdidos com que se recobrem… Esta fragmentação patrimonialista que destrói a política e o espírito torna-se mais patente em épocas de apodrecido fim de regime, como as da presente degenerescência, onde, como cantava o Mestre, não há lei nem rei, ninguém sabe que coisa quer, nem o que é bem, nem o que é mal… Não sei nada de grego, mas sempre digo: O problema é não haver indivíduos (de “indivisus”), porque, para que eles o sejam, tem que haver moral, a ciência dos actos do homem enquanto indivíduo, como ensinava Aristóteles. Quando se economiciza a “polis” ou a moral, quando se politiciza a economia ou o indivíduo, a resposta individual é aquilo que a velha ideia da anarquia mística sugeria: resistência, revolta, futuro! Porque, da Corte, homem não é, vale mais quebrar do que torcer (Sá de Miranda, em glosa). A moral não depende do observador. É coisa que apenas fica dentro do observador, mas só quando ele tem capacidade (auto), por si mesmo , de editar as própria regras (nomia). E o gosto íntimo de as cumprir, respeitando a autonomia do outro. Isto é, tendo o limite de, no espreguiçar os braços não esborrachar o nariz do outro (imagem de Holmes Jr., um velho filósofo do direito, norte-americano…).  Não há liberal à antiga que não tenha um anarca respeitoso dentro dele! A revolta é mais enérgica do que a revolução (Mestre Camus mo disse, num livro escrito no ano em que próprio nasci). Aqui chego com o sabor amargo de sentir no lombo as unhas arreganhadas do caceteirismo mastigóforo, o da inquisitorial sandice que me quer agnóstico, ateu ou de outra revelada pelo mesmo livro, quando apenas me confesso homem religioso, contra o fanatismo, a intolerância e a ignorância, mesmo a que apenas espera indulto de príncipe e nos sugere o estado de escravos voluntários. Por dentro de muitas coisas com figura humana, continua a besta do costume, nomeadamente as muitas traduções em calão de um puritanismo multinacionalmente fundamentalista que usurpa velhos símbolos de libertação e signos da energia pátria dos egrégios avós, heróis do mar. Detesto os reaccionários que não assumem a tradição e nos embalam com um absolutismo apátrida que edita santinhos e pagelas, enquanto disfarça a cobardia com hóstias embebidas em vinhedo, arrotando dejectos em forma de palavra. Há quem não alinhe no binário do respectivo manual de procedimentos e exorcismos… Apenas sou obrigado a responder-lhes quando eles me processam em nome do Estado e com os dinheiros do Estado, mas para benefício próprio da conquista e manutenção do poder, com o minúsculo dos compadres e comadres que se auto-reproduzem em abortos clientelares, a coberto das seitas do venha a mim o reino do regabofe, usando o Orçamento de Estado como barriga de aluguer. Que o ano seja Bom em vez do Mau. Basta não elevarmos a causa do estado a que chegámos à falsa categoria de Messias, mesmo que todos os dias se autoderribe do andor do estadão a que o levaram. Basta rasparmos o verniz altissonante que lhe recobre os pés de pau…

Mar 02

A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo

Há uma certa história que incomoda alguns adeptos do processo histórico: aquela onde é o homem que faz a história e não a história que faz o homem. Onde o homem faz a história, mas sem saber que história vai fazendo. Reparo que está novamente em cena em Portugal “O Príncipe de Homburgo”, de Heinrich Von Kleist. Reparo que, há mais de quarenta anos, Goulart Nogueira encenou a peça. Na Oficina de Teatro dos Estudantes de Coimbra. Como também a traduziu em 1961, editando-a então na Contraponto de Luiz Pacheco. A pedido do Teatro do Gerifalto, de António Manuel Couto Viana. Apenas um registo de verdade contra o banimento. É tudo uma questão de romantismo contra os invasores napoleónicos. Sempre.

 

Também por cá, José Acúrsio das Neves esteve ao lado de José Bonifácio de Andrade e Silva. Que reaccionários e maçons deram as mãos em nome da pátria. Como, depois, as voltaram a dar na Patuleia. Só historietas de literatura de justificação de posteriores regimes, sobretudo quando eles entram em crepúsculo de banhas de cobra comemorativas, ou de procura de historiografias oficiais de livro único, para uso, como catecismo, nas escolas também oficiais. Só então é que procedem a saneamentos de intolerância, fanatismo e ignorância.

 

A liberdade não é mera abstracção geométrica, mas a consequência de uma pluralidade de indivíduos autónomos. É uma vivência feita comunidade, que só existe quando existem homens livres que são autores e não meros auditores, dado que estes acabam quase sempre como meros súbditos, quando preferem a servidão do bem-estar e da segurança, à imprevisível revolta dos escravos, em nome da justiça.

 

Também Albert Camus salienta: a liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário. E, mesmo comparando-a coma justiça, clarifica: Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade perserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.

 

Goulart foi uma espécie de D’Annunzio em português e é uma homenagem atribuir-lhe o qualificativo de fascista, um dos poucos que conheci, inteiro e artístico, e que assim deve ser lembrado. Kleist foi o pretexto para um encontro com o nacionalismo romântico, onde tudo, até a palavra fundamental, havia sido inventada por Rousseau. Porque, como ensina Ortega y Gasset, outro dos meus mestres, ao homem lhe sobe o coração à cabeça, quando o sentimento passa a predominar sobre a razão e acaba por explodir em paixão: o sentimento não se contenta do seu predomínio sobre a razão, como fonte de inspiração literária ou artística: converteu se em paixão, que a cada passo perdia o sentido das medidas correntes da realidade física ou moral.

 

Assim também foi Coimbra, no ambiente de “fim de regime”. Lá aprendi a ser neo-romântico e panenteísta. Com Heinrich Von Kleist. Com Paul Claudel. E até com Fernando Pessoa. Todos encenados na Oficina. Com Goulart Nogueira e com António Manuel Couto Viana. Não são apenas memória que quero esquecer. Continuam a ser saudades de futuro…

 

Que, para o mês de Abril, irei conferenciar sobre o tema, em Condeixa, comemorando os cem anos desta república. O pretexto vai ser Francisco de Lemos Ramalho, conde de Condeixa e Marquês de Pereira, o trisavô da Ana, títulos que nunca usou por fortes convicções políticas. E aquele retrato de família, onde também aparecem o conselheiro Luís de Magalhães, o filho de José Estêvão, e Jaime de Magalhães Lima, assim se religando a restauração de 1808 à própria Traulitânia, com progressistas casando com miguelistas . Com outras histórias da raiz das guerrilhas patuleias. Das que chegaram à Revolta dita do Grelo, já nos primeiros anos do século XX. E à revolta de Cernache de 1936, onde meus avoengos se insurgiram contra a GNR, e foram condenados e presos durante anos, mas ainda hoje sem lugar nos catecismos da liberdade, apesar de constarem com nome próprio, perdido no anonimato do colectivo, nos próprios anais inventariados por Fernando Rosas…