Ontem me reaprendi, porque a sabedoria não a recebemos apenas, somos recebidos, em comunidade ou irmandade. Parece que muitos esqueceram que a coisas pública assenta em pedras vivas e não em números ou abstracções. Só há colectivos e instituições se houver pessoas que se assumam como o “indivisus” da liberdade de consciência.
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Declaro, de pública e espontânea vontade
Para os devidos efeitos, declaro, de pública e espontânea vontade, que, para ser aquilo que sou, nunca nenhuma entidade estranha à minha convicção me convidou. Sou, não estou. Quando alguém tem uma concepção do mundo e da vida, vive-a, isto é, vive como pensa, sem pensar, depois, como vai viver. Pobre país, o nosso, quando desfilam os exemplos dos que dizem ser independentes só porque confidenciam que receberam convites de fantasmas polarizados por preconceitos. Não gosto de ser pressionado a usar sinal distintivo obrigatório de minoria de gente da nação, seja estrela, compasso e esquadro, sinal da cruz, crescente, cinco chagas ou um simples adjectivo diabolizante ou honrado, onde se condensem as minhas convicções. Prefiro assumi-las por pensamento, palavras e obras. Não pelo método clássico da confissão, rainha das provas, mesmo que pintado de doce assédio social torturante. O processo inquisitorial já não está em vigor desde que as Cortes vintistas suprimiram a besta.
Os chineses do século XVI
Os chineses do século XVI diziam que os portugueses eram bárbaros, isto é, diabos vermelhos, porque comiam pedras (pão) e bebiam sangue (vinho), tal como outros povos diziam que os cristãos eram antropófagos porque, em seus cerimoniais, comiam o corpo de um deus feito homem. É o que fazem todos os que são marcados pela incompreensão face aos símbolos decepados da unidade espiritual de que os rituais são simples parcela. É por esta e por outras que detesto todo o sectarismo que pretende monopolizar o sagrado para a respectiva liturgia e que, fradescamente, semeia a intolerância, insinuando o ridículo face as alfaias que os outros usam para os mesmos fins. Afinal, todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação. Contudo, mais ridículos ainda são os que não têm liturgia sentida por dentro, ou os que se ficam pelos sucedâneos e pelas vulgatas de certo dogmatismo pretensamente antidogmático. Por mim, que, sobre as verdades eternas, apenas sei que nada sei, resta-me continuar a procura da verdade, pelos variados caminhos que segue aquele que apenas pretende ter a boa vontade daqueles que querem conquistar a glória do homem livre. Porque ninguém pode deter o monopólio do “imprimatur” e do “nihil obstat” para a edição desses manuais de metodologia, com os consequentes livros únicos dos inquisidores, vanguardistas, vigilantes da revolução, ou contínuos e sargentos do senhor director.
Comunistas e teoria da conspiração
Não costumo ler o “Avante”, mas fiquei hoje a saber que um articulista do periódico já cita o “Protocolo dos sábios do Sião”, à boa maneira da extrema-direita europeia e de certos populistas ditos sociais-democratas, invocando o perigo do governo mundial comandado pelo Sionismo, o Vaticano e a Maçonaria. Devem ser restos de certa subcultura KGB que ficou desempregada desde a guerra da Sérvia…
O exercício da teoria da conspiração, a que costumam recorrer a extrema-direita e a extrema-esquerda, bem como os fundamentalismos religiososo, bem como os populismos de ocasião, de esquerda e de direita, tem-se também insinuado entre certo jornalismo sensacionalista da nossa praça, nomeadamente a pretexto da elaboração de listas de suspeitos de antinação, emitidas por várias redes de fantasmas e preconceitos, marcadas pelo fanatismo, a ignorância e a intolerância.
Como não tem sido mero acaso a inclusão de certos nomes nestas listas, incluindo o meu, apenas posso comprovar o rasto e o que lhe deu origem. Por mim, até posso falar na emissão de um blogue que usurpava o meu nome, no preciso momento em que era declarado hierarquicamente “persona non grata”, por praticar as minhas crenças, princípios e valores. Apenas sou capaz de confirmar a velha aliança de irmãos-inimigos que, quando no poder, coincidiram nos mesmos objectos de perseguição, supressão e extinção.
Bem me lembro de um cena que tive com um desses anjinhos ainda não decaídos que instrumentalizava o sistema conspiratório e que, posto por mim perante prova inequívoca, me respondeu com toda a candura maléfica: “é política, pá, é política”. O crime, neste e noutros casos, compensou e continua a compensar, graças aos inocentes úteis e os candidatos a intelectuais orgânicos, no desemprego, que receberam carreira, contrato, avença ou “outsourcing”
Non nobis, non nobis, sed nomine tuo da Gloria
Non nobis, non nobis, sed nomine tuo da Gloria
“Non nobis Domine, non nobis, sed nomine Tuo da gloriam” (Sl. 113,9 – Vulgata Latina) que significa “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome dai a glória”.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge, Por casas, por prados, Por quinta e por fonte, Caminhais aliados. Fernando Pessoa, 1932
Recorda-se a extinção da Ordem do Templo, com a execução de Jacques de Mollay, o seu último Grão-Mestre, maldizendo a memória dos três abomináveis: o papa Clemente V, Filipe, o Belo, rei de França, e Squin de Florian, o denunciante.
Várias são as teses sobre as origens da Maçonaria especulativa, desencadeada a partir de 1717. A mais generalizada fala nas irmandades dos construtores das catedrais medievais, mas não faltam os que as fazem remontar ao Egipto e aos Templários, bem como os que vão aos reis anglo-saxónicos e aos primeiros cristãos. Até há quem fale de uma primeira loja no Éden, com Adão.
Ordem medieval a que muitos fazem remontar a Maçonaria. Mas como salienta Oliveira Marques: a ligação dos Templários com a Maçonaria, do ponto de vista histórico, é pura lenda. Surgiu apenas em meados do século XVIII. Diz-se que os Templários cobriram as cinzas de Jacques Burgundius de Molay com acácias.
O grão-mestre dos Templários supliciado, cuja morte é vista por muitos maçons como a segunda morte de Hiram. Com efeito, a lenda de Hiram foi apenas inventada em 1725 e leva a uma inevitável interpretação retroactiva da história, se, numa lenda, tivesse que haver história.
Os portugueses quase poderiam dizer o mesmo de D. Sebastião, ou dos posteriores magnicídios, de D. Carlos a Humberto Delgado.
Tal como os ingleses o disseram de Carlos I, que alguns primeiros maçons disseram que seria um Templário escondido sob um véu jesuítico.
Porque, como assinala Jules Boucher, por trás do símbolo encontra-se uma realidade superior à inteligência humana e o homem melhor dotado só pode aperceber-se disso indirectamente através do símbolo (p. 257).
Etimologicamente, de templum, o sector do céu que o augure romano delimitava com um bastão, para observar fenómenos naturais. Em grego, temenos, domínio separado, espaço reservado ao culto e separado do que é profano, através de muros.
Daí, ter passado a designar o sítio donde se fazia esta observação, significando aquela parcela do mundo que é um corredor, ou um caminho. Porque os templos são sempre o reflexo de um mundo dito divino, são réplicas terrestres dos arquétipos celestes, um resumo do macrocosmos e uma imagem do microcosmos (Jean Chevalier).
Tendem a ser o centro do mundo, porque estão na vertical do palácio celeste. Em Maçonaria tem a forma de um quadrilátero e, tal como anteriormente, obtém-se a partir de um círculo traçado em torno de um relógio de sol.
É uma imagem simbólica do homem e do mundo. O comprimento vai de Oriente, de onde vem a Luz, a Ocidente. A largura, do Meio Dia ao Setentrião. A altura, do Zénite ao Nadir.
Assenta num pavimento mosaico e nele se circula de Ocidente para Oriente, conforme o movimento dos ponteiros do relógio, o chamado sentido solar ou dextrocêntrico.
Se as igrejas católicas estão voltadas para poente e as sinagogas judaicas, para Jerusalém, também o Mihrab das mesquitas toma a direcção de Meca. Os templos da antiguidade não tinham janela, para que neles habitasse o silêncio, a par com a obscuridade.
Na prática, está demonstrado, com documentos fidedignos, que no século XVI as lojas operativas da Escócia e da Inglaterra começaram a admitir, ao lado dos operative masons, os não operativos, os gentlemen masons.
Outros referem que desde 1640 surgem já lojas sem qualquer operative mason, mas apenas na Inglaterra, que se assumem como meros clubes de convívio.
Há quem ligue esses clubes a simples cobertura dos jacobitas, ou stuartistas, bem como os que referem que tal tipo de associações nasce nos finais do século anterior, no reinado de Isabel I, quando os dissidentes religiosos do anglicanismo, como os católicos e os protestantes radicais inventam tal tipo de organização para continuarem a praticar, discretamente, os respectivos cultos.
Há mesmo quem vá um pouco mais longe, a certos movimentos renascentistas, que misturam a Cabala com o platonismo.
O modelo de 1717 já seria de transição, com a criação de uma associação de socorros mútuos (friendly society). Mas não faltam aqueles que referem o modelo de Anderson com uma tentativa de ligação à alta sociedade de um fundo claramente obreirista, de efectiva defesa dos pedreiros, através das irmandades, enquanto autênticos sindicatos.
Na prática iluminista e contemporânea, as teorias acabam por ser outras e as origens que se invocam têm mais a ver com as saudades de futuro que cada grupo de irmãos vai inventando e reinventando.
Do árabe al-kimiya (terra negra), a chamada pedra filosofal, onde chymeia em grego quer dizer mistura de sucos (DELP 1, 214).
A chamada ciência da tradição, filosofia hermética aplicada através da magia a seres não animais da natureza, sempre em procura da pedra filosofal.
A terra negra é a chamada matéria prima da obra, quando o enxofre e o mercúrio em equilíbrio produzem o sal.
Segundo Angelikus Silesius, o chumbo se transforma em ouro, o azar se dissipa quando, com Deus, sou mudado por Deus em Deus (JCD 26).
Os persas devem ter transmitido os segredos de tal pesquisa da chamada Arte Real aos árabes, dado que a mesma não parece ter sido praticada no Egipto nem na Grécia Antiga.
Desenvolve-se com o helenismo de Bolos Mendès, autor de Physika et Mystika.
Tinha em vista a Grande Obra, Magnum Opus, a arte de transmutação dos metais, para a obtenção do metal puro, de ouro: todo o processo da obra filosofal não é mais do que uma dissolução e a subsequente solidificação: isto é, a dissolução do corpo e a solidificação do espírito.
Para Pernety, a química é a arte de destruir os compostos que a natureza formou, e a química hermética (alquimia) a arte de trabalhar com a natureza, para a aperfeiçoar (DFM 920).
Há três fases na obra: a primeira tem a ver com a Primavera, identificada com o signo zodíaco do Carneiro, com o corpo morto em decomposição.
A segunda, como o Verão, identificado com o leão, a união do espírito e da alma.
A terceira, Dezembro, identificado com o Sagitário, quando emerge o corpo espiritual vermelho, o indestrutível, o elixir ou o ouro bebível da eterna juventude.
Não constitui apenas uma espécie de pré-química, dado assumir a dimensão de uma operação simbólica, só possível através de uma espécie de virtude espiritual, onde a Grande Obra se assume como a Via do Absoluto, ou a chamada Arte Real.
Esta arte da procura da eternidade passou a ser uma espécie de saber compilado no século V por Stobeu, situando-se nas fronteiras do gnosticismo, do neo-estoicismo e do neo-platonismo, contrariando aqueles dualismos que não admitiam a união do microcosmos e do macrocosmos.
Não é, como dizia Carl Gustav Jung (1875-1961), uma porção de velhotes que tentaram fabricar ouro (EE, 389). As operações alquímicas eram reais, só que essa realidade não era física mas psicológica. A alquimia representa a projecção de um drama cósmico e espiritual em termos de laboratório (EE 209).
Porque, na concepção alquimista, o cristianismo salvou o homem, mas não a natureza. O sonho alquimista era salvar o mundo na sua totalidade; a pedra filosofal foi concebida como “filius macrocosmi”, o que salva o mundo, ao passo que Cristo era “filius macrocosmi”, o salvador apenas do homem. A finalidade suprema do “opus” alquímico e a “apokatastasis”, a salvação cósmica (EE 209).
Entre os respectivos cultores: Paracelso (1493-1541), ou Theophrastus Bombastus von Hohenheim, Pierre-Jean Fabre (1588-1658), Michael Maier (1568-1622), David de Planis Campy (1589-1644), médico de Luís XIII, Athanasius Kircher (1602-1680), jesuíta. No século XIX, Marcelin Berthelot (1827-1907), em Les Origines d’Alchimie, 1885.
Conforme Paracelso, o que o homem pensa é o que ele é, e uma coisa é aquilo que ele pensa. Se pensar no fogo, será um fogo. Logo, conforme Albrecht Dürer, se alguém possuísse na realidade essas ideias interiores, de que fala Platão, poderia construir a partir delas toda a sua vida e criar obras-primas através de obras-primas, sem jamais chegar ao fim.
Tem muito a ver com aquilo que ficara conhecido como o cristianismo místico que procurou uma mistura de Mistérios Antigos, Cristianismo e ciência moderna, enfileirando no sonho personalidades como Francis Bacon ou Isaac Newton. Manuscritos deste último, revelados em 1936, mostram correspondência deles com Robert Boyle, onde se pede a manutenção do silêncio solene face ao conhecimento místico, porque este não pode ser comunicado sem enorme dano para o mundo.
Talvez porque valha mais descobrir o silêncio do que vir a saber que não há paraíso…
A parte não totalmente desvendada tem servido de fermento para inúmeras lendas e para alguns exercícios de esoterismos, com os seus guardiões secretos, como os Templários, os Rosacrucianos, os Iluminados ou certas misturas de Maçonaria com conspirações intelectuais.
Há várias influências vocabulares no REAA, onde em vários altos graus se invoca o INRI (igne nitrum roxis invenietur).
Purificação do sujeito |
Partir da praia e navegar, porque navegar é preciso |
Solve et coagula Dissolução do sujeito no ser universal | Projecto do chamado abraço armilar, visando a dissolução em todos os outros, o verdadeiro universalismo |
Purifica et integra Nova combinação sob o império do ser mais puro |
Equivalente à Ideia de Quinto Império |
São tradicionais as denúncias da Maçonaria que a colocam sob o signo do satanismo.
Outros consideram-na mera organização secreta mafiosa visando o negocismo, enquanto não faltam os que a reduzem a mera sociedade de auxílio mútuo, para não falarmos dos que ainda a continuam a ligar à conspiração judaica e bochevista, ou o imperialismo anglo-americano.
Por outras palavras, se alguns a vêem como um grupo de velhos inofensivos que gostam de brincar aos disfarces, outros referem-na como uma cabala secreta de agentes do poder que governam o mundo, para repetirmos palavras de Dan Brown.
Conforme Fernando Pessoa, o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com muita má-fé (1935). O segundo erro em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida.
O parecer da lei salazarista antimaçónica diz que a Maçonaria, e especialmente a Maçonaria em Portugal, deve ser reprimida, porque pretende substituir a civilização cristã pela civilização maçónica, aspira à dominação do Estado e possui organização exagerada e perigosamente internacionalista.
Porque tem como base ideal igualitário, sem superioridades sociais, nem distinção de classes, baseada no racionalismo ateísta dos materialistas, ou na religião humanitária da razão e da natureza herdada nas antigas tradições esotéricas, transmitidas pela cabala judaica.
Porque numa campanha anti-maçónica não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência – audácia porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir estão sob um sigilo que lhes inibem a correcção. E glosando Pope, assinala: os parvos entram onde os anjos temem entrar. O nosso Padre Manuel Fernandes Santana (s.J), em 1908, tudo explica pelo panteísmo e pela Cabala, o culto da natureza sob formas simbólicas de repugnante obscenidade, a torpe falolatria, gerando uma turba imunda de falofaros, numa espécie de prostituição sagrada, discriminando como causas, a heresia sociniana, os templários, propagadores do maniqueísmo e do gnosticismo, o canal pelo qual as práticas e ritos infames do politeísmo passavam do velho mundo pagão para o mundo cristão.
Citando Monsenhor Meurin, acrescenta que o processo tem como agente misterioso o judeu, o verdadeiro fundador e inspirador secreto da Maçonaria, através de Satanás, o anjo decaído que seduziu os povos antigos pelas suas doutrinas mentirosas; o paganismo seduziu o judeu hipócrita e obstinado; o judeu seduziu e corrompeu os templários e continua hoje a reduzir a massa crédula dos mações.
Basta recordar que este tipo de delírio bem poderia dizer do próprio cristianismo que este, no dia pagão do deus do sol Rá, os crentes se ajoelham aos pés de um instrumento de tortura antigo e consomem símbolos rituais de sangue e carne, como expressivamente diz Dan Brown (SP 48).
Refira-se que Fernando Pessoa, em 30 de Março de 1935, diz-se fiel à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta de Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria. Mas salienta que foi iniciado por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores a (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal (AQ III, 425).
Porque, pensar é existir com os deuses e com a substância visível e harmónica do mundo. Agir e existir com os homens e a natureza criada (id. 116).
Porque o livre-arbítrio, a graça, o amor – são expressões cujo sentido se pode chamar um sentido, não tem nada que ver com a nossa estrutura mental (id. 117).
Egrégora Do grego egregorien, vigiar.
Um ajuntamento de almas, termo usado pelos alquimistas para se irmanarem com os templários.
Entidade momentânea que subsiste enquanto há uma reunião maçónica, especialmente quando as vibrações são puras, pelo exercício do ritual e da adequada liturgia.
Serve para designar a força de coesão num grupo humano, nomeadamente numa loja maçónica.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge, Por casas, por prados, Por quinta e por fonte, Caminhais aliados. Fernando Pessoa, 1932
Manuel Fernandes Tomás
Chegou o tempo de perpectivarmos personalidades como Manuel Fernandes Tomás sem aqueles facciosismos historiográficos que deles fazem pretexto para interpretações retroactivas ou revisionismos que ora os deificam, ora os diabolizam. Porque todos foram intensamente amados ou odiados, segundo as concepções do mundo e da vida, ou as circunstâncias vindouras. A complexidade dos nossos egrégios avós não pode ser apenas medida pelas lentes analíticas das nossas ideologias, dos nossos medos ou das nossas esperanças.
Aqueles que dividem o mundo entre os bons e os maus, entre os patriotas e os traidores, entre os progressistas e os reaccionários, não conseguem ascender à necessária serenidade que nos pode permitir sentir a profundidade da tradição, entendida como aquelas algemas que nos podem libertar, permitindo a permanência na renovação das saudades de futuro que vão além de passados ou futuros presentes. A criatividade da história sempre exigiu vivê-la como emergência das três unidades do tempo e sempre implicou unirmos o que anda disperso.
Conheço as peças historiográficas que transformaram Gomes Freire no vazadouro dos impropérios contra o demoliberalismo e que sobre ele lançam o ferrete de traidor. São exactamente os mesmos que nem sequer reparam que Gomes Freire foi vítima de um assassinato político que, apesar de ser processualmente institucionalizado pelo ocupante, não deixa de poder qualificar-se como consequência do terrorismo de Estado.
A geração de Gomes Freire, ao liderar o processo conspiratório contra o pretenso protector inglês, semeou com a sua vida a conseguida regeneração de 1820. Uma revolta inequivocamente nacionalista e liberal que continuou as ideias e a acção do Conselho Conservador e preparou o Sinédrio. Julgo que no século XXI importa compreender as turbulência pós-revolucionária de há dois séculos. E fazer um paralelo entre homens como Gomes Freire e Fichte que, depois de cederem à pretensa “bela ordem” napoleónica, depressa aderiram à fogueira romântica das libertações nacionais e das primaveras dos povos.
Tal como os defensores das perspectivas liberais da unificação alemã e da unificação italiana, há que realçar todos os que promoveram a conciliação da ideia de nação com o sonho da casa comum europeia. E do cosmopolitismo com a o republicanismo, quando este nem sequer era antimonárquico, à maneira de Kant. Porque quem virá a ser a efectiva prisão dos povos será a Santa Aliança que estabeleceu o princípio da hierarquia das potências.
As ideias assumidas por essa geração têm mais a ver com as sementes de direito das gentes que vai ser expressa pelo krausismo, como, entre nós, foi praticado por um Vicente Ferrer Neto Paiva. Por todas aquelas libertações patrióticas do dividir para unificar que geraram os posteriores federalismos de maçons e de católicos, de liberais e de socialistas que, conciliados depois da Segunda Guerra Mundial, constituem os esteios da presente unificação do projecto europeu.
Tal como Gomes Freire, Fernandes Tomás, tal como D. Pedro IV, Passos Manuel, D. Maria II, Sá da Bandeira, Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, integram a honrosa lista dos pais-fundadores do Portugal Contemporâneo, azul e branco, que permitiu mais de um século de continuado liberdadeirismo. Denegri-los em nome do ódio e do revisionismo histórico é removermos da nossa memória uma das fundamentais pedras vivas da tradição.
Pior ainda: não cultivar com o afecto da emoção esta comunidade das coisas que se amam, chamada nação, é extirparmos reservas morais da pátria e da liberdade. Por mim, seguidor do Conselho Conservador e do Sinédrio, precisamos de revoluções que sejam restaurações da lusitana antiga liberdade. Precisamos de reaprender a palavra regeneração, conjugada pelos mártires da pátria, como Gomes Freire.
”Não é necessária muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenham ou sustentem. Num, a força das leis, no outro, o braço sempre levantado do príncipe, regulam ou contêm tudo. Mas num Estado popular é necessário um grau mais elevado que é a virtude entendida como uma renúncia a si mesmo, que é sempre uma coisa muito dolorosa” (Montesquieu).
Convém sublinhar que a religião dominante em Portugal não é, infelizmente, a católica. “Em Portugal, não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e disfarçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cívica, no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito” (Almeida Garrett)
“Quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se passa como quando um homem manipula a vontade (Simone Weil). “Porque a virtude sobrenatural da justiça consiste, se se é o superior na relação desigual de força, em conduzir-se exactamente como se houvesse igualdade” (Idem).
Grande parte das coisas políticas tem a ver com as realidades que não se conseguem vislumbrar sem símbolos. E todos os símbolos, como a pátria ou a humanidade, são, para um vesgo, coisas ridículas. São como as cartas de amor. Que são ridículas. Mas mais ridículo era não escrevermos cartas de amor. E suicida era mesmo não amarmos.
Desde 1717 que qualquer sociedade liberal ou democrática sabe, como alguns proclamados liberais e democratas parecem desconhecer, que uma sociedade secreta iniciática não pode ser uma sociedade secreta política. Até na Noruega, onde os 20 000 maçons são publicamente escrutináveis. Sempre que se confundem os planos, de um lado e de outro, há um risco de regresso à intolerância, ao fanatismo e à ignorância.
Falar de Manuel Fernandes Tomás, aqui e agora, é tratar de um símbolo.
Manuel Fernandes Tomás é nomeado em 1801 juiz de fora em Arganil, aqui se mantendo até 1805.
Manuel Fernandes Tomás é nomeado em 1805 superintendente das Alfândegas nas comarcas de Aveiro, Coimbra e Leiria, mas, desgostoso, retira-se para uma quinta que possuía em Alhadas, Figueira da Foz.
Manuel Fernandes Tomás participa, na Figueira da Foz, na expulsão da guarnição francesa do Forte de Santa Catarina (22 de Junho de 1808). É, depois, nomeado provedor da comarca de Coimbra (até 1810).
José Liberato é preso na cadeia da Universidade de Coimbra (1810). Passa, em seguida, para um cárcere privado no Convento de Santa Cruz, onde é visitado por Manuel Fernandes Tomás.
Manuel Fernandes Tomás passa a desembargador da Relação do Porto (1811). José Ferreira Borges, advogado da Relação do Porto.
Manuel Fernandes Tomás volta a Coimbra em 1812, onde vai estudar, investigar e escrever, só assumindo funções no Porto em 1814. A sua casa transforma-se numa espécie de cenáculo.
Reactivados os trabalhos maçónicos no interior de Portugal (1813), destacando-se a acção de Manuel Fernandes Tomás na zona de Coimbra e de Mouzinho da Silveira em Setúbal.
Manuel Fernandes Tomás também se instala no Porto, como desembargador da Relação (1814)
Manuel Fernandes Tomás publica pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1815, o Repertório Geral ou Índice Alphabetico das Leis Extravagantes.
Constituído o Sinédrio (22 de Janeiro de 1818). Liderado por Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho (1782-1856), com José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana. Vão entrar, depois, Duarte Lessa, José Maria Lopes Carneiro, José Júlio dos Santos Silva e José Pereira de Menezes (JP I 297 segs.).
A república dos portugueses, que tinha sido ocupada e protegida por potências estrangeiras, assume-se politicamente como Reino Unido de Portugal e do Brasil, instituído em 1816, e com a capital no Rio de Janeiro, enquanto as elites estão repartidas pela emigração, entre Londres e Paris, donde vão emitindo gazetas que continuam uma dialéctica facciosa, entre os que advogam o modelo constitucional anglo-saxónico e os que preferem os galicismos políticos, desde a moderação pós-napoleónica ao saudosismo revolucionário.
O velho reino, com sede em Lisboa, com cerca de três milhões de habitantes, tem cerca de 200 000 pessoas na capital e 60 000 no Porto, sente-se órfão e começa a visualizar-se como simples colónia do Brasil, tendo até de pagar com impostos e soldados as expedições que, do Rio de Janeiro, se fazem contra a Guiana e Montevideu. E as gazetas dos emigrados, especialmente as provenientes de Paris, atacando as decisões do Congresso de Viena, denunciando William Carr Beresford (1768-1854) e criticando a dependência face ao Rio de Janeiro, geram um ambiente de exaltação patriótica, onde se confundem os pretéritos absolutistas e os futuros liberais num nacionalismo regenerador, onde os antigos colaboracionistas com os franceses zurzem agora nos que apoiam a protecção britânica. É neste ambiente que surge o motim de Gomes Pereira Freire de Andrade (1752-1817) em 1817, ponto de partida para a revolução desencadeada a partir de 24 de Agosto de 1820.
Regeneração – Revolta liberal no Campo de Santo Ovídio, no Porto, promovida pelo Sinédrio, liderado por Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho, criando-se imediatamente uma Junta Provisional de Governo Supremo do Reino (24 de Agosto). Entre o Porto e Lisboa já se usa o chamado telégrafo de tábuas, pelo que as novas chegam à capital quase de imediato.
●De escravos a cidadãos – Escravos ontem, hoje livre; ontem autómatos da tirania, hoje homens, ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos, qual seria o vil (não digo bem), qual seria o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome Liberdade? Tal foi Portugal, tal o torna a ser… das ruínas, das cinzas de um governo representativo se elevou o formidável colosso da tirania ministerial. Os Portugueses, declarados livres nas Cortes de Lamego e de Lisboa, foram escravos de homens vis, ambiciosos, iníquos, insaciáveis (Almeida Garrett, em O Dia Vinte e Quatro de Agosto).
●Partido da tropa – Configura-se, entre as chefias dos revoltosos, uma facção de líderes militares que tanto hão-de ser furiosos radicais de esquerda, como também extremistas apostólicos, quando apenas eram movidos por motivos corporativos, querendo a demissão dos oficiais ingleses e ficando satisfeitos com o regresso do rei e a convocação de Cortes.
●Revolta em Lisboa – Desencadeada por Aurélio José Morais, com o apoio de Bernardo Sá Nogueira, futuro Sá da Bandeira (15 de Setembro). Comemorava-se mais um aniversário da vitória sobre os franceses em 1808. Em 27 de Setembro, fusão das juntas do Porto e de Lisboa em Alcobaça.
●Revolução ou Restauração? Ao contrário dos constantes discursos de justificação de certa historiografia, que continua a amarrar os portugueses a sucessivas revoluções frustradas, a chamada revolução de 1820, nas suas boas intenções, tenta assumir-se como uma espécie de regeneração, visando restaurar a liberdade perdida, tanto pelo despotismo ministerial do que virá a designar-se por absolutismo, como pelas invasões e protecções estrangeiras que se sucederam à nossa forçada intervenção nas guerras napoleónicas.
●Os nossos direitos e os dos nossos pais – Segundo as próprias palavras do Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, emitido em 15 de Dezembro de 1820, redigido por Frei Francisco de São Luís, nome beneditino dado Francisco Justiniano Saraivaö (1766-1845), o futuro Cardeal de Lisboa: não é uma inovação, é a restituição das suas antigas e saudáveis instituições, corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado; é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza lhes concedeu, como concede a todos os povos; que os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram, e de que somente há um século foram privados, ou pelo errado sistema de governo, ou pelas falsas doutrinas com que os vis aduladores dos príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções de direito público. As cortes e a constituição não são coisa nova nestes reinos: são os nossos direitos e os dos nossos pais.
●Militares contra magistrados – Segundo narra Xavier de Araújo, em Revelações e Memórias para a história da revolução de 1820, ter-se-á gerado, em Alcobaça, um conflito entre Sebastião Drago Cabreira e José da Silva Carvalho (1782-1856), com o primeiro a querer partir imediatamente para Lisboa, convocando o povo e o juiz da Casa dos Vinte e Quatro, sem se importar com a sorte da Junta do Porto.
Os dois pedem que Frei Francisco de São Luís arbitre a disputa e este convoca então o coronel Bernardo Sepúlveda, o qual é adepto de se acabarem as discórdias, marchando todos juntos até Lisboa, onde se convocariam Cortes, a quem se entregaria o governo do reino.
Os adeptos da mudança, que ainda não se qualificam como liberais, mas antes como regeneradores, vão viver sucessivos conflitos no próprio núcleo director do movimento, com o partido militar, encabeçado por António da Silveira e Sebastião Cabreira, a opor-se ao partido dos magistrados, liderado por Manuel Fernandes Tomás (1770-1822), com o apoio de Francisco de S. Luís, os chamados becas e os rábulas. Aliás, os primeiros têm apenas como objectivo a expulsão de Beresford e dos oficiais ingleses, com o regresso do rei e a convocação das Cortes à maneira tradicional.
1821
Quando há 3 501 850 almas no continente e nas ilhas, nota-se um profundo divórcio entre o país das realidades e o grupo dominante no país intelectual que cria o nominalismo proveniente do poder supremo. A profunda tradição libertacionista, da arraia miúda de 1383-1385, do sebastianismo dos manuelinhos de Évora e da tradição reinventada das Cortes de Lamego, que sustentou o Primeiro de Dezembro, acaba por ser usurpada pelas facções da direita e da esquerda que se instalam no centro político. À esquerda, as facções jacobinas chegaram a pedir a Junot um rei da família de Napoleão. À direita, o congreganismo dito apostólico, sucumbe ao encanto madrileno da Santa Aliança. O nacionalismo populista fica sem causa e sem liderança e somos arrastados para o desespero de guerras civis armadas e para posteriores pazes, onde os vencedores fazem orgias de confiscos e vindictas, enquanto continuam as guerras civis ideológicas. Por cá, segundo as palavras de José Agostinho, era pungente e geral a miséria. Fervilhavam as quadrilhas e os bandidos. A anarquia era flagrante e infame. A população enxovalhava brasileiros e galegos..
Primeira reunião das Cortes Constituintes em 24 de Janeiro de 1821.
Em 9 de Fevereiro, é apresentado projecto de bases da constituição. O presidente da Comissão que o elaborou diz que os membros da comissão, bem longe de se embrenharem no labirinto das teorias dos publicistas modernos, foram buscar as principais bases para a nova Constituição ao nosso antigo Direito Público, posto acintemente em desuso pelos Ministros despóticos que lisonjeavam os Reis à custa do povo, logo aprovado por decreto das cortes de 9 de Março. Em 15 de Fevereiro, amnistia para os crimes políticos desde 1807
Manuel Fernandes Tomás nas Cortes, na sessão de 26 de Fevereiro: Nós não estamos nas mesmas circunstâncias [da Inglaterra], precisa-se de fundar de novo este edifício, é preciso deitá-lo abaixo, e fazê-lo desde os fundamentos; e por isso proceder de um modo diferente do que a Inglaterra procedeu.
Em 5 de Abril extinguem-se os serviços pessoais e os direitos banais, por proposta do deputado Soares Franco.
Em 7 de Abril, extinguem-se o Santo Ofício, Inquisições e Juízes do Fisco, sob proposta de Simões Margiochi.
Em 25 de Abril, os bens da coroa passam a considerar-se bens nacionais, porque pertencem à Nação.
●A procura das novas cores nacionais – Discussão nas Cortes sobre o laço nacional. Até então vigora azul e encarnado que o rei qualificara como as cores da sua libré. O deputado Manuel Gonçalves Miranda propõe as cores azul e amarela, de origem maçónica. Aragão Morato consegue vencer a proposta, invocando o azul e branco, as cores do primeiro escudo português, desde o Conde D. Henrique: fiquei com a honra de ter substituído a um laço moderno por outro que, desde o princípio da monarquia, fora reputado realista e nacional (21 de Agosto).
Tem a ver, em termos simbólicos, com a luta de São Jorge contra o Dragão (o catalão Sant Jordi), no combate entre o Céu e a Terra, onde o inimigo é representado pelo vermelho e verde. O azul e o branco são o desprendimento relativamente aos valores do mundo. Tanto são as cores da Virgem Maria, como foram as da Maçonaria e, sincreticamente, do nosso liberalismo monárquico. As cores foram aprovadas como cores nacionais em 22 de Agosto de 1821, segundo proposta formalmente apresentada pelo não-maçon Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, com o apoio dos deputados maçons, já que eram usadas como símbolo dos apoiantes do vintismo, onde é um acaso elas serem típicas do Rito Francês, o único até então usado em Portugal. Curiosamente, tinha havido outras cores propostas, o verde-salsa e o amarelo-ouro, mas, desta, por um maçon, o futuro grão-mestre Manuel Gonçalves de Miranda, em 14 de Agosto. Aliás, as cores do azul e branco chegam a ser definidas como as cores invertidas de um avental de Mestre maçon. E também não é simples acidente do capricho o terem sido proscritas, com proibição do respectivo uso no vestuário, em 1828, quando também se mandaram destruir as roupas azuis, ou cosidas a azul. Talvez por tantas recordações é que elas passaram a ser nacionais com a regência de Angra. E, acaso por acaso, o azul e amarelo hão ser as cores do próprio Brasil. Porque a alma liberta-se e volta-se para o além, em direcção ao ouro que virá ao encontro do branco, símbolo do virginal, durante a ascensão no azul celeste.
É jurada pelos deputados em Lisboa, em 23 de Setembro de 1822, a primeira constituição escrita portuguesa. Em 1 de Outubro, D. João VI jura a Constituição. Em 4 de Novembro encerram as Constituintes.
Morte de Manuel Fernandes Tomás, na Rua do Caldeira, nº 2 em Lisboa (19 de Novembro). Estava na penúria e teve de levar-se a cabo uma subscrição pública.
Regeneração
Etimologicamente, novo nascimento. De regeneratio, isto é, re mais generatio, acção de gerar novamente, isto é a reparação ou restauração de algo que estava destruído. Morrer para a vida velha e nascer para uma vida nova. No Novo Testamento, Cristo diz a Nicodos que é preciso nascer de novo.
Do latim initium, enquanto começo ou fundamento, um nascer de novo de carácter psíquico, ou espiritual: renatus in novam infantiam.
Em sentido amplo, é um processo de transformação do indivíduo através de um esforço de reflexão, nomeadamente através da interpretação dos símbolos e num ambiente de comunhão de crenças, visando um aperfeiçoamento do conhecimento e da consciência, e exigindo uma evolução intelectual, moral e espiritual. Implica um esforço tanto individual como comunitário, pois dá unidade e sentido a uma procura individualmente enraizada, mas não ultrapassa os limites da revelação e dos sacramentos de uma religião (initium novae viae).
Trata-se de um psicodrama que, conforme Louis Pauwels, dá ao adepto a sensação que se despoja da sua consciência ordinária; de que morre como pessoa ligada a paixões, apetites, opiniões, interesses, etc., que afectavam tanto a sua imagem privada como a sua imagem social.
Segundo Mircea Eliade (1907-1986), qualquer forma de cosmos (universo, templo, casa, corpo humano) tem sempre uma abertura superior que torna possível a passagem de um modo de ser para outro, o que implica penetrar no ventre do monstro, equivalendo a uma regressão no instinto primordial, na Noite cósmica.
De qualquer maneira, o ritual tem sempre três tempos: o rito da separação (o caso da separação da aldeia), o rito da transformação (operação simbólica de passagem de um estado inferior para outro considerado socialmente superior); e rito de reagregação (depois das purificações, o separado regressa triunfalmente à aldeia).
Pauwells considera que o esoterismo se baseia em três princípios: o homem do mundo secular não é um homem realizado; existem uma sabedoria e uma verdade anteriores às formulações dogmáticas religiosas, depositadas desde sempre no homem; ao longo da aventura humana manifesta-se uma vontade superior e a história obedece a leis cíclicas (LQYC 216-217).
Aliás, a os ritos têm também um valor educativo, pelo que o iniciado ouve, dos mais velhos, as histórias do grupo, nomeadamente da fundação, o significado dos símbolos e outros segredos, apesar de ser sujeito a várias provações: elas facilitam a destruição da antiga personalidade, ao mesmo tempo que fortificam o novo ser; aumentam as forças vitais do iniciado, desenvolvem a sua coragem e a sua resistência à dor; dão-lhe, enfim, o sentido da disciplina social e da obediência aos anciãos.
O iniciado é o que vive a iniciação, e não apenas o que por ela exteriormente passou. O que tem a consciência de, por ela, ter sido despertado e que assim, nasceu de novo. Porque iniciar é o mesmo que fazer morrer, transpondo a cortina de fogo que separa o profano do sagrado. Como salienta Plutarco, então, o homem, desde então perfeito e iniciado, liberto e caminhando sem algemas, celebra os Mistérios.
Também a alquimia se assumia como a arte da transmutação dos metais, onde a obra era sempre uma metamorfose. Antes, o neófito, aquele que vai, com a iniciação, nascer de novo, numa espécie de regresso ao ventre materno, ao sítio da noite cósmica, pelo que tem de preparar-se para a conversão, podendo ser colocado numa caverna, no seio da terra. Também no cristianismo é a passagem do homem velho ao homem novo e os monges do deserto, sofriam as tentações e provações, onde as forças do mal eram os demónios torturando o homem, como em Santo Antão.
E é pela Graça que o próprio homem é escolhido, em vez de escolher, visando entrar na eternidade. Para Fernando Pessoa, o verdadeiro significado da iniciação é o ser este mundo visível em que vivemos um símbolo e uma sombra. Porque alguns homens, depois de terem sido iniciados, continuam profanos (Boucher, 1948, XIV).
Há um brocado, mas sem lei, que diz: uma vez maçon, sempre maçon, que não tem o significado imediato que dele pode extrair-se: a vida iniciática é uma vida e não uma doutrina – isto é, um estado de alma de emoções e intuições, que não de ideias ou de temas (Fernando Pessoa, TRL, 328).
A iniciação, segundo este poeta, pode ser exotérica, simbólica ou externa, esotérica, intelectual ou exterior à interna, e divina, vital ou interna.
A primeira é a de tipo mais baixo: é a iniciação dada a quem propriamente se não encaminhou para ela, nem para ela se preparou.
A segunda, tem que ser buscada pelo discípulo, e por ele desejada e preparada em si mesmo. Já a terceira vem directamente, e por cima de todos, das mesmas mãos, do que chamamos Deus (TRL, 168 e 177).
Porque, segundo palavras de Louis Pauwels, a qualidade de uma sociedade de iniciados pode medir-se por isto: que cada um dos símbolos empregados cumpra as suas promessas, isto é, que revele significados sucessivos, complementares e ascendentes, que funcione como o plano de uma verdade sobre a qual o espírito possa trabalhar analogicamente até à eternidade (id. 213).
Ou, como assinala Rudolf Steiner, a iniciação ocidental não se faz como a oriental, em estado de sono, mas antes em estado de vigília, onde há um escutar simplesmente, sem fé servil, mas também sem oposição sistemática, deixando agir as ideias sobre si e observando os seus efeitos (apud João Antunes, Oedipus, 23-24).
São tradicionais as denúncias da Maçonaria que a colocam sob o signo do satanismo. Outros consideram-na mera organização secreta mafiosa visando o negocismo, enquanto não faltam os que a reduzem a mera sociedade de auxílio mútuo, para não falarmos dos que ainda a continuam a ligar à conspiração judaica e bochevista, ou o imperialismo anglo-americano.
Por outras palavras, se alguns a vêem como um grupo de velhos inofensivos que gostam de brincar aos disfarces, outros referem-na como uma cabala secreta de agentes do poder que governam o mundo, para repetirmos palavras de Dan Brown.
Conforme Fernando Pessoa, o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com muita má-fé (1935).
O segundo erro em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida.
O parecer da lei salazarista antimaçónica diz que a Maçonaria, e especialmente a Maçonaria em Portugal, deve ser reprimida, porque pretende substituir a civilização cristã pela civilização maçónica, aspira à dominação do Estado e possui organização exagerada e perigosamente internacionalista. Porque tem como base ideal igualitário, sem superioridades sociais, nem distinção de classes, baseada no racionalismo ateísta dos materialistas, ou na religião humanitária da razão e da natureza herdada nas antigas tradições esotéricas, transmitidas pela cabala judaica.
Porque numa campanha anti-maçónica não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência – audácia porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir estão sob um sigilo que lhes inibem a correcção.
E glosando Pope, assinala: os parvos entram onde os anjos temem entrar.
O nosso Padre Manuel Fernandes Santana (s.J), em 1908, tudo explica pelo panteísmo e pela Cabala, o culto da natureza sob formas simbólicas de repugnante obscenidade, a torpe falolatria, gerando uma turba imunda de falofaros, numa espécie de prostituição sagrada, discriminando como causas, a heresia sociniana, os templários, propagadores do maniqueísmo e do gnosticismo, o canal pelo qual as práticas e ritos infames do politeísmo passavam do velho mundo pagão para o mundo cristão. Citando Monsenhor Meurin, acrescenta que o processo tem como agente misterioso o judeu, o verdadeiro fundador e inspirador secreto da Maçonaria, através de Satanás, o anjo decaído que seduziu os povos antigos pelas suas doutrinas mentirosas; o paganismo seduziu o judeu hipócrita e obstinado; o judeu seduziu e corrompeu os templários e continua hoje a reduzir a massa crédula dos mações.
Basta recordar que este tipo de delírio bem poderia dizer do próprio cristianismo que este, no dia pagão do deus do sol Rá, os crentes se ajoelham aos pés de um instrumento de tortura antigo e consomem símbolos rituais de sangue e carne, como expressivamente diz Dan Brown (SP 48).
Refira-se que Fernando Pessoa, em 30 de Março de 1935, diz-se fiel à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta de Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria. Mas salienta que foi iniciado por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores a (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal (AQ III, 425). Porque, pensar é existir com os deuses e com a substância visível e harmónica do mundo. Agir e existir com os homens e a natureza criada (id. 116). Porque o livre-arbítrio, a graça, o amor – são expressões cujo sentido se pode chamar um sentido, não tem nada que ver com a nossa estrutura mental (id. 117).
O companheiro de Manuel Fernandes Tomás, José Maria Xavier Araújo (1786-1860), antigo membro do Sinédrio, publica Revelações e Memórias para a história da revolução de 24 de Agosto de 1820, e de 15 de Septembro do mesmo anno, Lisboa, Rollandiana, 1846
Cadáver de Manuel Fernandes Tomás, morto em 1822, é instalado no Cemitério dos Prazeres em Lisboa, num jazigo de família, em 1868.
Manifestação de homenagem a Manuel Fernandes Tomás, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa (24 de Agosto de 1884). Republicanos conseguem mobilizar cerca de 50 000 pessoas. Há cenas macabras de manifestações anticlericais, com quebras de cruzes e sacrilégios vários (LO, p. 52).
José Elias Garcia, Grão-Mestre interino do Grande Oriente Lusitano Unido (1884-1886). Assume-se como defensor do partido liberal de Manuel Fernandes Tomás, Passos Manuel e Sá da Bandeira (4 de Maio de 1885).
Inaugurada a primeira pedra da estátua de Manuel Fernandes Tomás na Figueira da Foz em 22 de Setembro de 1907, apoiada pelo rei e governo e com discursos de António José de Almeida e João Pinto dos Santos.
Do grego symbolon, isto é, parte de um objecto partido que se apresentava como sinal de identificação, justapondo-se todos os pedaços.
Normalmente, usava-se uma tábua de argila e depois de inscrita uma informação secreta, partia-se em vários pedaços que se repartiam por vários locais secretos. Por extensão, diz-se da representação de uma ideia em virtude de uma correspondência ou uma analogia.
Para Carl Gustav Jung (1875-1961), o que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós.
Porque uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto inconsciente mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. Logo, os símbolos não se podem confundir com os signos, constituindo uma concepção que ultrapassa toda a interpretação concebível.
O símbolo, segundo Bayard, permet d’éveiller une idée (29). Não é como o signo, a expressão que se usa para designar qualquer coisa conhecida (TP 470). Apenas é vivo o símbolo que, para o espectador, é expressão suprema do que é pressentido, mas ainda não reconhecido. Incita, portanto, o inconsciente à participação…traduz um fragmento essencial do inconsciente… (TP 471).
Tem uma natureza infinitamente complexa, compondo-se de dados recebidos de todas as funções psíquicas e, portanto, não é racional nem irracional. Tem, portanto, um sentido divinatório, face à sua significação escondida, fazendo vibrar tanto o pensamento como o sentimento, numa singular plasticidade. O símbolo vivo não pode aparecer num espírito obtuso e pouco desenvolvido, pois este apenas se contenta com um símbolo já existente, tal como lhe é oferecido pelo tradicional. Só a paixão de um espírito altamente desenvolvido, para quem o símbolo oferecido já não é a expressão única da união suprema, pode criar um símbolo novo (TP 473).
Os símbolos também podem ser instrumentos para uma reflexão iniciática e, mesmo aqui, apenas reenviam para um novo universo complexo, o das significações intelectuais, morais e espirituais que ultrapassam a disciplina das engenharias dos conceitos ou os manuais da mera racionalidade intelectual.
Nem seque se limitam aos livros de instruções de certos catecismos esotéricos que tentam disciplinar de forma eclesiástica e escolástica o esoterismo que teme a metáfora e a alegoria, bem como o paradoxo e a contradição do unir pela emergência, anteriores choques da divergência e da convergência, naquilo que, em linguagem directa se pode qualificar como liberdade. Jean-Pierre Bayard considera que o simbolismo é a linguagem da ascese.
Para além do tempo e do espaço, liga a dimensão individual quotidiana, psicológica à escala cósmica, supra-individual. Pode variar na sua expressão, nas suas representações exteriores, mas os seus fundamentos permanecem imutáveis. Porque os símbolos não são simples imagens passivas, transformadores de energia psíquica, modificam a natureza secreta do homem.
Tem a ver com uma comunidade que se dividiu ou desfez, para a qual o símbolo serve para reunificar ou refazer, unindo o que ficou disperso. Por isso, tem sempre um carácter bipolar, mas trazendo dentro de si a aspiração por um sentido comum, apontando um caminho Emblema ou objecto físico que representa uma entidade mais vasta e quase sempre mais abstracta. Expressão de algo relativamente desconhecido que não se pode atingir de outra maneira (Jung).
Só que o símbolo não é evocação fixa, marcada por um ne varietur, qualquer coisa fixa que se tem de descobrir ou de desenterrar, numa espécie de um Deus escondido que guarda a verdade.
Um signo não natural, consciente ou convencional (Ferrater Mora). Para Fernando Pessoa, designa a figura, marca ou objecto que tinha significado convencional. Podendo ser também um sinal, indício, emblema ou divisa, que pela sua forma ou natureza evoca uma associação de ideias com algo abstracto ou ausente. Para Carl Gustav Jung (1875-1961), tem a ver com a abertura ao mistério: é pelo facto de inúmeras coisas se situarem para além dos limites do entendimento humano que nós utilizamos constantemente os termos simbólicos, para representar conceitos que não podemos definir nem compreender plenamente.
Para Mircea Eliade, os símbolos são o bem comum da Humanidade. Mesmo a fé cristã que assenta numa revelação histórica, isto é, na encarnação de Deus no tempo histórico, considerou, com os Padres da Igreja que a revelação trazida pela fé não destruiria as significações pré-cristãs dos símbolos: apenas lhe acrescenta um novo valor. Aliás, fala-se na Ressurreição comparando-a com a Noite que se deita e o Dia que se levanta. Até se associa o antiquíssimo simbolismo aquático ao Baptismo.
Porque, conforme Bayard, o símbolo permite elevar a procura humana ao sobrenatural… Tem por objectivo ultrapassar a aparência da criação material para atingir o absoluto… O símbolo, que quer dizer, antes de tudo, resumo, quinta essência, caracteriza a profunda e eterna aspiração do homem por aquilo que é por ele desconhecido.
Contudo, retomando Fernando Pessoa, importa observar que o caminho dos símbolos é perigoso, porque é fácil e sedutor, e é particularmente fácil e sedutor para os de imaginação viva. Eles são cheios de ilusões, de devaneios e fraudes, citando os casos de Cagliostro (1743-1795), um charlatão, e Madame Blavatzky, um espírito confuso e fraudoso. Até considera que o Rito Escocês Antigo e Aceite, que não é escocês nem antigo nem aceite – é baseado numa complexa sobreposição de fraudes. De qualquer maneira, vivemos sempre em paradoxo, porque todo o conhecimento humano não é apenas feito por conceitos e sistemas, mas também pelo simbólico e pela imaginação, pensando coisas do imaginário e com coisas que só podem ser pensadas através das representações. E os símbolos são um dos elementos fundamentais da política, porque são eles que sintetizam os objectivos da comunidade, que legitimam os poderes e que mobilizam a própria actividade política.
Como salienta Oliveira Marques, a interpretação dos símbolos deve ser eminentemente individual, cabendo a cada maçon a tarefa de os compreender e sentir no seu significado mais profundo.
Porque, como salienta Pauwels, o símbolo nunca se encontra em estado de fixidez, o respectivo significado amplia-se e aprofunda-se constantemente, porque se convida um iniciado a decifrar continuamente os símbolos, através de uma gama infinita de códigos progressivos. A experiência, a meditação e o tempo revelam os símbolos como coisas vivas cuja vida ascende até ao infinito. E o símbolo não existe senão em virtude desta dinâmica modificadora
Porque se as ciências da natureza determinam, as ciências da cultura caracterizam. Até pela circunstância do fenómeno da cultura estar carregado de significações que ultrapassam a coisa, pelo que o conhecimento só pode fazer-se por aproximações. O homem não vive apenas num universo físico, mas também num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes integrantes desse universo.
Com efeito, o homem tem o poder de construir um mundo próprio. E isto porque, para além da linguagem conceitual, existe uma linguagem do sentimento e das emoções, além da linguagem lógica e científica, existe a linguagem da imaginação poética.
O símbolo, o que faz pensar, segundo Paul Ricoeur, tem sempre três dimensões: a cósmica, a onírica e a poética. Logo, vive entre dois extremos: a hermeneutique de la confiance (a da fenomenologia da religião, que visa a reapropriação do sentido esquecido) e a hermeneutique du soupçon (como na psicanálise freudiana)
Mais não faço do que repetir os dois dois últimos artigos de Fernando Pessoa, em 1935, pouco antes de morrer. Um foi publicado pelo “Diário de Lisboa”. O outro já foi objecto de caça pela Censura. Os que o citam inadvertidamente que os leiam. Mens ag(itat Moll)em. Para os adeptos de certas metalinguagens. Como é difícil ser liberal em Portugal!
Uma última citação de Pessoa, em 1935, para certos pretensos liberais mal reciclados, sobre certas campanhas onde “não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência – audácia porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir estão sob um sigilo que lhes inibem a correcção”.
Da clandestinidade à luz
1
Sim! O nome deriva de Aké, devido à ponta, como no instrumento pontiagudo de metal. Diz-se em hebraico shittah tendo como plural shittim traduzindo-se em grego por aseptos, isto é, o que não entra em putrefacção, enquanto modelo do incorruptível e da imortalidade da alma. Da madeira dela fez-se a própria Arca de Noé, sendo também usada para a construção do Tabernáculo, conforme a Bíblia (Ex. 30, 24; 26; 28).
2
Emblema solar, consagrado por Egípcios e Árabes, como a divindade diurna, por causa das flores amarelas e douradas, que representam o que é magnificente e poderoso, isto é, o sol e a luz. Símbolo da inocência e da ingenuidade, mas também da segurança e da certeza, da imortalidade e da incorruptibilidade, talvez porque, neste mundo de homens lúcidas, importa a lucidez de sermos ingénuos. Conhecida como pinheiro do Egipto, a dita acácia mimosa.
3
Para René Guenon, até a coroa de espinhos de Cristo tem a ver com os da acácia, equivalendo aos raios luminosos, provenientes do sol. Segundo a lenda, os Templários cobriram as cinzas de Jacques de Molay com acácias. E Maomé destruiu o ídolo Al-Vzza ou Al-Uzza que tinha a acácia como símbolo.
4
Não! Não vou seguir este caminho. Prefiro passar do ramo à árvore e saudar esta memória viva de uma loja que procura regenerar um espaço que vai da preparação do cinco de Outubro à resistência à ditadura, entre Machado Santos e Adelino da Palma Carlos. Por outras palavras, uma loja de vencidos da vida e de projectos por cumprir, onde os momentos mais sublimes talvez tivessem sido assumidos pelos que tiveram a heroicidade de viverem como pensavam, sem pensarem como depois iriam viver. Mas desses não reza a história, pelo que temos de os assumir em regeneração, para os poder cumprir aqui e agora, com saudades de futuro.
5
Honra-me terem convidado alguém que os carimbos da sociabilidade parecem não corresponder ao percurso biográfico de um saudoso da revolução perdida. Apenas o podem estranhar os que, por vezes, não reparam nalguns paradigmas de homens livres, de antes quebrar que torcer e que souberam manter viva a nossa fibra multissecular, ajudando a transportar a lusitana antiga liberdade nas longas décadas de uma viradeira reaccionária e inquisitorial e que tentou unidimensionalizar-nos segundo uma concepção do mundo e da vida totalmente incompatível com o espírito criador dos fundadores do Conselho Conservador em 1808, e com o Sinédrio de 1817.
6
Prefiro passar da árvore à floresta e recordar que a Maçonaria é uma floresta que não pode confundir-se com algumas das respectivas árvores. Apesar de origens claramente iluministas, não pode ser reduzida a certos philosophes do século XVIII e, muito menos, a uma das revoluções subsequentes, ou, pior do que isso, a um dos períodos ou a uma das facções desse modelo, o do Terror, onde as principais vítimas foram muitos maçons.
7
Basta também recordar que o fundador do conservadorismo, o irmão Edmund Burke, construiu um sistema directamente contrário à ideia pós-revolucionária de revolução, procurando defender o espírito da revolução inglesa, ela própria uma revolução evitada. Aliás, basta assinalar que apenas 10% dos actuais maçons do mundo, se filiam nos modelos sincréticos das Maçonarias dominantes em França, em Itália, na Bélgica ou em Portugal e mesmo estas não apenas admitem um espaço de convívio entre espiritualistas, ateus e agnósticos, sem exigirem uma prévia ligação de todos a uma religião revelada.
8
Com efeito, mesmo em termos de Maçonarias latinas, em grande parte coincidentes com Grandes Orientes dos países referidos, a Maçonaria não coincide com os modelos anticlericalistas reactivos dos países católicos, como o demonstra a própria história da Maçonaria lusitana, mesmo quando houve coincidência de programas e práticas da I República com a República Radical francesa.
9
Segundo Piet Van Brabant: o segredo iniciático é, por sua própria natureza, secreto. Está ligado ao indizível, que é, por sua própria natureza, também ele incomunicável. O segredo maçónico constitui o XXII Landmark. Como salienta Fernando Pessoa, é depois de estar na Ordem, de atingir a sua essência e espírito que este segredo se atinge. E enigmaticamente expressa: sou capaz de responder ainda que não responda… se, por acaso, souber, digo também que não sei
10
Porque a leitura, por profanos, de rituais maçónicos, impressos ou manuscritos, os deixa no fim da leitura no mesmo estado de trevas em que estavam no princípio. Falta-lhes a luz com que dissipem essas sombras propositadas, o fio com que espalhado no solo quando entram no labirinto, de novo os reconduza à entrada. O mesmo autor fala em três segredos, correspondentes às três ordens do cosmos: o segredo alquímico, a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte; o segredo mágico, a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las; e o segredo místico, a verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da criação do mundo.
11
Costuma até dizer-se, sobre esta ambivalência que Prometeu foi libertado por ter revelado a Zeus o segredo de Tétis, de que dependia o Concílio dos Deuses. Também para a alquimia, o segredo dos segredos era a arte de fazer a pedra dos sábios. Concluindo como Pessoa, nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer.
12
Contudo, se formos para uma análise mais serena, quase podemos subscrever o que disse Tzvetan Todorov, em Théories des Symboles: quanto mais é intensa a actividade simbólica, mais ela segrega esse anticorpo que é a afirmação meta-simbólica segundo a qual o símbolo é para nós desconhecido… Para as regras maçónicas, um irmão pode revelar que é maçon, mas não pode desvendar a pertença à ordem de outro irmão. Difere este pormenor do chamado segredo iniciático, que tem a ver com a conversão interior de cada um, circunstância que, pela natureza das coisas, não é passível de comunicação a não ser pela metalinguagem.
12
Porque, seguindo a lição de Pauwels, há três aspectos do segredo: o funcional (a proibição de revelar, não as palavras, mas os gestos realizados no lugar da inicição, é um elemento de acção psicológica e um fermento de coagulação do grupo); a vivência (o segredo está ligado a uma nova coloração de pensamentos e atitudes, no labirinto da individuação, a intercâmbios psicológicos no seio da comunidade de iniciados, implicando uma nova relação de cada um consigo mesmo); linguagem simbólica (a linguagem de uma comunidade de iniciados não pode transmitir-se ao exterior, embora se tenha publicado tudo o que é possível sobre ritos e símbolos).
13
Basta, aliás, notar o que proclama Albert Einstein: aquilo que é, para nós, impenetrável existe realmente. Por trás dos segredos da natureza permanece algo de subtil, inantingível e inexplicável. A veneração desta força para além do que podemos compreender é a minha religião. Até porque a religião do futuro será uma religião cósmica. Transcenderá o Deus pessoal e evitará o dogma e a teologia.
14
Será difícil comparar a Mafia, os Mau-Mau do Quénia, as Tríades chinesas e as estruturas clandestinas de um movimento revolucionário com as estruturas de uma qualquer igreja institucional de uma religião universal, ou com as das ordens maçónicas. Apenas para algumas seitas interessa santificar ou diabolizar os outros. Vejam-se as palavras do fundador do Opus Dei sobre a matéria: Chefes!… Viriliza a tua vontade, para que Deus te torne chefe. Não vês como procedem as malditas sociedades secretas? Nunca conquistam as massas. Nos seus antros, formam uns tantos homens-demónios que se agitam e movimentam as multidões, tresloucando-as, para fazê-las ir atrás deles, ao precipício de todas as desordens… e ao Inferno. Eles levam uma semente amaldiçoada (Josémaría Escrivá, Caminho, versículo 833, ed. port., Lisboa, Aster, p. 180).
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Há uma perspectiva analítica do modelo de acordo com a ciência antropológica, onde, conforme as teses de Marcel Mauss, se referem sociedades voltadas para o exercício do poder político, onde se distinguem as formas primárias do exercício de poder, das formas secundárias. As sociedades secretas pertenceriam a este último domínio, sendo sociedades divididas em clãs ou em graus, mas também organizações de conluio, mas que desempenham uma função regular, dado que a sociedade secreta é secreta pelo seu funcionamento; mas a sua função é pública (DA, p. 570)..
Os exemplos habituais deste processo são bem expressos pelos movimentos da África ocidental, onde, na própria sociedade secreta há uma dupla hierarquia, uma relativamente visível e outra, oculta, onde os da parte invisível ocupam sempre um post-chave na outra. De qualquer maneira, na sociedade secreta, são secretos o ritual e as fórmulas, bem como os pormenores da organização interna e a discriminação das regras de acesso ao poder, havendo, contudo iniciações especiais para o acesso às mesmas.
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Contudo, a Maçonaria, como salienta Oliveira Marques, em períodos de perseguição… assume as características de sociedade secreta. Em períodos de liberdade e tolerância, o secretismo tem a ver com a circunstância de os profanos, os não-maçons, não poderem assistir às sessões rituais, de os participantes não poderem narrar os conteúdos das mesmas; e de nenhum maçon poder divulgar os nomes dos seus irmãos, contra a respectiva vontade, dado prevalecer a soberania individual. Neste sentido, a Maçonaria é uma sociedade secreta iniciática, mas não é uma sociedade secreta política.
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A Maçonaria só pode ser clandestina quando os regimes políticos, alguns dos quais tem de ser leal servidora, até porque deles foi co-criadora, quando estes se tornam sistemas de poder pelo poder que passam a promover o fanatismo, a ignorância e a tirania, quando os irmãos têm, então, o direito e dever de assumir a resistência. Logo, quando se fantasiam ditaduras dentre de um sistema de liberdade, corremos o risco de sermos instrumentalizados pelos jogos da sociedade de corte e até de permitir que os nossos tradicionais modelos de solidariedade, irmandade e conspiração possam ser instrumentalizados pelos desvarios dos aparelhos de poder e pela desvertebração do clientelismo, da corrupção e da partidocracia.
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Foi assim com os jogos do cabralismo e, depois, com os formigas brancas contra os formigas pretas. E todos nos fanatizaram e nos tornaram ingredientes de jogos de poder, até com os irmãos que fizeram o 28 de Maio, para, depois, alguns traidores prepararem a própria dita de extinção da Maçonaria de 1935. Logo, também não foi por acaso que as massas foram instrumentalizadas para sucessivos assaltos a este palácio em 1918, 1928 e 1974. Aqueles terríveis enganos que episodicamente transformaram o povo em populaça.
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Mas quem ousar o impulso que levou à fundação da Acácia não pode deixar de reconhecer que seria trair não começarmos por reconhecer os nossos próprios erros passados e algumas interpretações históricas contaminadas que, de fora para para dentro, nos continuam a instrumentalizar. E seria não cumprir a nossa missão de resistência se não honrássemos e geração daqueles pais-fundadores que vão de Machado Santos a Adelino da Palma Carlos.
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Logo, ai de nós, se deixarmos aos tradicionais inimigos da democracia a tarefa de crítica desta degenerescência de democracia que, por vezes, nos enreda, no sentido de procura da perfeição do melhor regime, a “politeia” de Platão, ou a “república” de Cícero. Um melhor regime que não pode confundir-se com o sacristão que perdeu o sentido dos gestos e se vai perdendo em formalidades já sem sentido de bem comum.
Um peculiar sistema de moralidade, ilustrada por alegorias e iluminada por símbolos (system of morality, veiled in allegory, and illustrated by symbol) é a definição mais antiga e universalmente seguida, embora passível de uma pluralidade de interpretações.
Segundo as clássicas palavras de Albert Mackey, Freemasonry is a science of symbols, in which, by their proper study, a search is instituted after truth – that trust consisting in the knowledge of the divine and human nature, of God and the human soul. Como recentemente assinala Fernando Sacramento, na Maçonaria, a aprendizagem faz-se pela apreensão do símbolo, equanto a transmissão do conhecimento se faz pelo exemplo (p. 40).
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No mesmo sentido, o antigo Grão-Mestre do Grande Oriente de França, dizia em 1979: uma harmonia entre uma atitude de aperfeiçoamento interior e uma vontade entusiasta e activa de servir a humanidade. Washington observava que the grand object of masonry is to promote the happiness of the human race. Andrew Jackson (1767-1845) há-de acrescentar que Freemasonry is an institution calculated to benefit mankind.
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Ainda hoje, as auto-definições da Maçonaria falam numa sociedade de homens esclarecidos, unidos para trabalhar em comum para o aperfeiçoamento intelectual e moral da Humanidade Uma sociedade de homens esclarecidos, unidos para trabalhar em comum, para aperfeiçoamento intelectual e moral da humanidade. Porque o aprendiz é um homem que nasce livre e de bons costume, igualmente amigo do rico e do pobre, desde que sejam virtuosos. Alguém que deve duvidar de si mesmo e não deve emitir opinião na ordem sem ter consultado os seus irmãos. Alguém que nasceu livre depois de ter morrido para os preconceitos e que renasceu livre para uma nova vida que lhe confere a iniciação. Alguém que tem os deveres de fugir do vício e de praticar a virtude, onde importa preferir a justiça e a verdade.
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Porque, segundo Oliveira Marques, não possui a Maçonaria leis gerais nem livro santo que a definam ou obriguem todo o maçon através do Mundo. Não sendo uma religião, não tem dogmas. Porque, conforme constata Dan Brown, são três os pré-requisitos para que uma ideologia seja considerada uma religião: assegurar, acreditar, converter: os Maçons não fazem promessas de salvação; não têm uma teologia específica; e não procuram converter ninguém.
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Voltando a Fernando Pessoa, a Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano. Logo nos dois primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria… apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e ambiente histórico, de que ela não tem culpa (artigo publicado contra a proposta de lei sobre a extinção da Maçonaria, 4 de Fevereiro de 1935).
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No segundo artigo sobre a matéria, que a Censura proibiu, falando hermeticamente, e atribuindo ao liberalismo o que identificava como Maçonaria, esclarece que os seus princípios são: o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito, ou, em outras palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma só palavra, o individualismo fraternitário. Porque há três realidades sociais – o Indivíduo, a Nação e a Humanidade. Tudo o mais é fictício. São ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a Civilização… E tudo faz para que se distinga o que estava confundido, se aproxime o que por erro estava separado, e haja menos nevoeiro nas ideias, ainda que não seja por elas que haja de se esperar por D. Sebastião.
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Já a Maçonaria do Sul em 1835 assinalava como missão o erigir templos à virtude e cavar masmorras ao vício. O Oriente Irlandês, em 1839, falava no melhoramento da espécie humana. O Grande Oriente Lusitano de 1840 apontava-lhe o estudo da moral universal da ciência e das artes. A CMP em 1851 anotava-lhe como missão propagar conhecimentos úteis e melhorar a condição social do homem por todos os meios, especialmente pelo exercício da beneficência. Miguel António Dias em 1843 definia como uma escola de fraternidade.
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Théodore Verhaegen, maçon belga, ligado à fundação da Universidade Livre, define-a como Instituição cosmopolita e progressista, tem como objecto a procura da verdade e do aperfeiçoamento da humanidade. Funda-se na liberdade e na tolerância; não formula nem invoca nenhum dogma.
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Para Fernando Pessoa, as fórmulas e os ritos maçónicos são nitidamente judaicos; o substrato oculto desses ritos é nitidamente gnóstico e agiu fortemente na Renascença e na Reforma; a sua ingerência na Revolução Francesa é assinalada (AQ 151). Porque, segundo o mesmo poeta, a Maçonaria é, nas suas bases, insuficientemente dogmática e definida para que do seu conteúdo se possa afirmar isto ou aquilo, judaísmo ou outra cousa qualquer. É um produto do protestantismo liberal (AQ 193) que, quanto às suas redacções originais se torna um produto do século dezoito inglês, em toda chateza e banalidade (AQ, p. 192).
Aliás, o conteúdo dos graus fundamentais, que vulgarmente se chamam simbólicos, não é judaico em espírito, mas ó em figura. Porque o protestantismo foi, precisamente, a emergência, dentro da religião cristã, dos elementos judaicos, em desproveito dos greco-romanos (id., p. 192) e a presença de elementos cabalísticos na Maçonaria não prova, pois, uma origem judaica. O mesmo autor salienta que a Maçonaria nada, pois, tem que ver com qualquer regimen ou partido político, excepto se ou quando esse regimen ou partido atacam a tolerância ou oprimem a liberdade (JS, Da República, 411). Porque toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só ideia – a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender (id. 402). Até porque o espírito partidário é uma consequência da intolerância religiosa do passado, e por isso se acentua naqueles países que sofreram, durante séculos, o influxo da mais intolerante de todas as formas de religião – o catolicismo (p. 358).
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Segundo o artigo 1º da Constituição do Grande Oriente Lusitano é uma ordem universal, filosófica e progressiva, fundada na Tradição Iniciática, obedecendo aos princípios da Fraternidade e da Tolerância e constituindo uma aliança de homens livres e de bons costumes, de todas as raças, nacionalidades e crenças. Fernando Sacramento, desenvolvendo a sua teoria e experiência observa que a Ordem é eterna, universal, tradicional, simbólica, iniciática e fraternal. É tradicional no sentido em que esta afirmação indica a transmissão de um saber, de um conteúdo doutrinal teoricamente comum a todas as civilizações (e/ou à humanidade) e a utilização de um conceito operatório (uma hermenêutica) para interpretar a história. É iniciática porque a transmissão dos seus conhecimentos se faz pelo exemplo, pela via da iniciação, isto é, pela transmissão dos seus mistérios de iniciado para iniciado. É simbólica porque torna sensível o que o não é, que reúne, assinala a pertença e permite transmitir a outrem o que ordena, sugere e prescreve. É fraternal porque considera a Humanidade como uma fratria una e indivisível
Muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo…
Ontem, lá fui à minha santa terrinha, numa conferência que tinha como pretexto invocar carbonária, Maçonaria e república, no contexto da implantação da república. Foi emotivo esse regresso à memória de menino e moço desses campos, marcado pela experiência política dos meus seis anos de idade, quando vi pela primeira vez a colar um cartaz de propaganda política nas paredes da casa da minha avó, no Largo da Praça de Cernache: era o Dr. João Ribeiro que afixava um de Arlindo Vicente, antes de se tornar num apoiante de Humberto Delgado. E comecei, precisamente, por homenagear esse santo laico da minha infância, talvez o resistente anti-salazarista da zona que mais vezes deve ter sido preso e que, para mim, se tornou no paradigma de um político que sempre viveu como pensou e que, nem depois da vitória das suas ideias, no 25 de Abril de 1974, se conformou. Encontrei-o, um dia, no tribunal, onde fazia estágio de advocacia: tinha voltado a ser detido, agora, conspirando num dos grupos de extrema-esquerda contra o situacionismo do PREC… O meu querido dr. Ribeiro que a tantos fez bem, com o seu dois cavalos, circulando de aldeia em aldeia, de casa em casa, tratando de toda a gente, sem máquina registadora de pagamento de consultas, foi um semeador de sonhos a quem continuarei fiel para sempre. A conferência foi também um pretexto para o meu luto. Porque a minha querida Ana era trineta do Francisco de Lemos Ramalho, que nunca usou o título de Conde de Condeixa, o tal que fugiu de casa aos 14 anos para servir no cavalaria 4, que lutou do lado miguelista, mas que, depois, renunciou, para voltar às armas com a Patuleia, à frente de 600 homens que armara e equipara. Também não aceitou ser Marquês de Pereira, título oferecido por D. Maria II a quem hospedou, juntamente com D. Fernando e o futuro D. Pedro V. E que dizer da carbonária, depois desta mistura de setembristas e legitimistas? Que a velha sociedade napolitana, surgida entre 1807 e 1810, contra a ocupação napoleónica, tinha a mesma explosividade de idênticas sociedades secretas portuguesas que resistiram a El-Rei Junot e que, na pequena pátria dos campos de Coimbra, se destacou o maçon José Bonifácio, em nome da liberdade portuguesa, para, depois, erguer o sonho da independência brasileira que foi a melhor maneira de se reproduzir Portugal à solta no lado de baixo do Equador. Porque houve sempre muitas carbonárias: a de 1848, ligada a José Estêvão (o filho deste, Luís de Magalhães, ministro dos progressistas, há-de casar com uma descendente de Francisco Lemos Ramalho, e terá destino paradoxal de crente, quando assume a legitimidade de líder político da Monarquia do Norte, em 1919, mas sempre em amiga relação com os republicanos, como o demonstrou a defesa que teve em tribunal de Basílio Teles); a de 1862, ligada ao Partido Regenerador de Coimbra, com o Padre António de Jesus Maria da Costa); ou a de Artur Duarte da Luz de Almeida, recriada em 1897, onde vai enfileirar António Maria da Silva que, nas suas memórias, nos desfaz o mistério de uma organização mobilizadora, porque, segundo as suas próprias palavras: muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo; e, para esses, era de capital importância a liturgia, principalmente para os mais humildes. Descansem, leitores, não vou reproduzir a conferência, nem registar o debate. Voltei à minha pequena pátria moçárabe dos campos de Coimbra, entre a serra e o mar, onde há sinais de uma república maior, a de Portugal a caminho do Sul, esse que lutou em Aljubarrota, que resistiu no cerco de Lisboa, que elegeu o rei nas Cortes de Coimbra e que a todos nos fez porto de partida para o navegar é preciso do abraço armilar. E não deixei de homenagear os meus avoengos, mais da patuleia do que da capitaleira carbonária, esses resistentes da Revolta do Grelo e da revolta de Cernache de 1936. Foi com eles que soletrei os sinais da terra prometida e dos planetas que nos dão esse além de um mundo sem fim, o da espiritualidade, mesmo quando herética e neopagã (veja-se o S. Mateus de Soure, a queima do Judas em Cernache ou as cavalhadas do Espírito Santo em Vila Pouca, mesmo quando apenas autorizadas no Santo António). Sobretudo, o valor do trabalho, de sol a sol e de lua em noites de rega, e o sentido do sagrado da propriedade humanizada do minifúndio que permitiu o individualismo e o familiarismo da casa, da horta e do pinhal, essa enraizada liberdade na comunidade viva das tradições. As minhas origens, de nobre linhagem plebeia, regeneraram-se nesta breve viagem ao sonho que me deu sentido de luta e obrigam-me a ser fiel à tribo e aos meus. Daí que, em plena comemoração do centenário da república, tenha continuado a proclamar o meu liberdadeirismo azul e branco, defensor da restauração da república… mas com a posterior eleição do rei. E o ambiente dos meus amigos, colegas e irmãos da assistência, maioritariamente antimonárquicos, apenas demonstrou como não posso ser, como realista antigo, anti-republicano. Até recordei o “Livro da Virtuosa Benfeitoria” do Infante D. Pedro, talvez o primeiro tratado político em português, o do ambiente da constituição política de 1385, que o grupo republicano da Biblioteca Pública do Porto editou…
Um espaço complexo demais para o “more geometrico” mental de um ministro dos estrangeiros de um governo socialista que já foi vice-presidente da associação europeia das democracias cristãs e que pretende o eclético do estar bem com Deus e com o Diabo naquele estático centrismo do ficar de cócoras perante a gestão das dependências, sem se afligir até com o fanatismo daqueles manipuladores de massas que mandam queimar as bandeiras medievais da cruz, como é a dinamarquesa, quase igual à do nosso D. Afonso Henriques. Portugal foi a aula que dei na segunda-feira sobre a matéria, quando tomou a palavra uma aluna maometana, de origem fula, vestida à Sara Tavares e explicando aos colegas católicos, agnósticos e ateus, que a tolerância não é uma sebenta de jurisprudência dos conceitos. E quando foi formulada a hipótese académica de um grande jornal de grande expansão poder publicar uma caricatura ofensiva de Nossa Senhora de Fátima, foi ver a fúria compreensiva dos outros crentes. Apenas lhes disse que tudo só poderia ser resolvido com o Código Penal aplicado pelo poder judicial e não com notas oficiosas do MNE. Até porque, em direito civilizado, a rotina da acção directa não é meio de defesa. Portugal talvez seja irmos todos à igreja/mesquita de Mértola fazer uma oração conjunta no mesmo espaço divino, em português, expresso por judeus, muçulmanos, cristãos e maçons, todos portugueses, na presença de um bispo cristão e com as beatas alentejanas benzendo-se quando o Corão era lido por um oficiante mometano em lusitano linguajar. Já assisti a uma cerimónia destas, que ajudei a organizar, sob a batuta da saudosa Helena Vaz da Silva. Aconselho o senhor ministro a ler mais Camões e Agostinho da Silva. E a perceber como na nossa mais recente guerra, o factor islâmico até foi nosso aliado, morrendo por aquilo que se decretava ser Portugal. Portugal nunca rimou com a pseudo-ortodoxia cartesiana do neo-dogmatismo pretensamente antidogmático. Alguma coisa está podre neste reino da nossa Dinamarca. Viva a bandeira afonsina que outros vão queimando com a gasolina cobarde que re-exportamos para as praças do ódio. Oxalá! E até amanhã se Deus quiser!
A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo
Há uma certa história que incomoda alguns adeptos do processo histórico: aquela onde é o homem que faz a história e não a história que faz o homem. Onde o homem faz a história, mas sem saber que história vai fazendo. Reparo que está novamente em cena em Portugal “O Príncipe de Homburgo”, de Heinrich Von Kleist. Reparo que, há mais de quarenta anos, Goulart Nogueira encenou a peça. Na Oficina de Teatro dos Estudantes de Coimbra. Como também a traduziu em 1961, editando-a então na Contraponto de Luiz Pacheco. A pedido do Teatro do Gerifalto, de António Manuel Couto Viana. Apenas um registo de verdade contra o banimento. É tudo uma questão de romantismo contra os invasores napoleónicos. Sempre.
Também por cá, José Acúrsio das Neves esteve ao lado de José Bonifácio de Andrade e Silva. Que reaccionários e maçons deram as mãos em nome da pátria. Como, depois, as voltaram a dar na Patuleia. Só historietas de literatura de justificação de posteriores regimes, sobretudo quando eles entram em crepúsculo de banhas de cobra comemorativas, ou de procura de historiografias oficiais de livro único, para uso, como catecismo, nas escolas também oficiais. Só então é que procedem a saneamentos de intolerância, fanatismo e ignorância.
A liberdade não é mera abstracção geométrica, mas a consequência de uma pluralidade de indivíduos autónomos. É uma vivência feita comunidade, que só existe quando existem homens livres que são autores e não meros auditores, dado que estes acabam quase sempre como meros súbditos, quando preferem a servidão do bem-estar e da segurança, à imprevisível revolta dos escravos, em nome da justiça.
Também Albert Camus salienta: a liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário. E, mesmo comparando-a coma justiça, clarifica: Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade perserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
Goulart foi uma espécie de D’Annunzio em português e é uma homenagem atribuir-lhe o qualificativo de fascista, um dos poucos que conheci, inteiro e artístico, e que assim deve ser lembrado. Kleist foi o pretexto para um encontro com o nacionalismo romântico, onde tudo, até a palavra fundamental, havia sido inventada por Rousseau. Porque, como ensina Ortega y Gasset, outro dos meus mestres, ao homem lhe sobe o coração à cabeça, quando o sentimento passa a predominar sobre a razão e acaba por explodir em paixão: o sentimento não se contenta do seu predomínio sobre a razão, como fonte de inspiração literária ou artística: converteu se em paixão, que a cada passo perdia o sentido das medidas correntes da realidade física ou moral.
Assim também foi Coimbra, no ambiente de “fim de regime”. Lá aprendi a ser neo-romântico e panenteísta. Com Heinrich Von Kleist. Com Paul Claudel. E até com Fernando Pessoa. Todos encenados na Oficina. Com Goulart Nogueira e com António Manuel Couto Viana. Não são apenas memória que quero esquecer. Continuam a ser saudades de futuro…
Que, para o mês de Abril, irei conferenciar sobre o tema, em Condeixa, comemorando os cem anos desta república. O pretexto vai ser Francisco de Lemos Ramalho, conde de Condeixa e Marquês de Pereira, o trisavô da Ana, títulos que nunca usou por fortes convicções políticas. E aquele retrato de família, onde também aparecem o conselheiro Luís de Magalhães, o filho de José Estêvão, e Jaime de Magalhães Lima, assim se religando a restauração de 1808 à própria Traulitânia, com progressistas casando com miguelistas . Com outras histórias da raiz das guerrilhas patuleias. Das que chegaram à Revolta dita do Grelo, já nos primeiros anos do século XX. E à revolta de Cernache de 1936, onde meus avoengos se insurgiram contra a GNR, e foram condenados e presos durante anos, mas ainda hoje sem lugar nos catecismos da liberdade, apesar de constarem com nome próprio, perdido no anonimato do colectivo, nos próprios anais inventariados por Fernando Rosas…
Os adversários e concorrentes não têm que ser inimigos
Tenho repulsa pela confusão entre o iniciático e a política, entre o profano dos interesses e o sagrado da metafísica. Rejeito a confusão patrimonialista, negocista ou feudal, pela ligação entre o espaço do doméstico, ou empresarial, e a praça pública. Isto é, não admito que a lógica do público, do comunitário ou da república, seja subvertida pelos mais baixos fins das sociedades imperfeitas e dos corpos intermediários. A nossa história contemporânea está cheia de maus exemplos oriundos deste confusionismo. E tardam as mostras de sincero arrependimento por anteriores faltas de autenticidade. Logo, temo que voltem a triunfar certas instâncias que bem gostariam de recriar um conflito entre a política e a sacristia, mesmo que seja o habitual sucedâneo que põe, de um lado da barricada, o humanismo católico e do outro, o humanismo laico. A questão do centenário do 5 de Outubro, a que chamam indevidamente república, ou a recente questiúncula do casamento de pessoas do mesmo sexo, até pôs excelsos activistas dizendo que eram por isto ou por aquilo porque eram ateus ou crentes. Prefiro dizer que maçons e católicos, comunistas e monárquicos, republicanos e sindicalistas, isto é, alguns dos grupos mais enraizados e mais coerentes da recente história portuguesa, todos eles podem invocar perseguições de uns por outros, e até alguma espiral de violência simbólica. Seria preferível dizer que entre eles pode haver lugares comuns que permitem o diálogo, sem o qual não pode haver pátria, humanidade ou justiça, esses valores mais perfeitos que devem mobilizar e dar inclusão às parcialidades, às facções e às paixões. Os adversários e concorrentes não têm que ser inimigos