Timor


06.10.08

Está a chover, só posso dizer que está a chover, que muitas cousas ausentes se fizeram tão presentes como se nunca passaram

 

 

 

 

1

Telefonaram há bocado. Já tenho guia de marcha. Para a semana, do Oriente, terei a luz do nascer do sol. Porque Deus quis, porque o homem sonha, porque a obra pode nascer. A procura do direito à felicidade obriga ao nascer de novo, todos os dias. No bornal, já coloquei as impressões de viagem, postas em rimas, de mestre Luís, morto em 10 de Junho, de há quatro séculos e um quarto, o tal que bem conheceu os Jaus…

 

2

Hoje choveu e o dia ficou mais cinzento, mesmo depois de vir sol. Continua a chover. E fica a metáfora, à boa maneira de tempos que não passaram. O sol pode não nascer de novo. Mas há luz cá dentro. Resisto. Leio Luís Vaz. Estou condenado a desfazer a mochila e talvez ainda possa transcrever parte do poema. Acredito que a poesia é mais verdadeira do que a história, conforme me ensinou outro mestre, o que acreditava na ideia de Atenas, mesmo depois de Atenas decretar que sabia mais do que aquele que só sabia que nada sabia.

 

3

Sôbolos rios que vão

por Babilónia m’achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado:

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.

 

Ali, lembranças contentes

n’alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val
que então se entende milhor
quando mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento;
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.

 

4

Ó vós, que sois secretários
das conciências reais,
que entre os homens estais
por senhores ordinários;
porque não pondes um freio
ao roubar que vai sem meio,
debaixo de bom governo?

Vereis uns, que no seu seio
cuidam que trazem Paris,
e querem com dous ceitis
fender anca pelo meio.
Vereis mancebinho de arte
com espada em talabarte;
não há mais Italiano.

Outros em cada teatro
por ofício lhe ouvireis
que se matarán con tres
y lo mismo harán com cuatro.
Prezam-se de dar respostas
com palavras bem compostas;
mas, se lhe meteis a mão,
na paz mostram coração,
na guerra mostram as costas:
porque “Aqui torce a porca o rabo”.

Achareis rafeiro velho,
que se quer vender por galgo:
diz que o dinheiro é fidalgo,
que o sangue todo é vermelho.


Consciência que sobeja,
siso, com que o mundo reja,
mansidão outro que si;
mas que lobo está em ti,
metido em pele de oveja!
E sabem-no poucos.

Guardai-vos d’uns meus senhores,
que ainda compram e vendem;
uns que é certo que descendem
da geração de pastores;
mostram-se-vos bons amigos,
mas, se vos vêm em perigos,
escarram-vos nas paredes;

[Que dizeis duns, qu'as entranhas
lhe estão ardendo em cobiça?
E, se têm mando, a justiça
fazem de teias de aranhas,
com suas hipocrisias
que são de vós as espias?
Para os pequenos, uns Neros;
para os grandes, tudo feros.
Pois tu, parvo, não sabias
que "Lá vão leis, onde querem
cruzados"?

Mas tornando a uns enfadonhos
cujas cousas são notórias;
uns, que contam mil histórias
mais desmanchadas que sonhos;
uns, mais parvos que zamboas,
que estudam palavras boas,
[a que ignorancia os atiça;]
estes paguem por justiça,
que têm morto mil pessoas,
por vida de quanto quero

Ó tu, como me atarracas,
escudeiro de solia,
com bocais de fidalguia,
trazidos quase com vacas;
importuno a importunar,
morto por desenterrar
parentes que cheiram já!
….

Ó vós, que sois secretários
das conciências reais,
que entre os homens estais
por senhores ordinários;
porque não pondes um freio
ao roubar que vai sem meio,
debaixo de bom governo?
Pois um pedaço d’inferno
por pouco dinheiro alheio
se vende a Mouro e a Judeu

Porque a mente, afeiçoada
sempre à real dignidade,
vos faz julgar por bondade
a malícia desculpada.
Move a presença real
üa afeição natural,
que logo inclina ao juiz
a seu favor; e não diz
um rifão muito geral
que “O abade donde canta,
[daí janta"?

 


 


 

15.10.08

Amanha terminarei esta parte da viagem. E o sol vai nascer de novo.

 

 

 

 

5

Depois de muitas e caladas peripécias, informo os meus queridos amigos e leitores que estes postais passarão a ser emitidos a partir da Ribeira do Mar de Timor. O gavião assumirá, no primeiro semestre deste ano lectivo, o heterónimo da imagem que encabeça esta declaração. Oportunamente, informarei sobre as minhas coordenadas. Apenas me apetece recordar que um dos meus primeiros actos de activismo político foi o de lutar por uma lista de deputados (C.E.M.) onde se incluía o grande poeta timorense Fernando Sylvan. Lutávamos contra a política colonialista que, em Lisboa, conjugava o verbo "ter". Rejeitávamos o verbo "estar". Sylvan ensinava-nos que valia a pena o verbo "ser". Ainda tenho dessas saudades de futuro do abraço armilar por cumprir. Vou com paixão e com razão. Porque Timor já não rima com temor, mas com a comunidade das coisas que se amam.

 

6

Sabe tao bem a descoberta, o saber de experiencia feito, mesmo que o teclado nao me deixe cumprir todas as nossas regras ortograficas. Tenho de olhar, sentir e calcorrear. Nao concluir apenas pelo preconceito e o ouvir dizer. Sobretudo, vivendo o mundo que a minha volta se vai estendendo, longe das eiras e das beiras de que vou vivendo. Ai dos que procuram o exotico turisticamente, de qualquer maneira. Porque depressa pode passar-se do deserto radical para um lugar ao sol no nevoeiro de uma republiqueta financeira, lendo despachos sobre o sobe e desce da especulacao financeira e perdendo os fios do equilibrio que nos ligam aos grandes movimentos cosmicos. Nomeadamente aos ritmos profundos que transformam as ideias em correntes de pensamento e concepcoes do mundo e da vida, quando nao em grandes religioes universais. Importa que cada um de nos se assuma como centro do mundo e que, pelo individual da diferenca procure a humilde ambicao de aceder ao universal.
7

Noto que ja poisei na terceira escala, nesta terra de tufoes, vulcoes e tsunamis, onde o mar e a terra se enrodilham num ceu que desaba em dias de raiva. Por mim, apenas o desejo de procura de um lugar onde, que me de mais espaco para assentar o sonho. Sem as amarras de um tempo que, afinal, nao nos da lugar. Porque ha quem pense gerir imperios sentado no sofa das ordens e das contra-ordens, mandando servicais e capatazes para os cantos mais escondidos de seus pretensos dominios. Ha quem, sentado em seus gabinetes de poder, mande matar e mande morrer pela simples assinatura de um despacho, assente na informacao formal de um senhor director qualquer e aceitando a sugestao do rascunho de decisao que o chefe de gabinete elaborou. Ha quem pense que mandar tem de ser poder mandar matar e mandar morrer. Ha quem continue a dar o nome de substantivo ao velho adjectivo de uma arma que tambem pode disparar em ricochete, e a que todos os poderosos faz ter medo de tambem poder morrer matando.
8

Apenas digo que ha outros sinais da procura do universal. Mesmo aqui, dentro desta enorme baleia aerea que me permite ser um anonimo lusitano, entre tantas e desvairadas gentes. E la assinei mais nao sei quantos papeis de desembarque para satisfazer o manual do controlo policiesco desta formidavel rede securitaria que esta crescendo para controlar outras redes, na constante guerra dos Estados contra os clandestinos que, por dentro, ao lado e acima dos Estados formais, vao instrumentalizando a pluralidade de pertencas dos individuos.
9

Para onde vai meu nome? Para que gaveta numero nao sei quantos mil de um qualquer armario concentracionario vai meu carimbo, assim perdido nos aparelhos de analise de poder desta abstracta maquina alimentada pelos impostos e controlada pelos sargentos verbeteiros, pelos chefezinhos de continuos, pelas odaliscas, pelos espioes, pelos muitos comedores de restos? Sobretudo, se eu nao preencher devidamente a ficha controleira com que um qualquer intendente desempregado do gulag ou do tarrafal me quis controlar, vingando-se em persiganga

 

10

Amanha terminarei esta parte da viagem. E o sol vai nascer de novo.

 

 

 

 


 

No acaso procurado de uma espera de pátria prometida, depois da guerra e do império

 

 

 

 

 

 

 

11

Depois de um longo mar, bem calmo, por onde me reparti, bem longe de quem estou, veio a ilha, em mar largo. É por aí que vou cumprir meu sonho, nesta procura. Foi por cima de um largo mar azul, pejado de ilhas e ilhotas, corais e ondas brancas que a orla foi de ilha em ilha, passando os confins da Ásia até à Oceania. Navegar é preciso, viver, sobrevivendo, já não é preciso. Porque os sonhos que sonhei e agora recordo têm a emoção cósmica de um novo mundo que sempre podemos ter para descobrir. Para que o vulcão do lirismo possa mais uma vez romper dentro de mim.

 

 

12

O chegar foi muito mais forte do que as palavras que o poderiam expressar. Porque muitas memórias me vieram, do fundo da alma, nestas brumas tropicais. Como os sonhos que fui tendo noite dentro, onde se misturaram casas e terras do passado, encruzilhadas, projectos de vida por cumprir. E, sem saber porquê, mais fundo, um sinal de flor, um terno olhar, de uma beleza imaculada, como ave que se passeia por cima do arvoredo. Não estava longe, mas no seu lugar, porque é assim que, em paz, podemos ir além do breve espaço de tempo a que chamamos vida. Porque a esperança pode ser eternidade, se nos diluirmos no tempo sem tempo, de um Deus a que muitos chamam mundo.

 

 

13

E sempre o desejo de voltar ao sítio para onde vou, porque, só depois do fim, hei-de lembrar. Nasci para chegar além de mim, para permanecer em espírito, para além do estar aqui, mas onde, de vez em quando, me vêm sinais do infinito de que também sou feito. Eu, indiviso, indivíduo, pequeno pedaço do imenso, para onde tendo, naquilo a que muitos gostam de chamar metafísica, coisa sobre que sei que nada sei. Mas o caminho místico que me dá este ambiente de trópico faz, afinal, com que regresse para seguir em frente.

 

 

14

Aqui e agora, olhando por mim dentro, voltei a ser menino que procura o que se esconde para além da curva do caminho. E peregrinando meus confins, nos antípodas do que dizem ser o sítio onde nasci, é mais perto de todos os outros que, dentro de mim, já me acho. Porque, vivendo o mistério deste sol nascente, é mais perto do eterno a que me chego. Nesta serenidade de olhar um mundo que me volta a dar o sonho da procura do paraíso. Até, vestido de Camões e Mendes Pinto, trato de procurar Portugal, assim fora de Portugal, dando-lhe os muitos nomes com que os portugueses à solta, do império sombra, foram registando estes mares dantes nunca navegados. E assim diluindo-se em todos os outros, nos foram dando o ser universal que nos abrasa.

 

 

15

É esta nossa metafísica de aventura, de correr todas as sete partidas que sempre foram semente do abraço armilar. É esta fidelidade avoenga que nos obriga muitas vezes à resistência e à rebeldia. Andar sempre em partida, eis meu lugar, para poder cumprir a missão de ser simples parcela de uma corrente de sonho e pensamento que me transcende. Para que meu corpo possa servir a alma que o mobiliza.

 

 

16

E vieram asas para que sou procura. Pequenos pedaços de um sinal do tempo para onde voo. Um indefinível mistério que se cruzou comigo, no acaso procurado de uma espera de pátria prometida, depois da guerra e do império. Porque, no mar, é o princípio e serei sempre o procurar.



 

16.10.08

Um povo é uma comunidade de significações partilhadas

 

 

 

 

 

17

Porque aqui são oito horas mais tarde, não sofri com as queirosíadas, mas agora, prestes a jantar, noto como os programas de opinião pública da rádio estadual de Lisboa nos debitam análises sem fim sobre a causa da crise da nossa FPF onde, finalmente, se nota como está nu o tal madail que ainda vai ser herói se optar pela chicotada psicológica. Já, da política, nos vêm as disputas laranjas sobre a candidatura de Pedro à autarquia lisbonense, enquanto o governo nos orçamentaliza e Medina Carreira continuar a pregar no deserto. Vale-me que, neste ambiente timorense, vivo noutro mundo, sem qualquer paixão identitária pelas facções e partidos locais que, apesar estarem bem perto, nada têm a ver com o ritmo da minha cidadania. Assim se confirma como um povo é uma comunidade de significações partilhadas.

 

18

Vistos de Timor, Sócrates, Louçã, Portas, Jerónimo ou Manela são animais exoticamente idênticos, revestidos pelo mesmo discurso, embora uns se digam de um lado e outros, do lado oposto. Tal como os portugueses de hoje vêem os opostos políticos da I República como gente de chapéu preto e de discurso de comício em cima de um carro de bois. Poucos conseguem saber se António José de Almeida estava à direita, ou à esquerda, de Afonso Costa. Também os políticos de hoje, vistos à distância, são tão rotativamente próximos, quando o Zé Luciano ou o Hintze. Contudo, a paixão identitária que nos mobiliza pode constituir uma saudável energia, se a soubermos sublimar em adequada institucionalização dos conflitos.

 

19

Por isso, amigos e queridos leitores, não esperem que aqui formule opiniões sobre Xanana, Alkatiri ou Ramos Horta. Não só porque sou estranho e estrangeiro, como não é justo que exerça qualquer sucedâneo de cidadania, sobretudo face, a um povo que ainda há pouco conjugava o martírio. Esta democracia timorense, com o seu real dramatismo, exige, pelo menos, que respeitemos os mortos. Daí que fique cada vez mais longe de toda politiqueirice lusitana, ainda marcada pelo mais do mesmo.


 

 

 

 


SOS SOS SOS

 

 

 

 

 

21

Quase uma da tarde deste primeiro sabado de Dili. Uma internet lenta demais e, com longas brancas, especialmente no "wireless" que concedem aos agentes da cooperacao, apesar de o gestor, um engenheiro informatico paquistanes, ou la o que e, tentar superar o problema. Logo, volto a escrever de uma maquina sem regras ortograficas lusitanas, no espaco para agentes de negocio do Hotel Timor, pouco adaptado a nossa ortografia, apesar de ter sido reconstruido gracas ao apoio da Fundacao de Carlos Monjardino. Apenas para comunicar aos meus amigos e leitores que ontem ja tive o prazer de longas e belas horas de aulas e que, depois de tantas trocas e baldrocas, me voltei a sentir professor na sua plenitude, naquela funcao que e missao e que e vocacao, onde o trabalho nao e uma imposicao do regulamento ou objecto de analise dos tecnocratas da avaliacao, mas daquela comunidade em torno das coisas que se amam e que se chama sala de aula. Agradeco a todos os deuses esta oportunidade de libertacao.
22

Quando sai da universidade, voltei a reviver e aquilo que foram noites de dormir que o meu ritmo circadiano interpretou como se fossem uma curta sesta acabaram, esta noite, compensadas, porque foram quinze horas seguidas de soneca, para me sentir finalmente liberto neste novo fuso horario. Agora, perante novas circunstancias de tempo, posso novamente peregrinar pelo lugar, ja sem o peso da tralha burocratica a que estava agarrado, especialmente daquilo que o meu Professor Rogerio Soares qualificava como elefantiase legiferante, como aquela que temos em Portugal, esse universo comcentracionario de leis e regulamentos que obriga o agente aplicador a ter que cair naquele estilo da administracao otomana a que Hannah Arendt dava o nome de governo dos espertos, dado que o cipaio e o administrador de posto podem sempre escolher arbitrariamente qual a lei que hoje podem aplicar aos incautos cidadaos que estao na lista dos mal-amados.

23

Dai que me apeteca citar Camoes de memoria e proclamar que vale mais experimenta-lo do que julga-lo, para que julguem os que nunca o puderam experimentar. Basta reparar nos erros ortograficos deste postal para algum leitor poder pedir ao Carlos Monjardino que mande aqui para o hotel a que ele esta ligado um carregamento de teclados em segunda mao que tenham um til e uma cedilha. Basta que outros leitores tenham a ousadia e a imaginacao de pedir as respectivas escolas e aos respectivos editores que mandem para a Universidade Nacional de Timor Leste todos os livros que tenham em armazem e que querem amanha remeter para as maquinas de destruicao de papel. Nao custa nada fazer um embrulho dessas coisas e despacha-las ca para esta terra. Ate mas podem mandar, aqui para o Bairro da Cooperacao, que eu farei chaga-las ao sitio certo. Lembro a coiss, especialmente ao Henrique Mota e ao Paulo Teixeira Pinto que a devem sentir por dentro.

24

Ainda ontem, nas aulas, reparei que estes meus alunos manejavam o manual de Financas Publicas do meu querido Professor Teixeira Ribeiro. Tentando espreitar a edicao que nao conhecia, notei que a mesma era, afinal, uma bem montada fotocopia emitida, num destes recantos imaginativos de uma oficina de comerciantes chineses. Imediatamente, autorizei que o meu volume de filosofia do direito, por acaso esgotado, ha varios anos, em Lisboa pudesse ser editado clandestinamente por esta magnifica casa eleitoral da necessidade. Hei-de sugerir que facam o mesmo ao manual introdutorio do saudoso Professor Joao Castro Mendes, apesar de haver o mesmo na biblioteca, ao lado de longos codigos anotados sobre o nosso direito do trabalho e a nossa estrada que, naturalmente, ninguem consulta.

25

Quanto ao manual de Castro Mendes, peco imensa desculpa a Dona Lurdes e ao Senhor Costa, da ex-editora do PBX da Faculdade de Direito de Lisboa, a que concorria com o "stencil" do senhor Charneca, mas quero aqui perpetuar a palavra de um dos mais maravilhosos mestres que ainda conheci na Faculdade do Campo Grande. Julgo que a logica dos futuros magistrados desta terra do sol nascente merece ser impregnada pelas obras mais pedagogicas que a nossa ciencia do direito produziu no seculo XX. De qualquer maneira, este meu testemunho, se tiver alguma alma caridosa que o receba, bem pode ter alguns frutos, se certos leitores tiverem a pachorra de o transformar num "mail" que remetam as nossas escolas e editoras, do Rei dos Livros a Almedina, nao esquecendo a Coimbra Editora e todas as escolas de direito lusitanas. Remetam para a Universidade Nacional de Timor Leste os livros necessarios para a sementeira.

26

Do mesmo modo, se houver brasileiros nas mesmas circunstancias e alguem que faca chegar o apelo ao Rio de Janeiro, a Sao Paulo ou a Brasilia, todos agradeceriamos. Infelizmente, ja esta falecido o meu querido mestre Miguel Reale, porque ele, de certeza, iria bater a porta do maior editor de livros juridicos de lingua portuguesa, o Saraiva, esse mesmo, da Editora Saraiva, que nunca por Portugal repararam que era compatriota, ate para podermos furar o esquema da edicao de livros juridicos portugueses no Brasil. Porque nao bastam as boas feiras de livros que fazemos no Brasil ou noutros paises dos PALOP. E necessaria muita imaginacao e o esforco individual do portugues a solta.

PS: podia utilizar a tecnica do copy paste para resolver o problema da ortografia, mas apenas a deixo para verem como ate no Hotel mais portugues de Dili ninguem se lembrou de solucionar este pequeno nada...

 


 

18.10.08

As pessoas quando viram que nem os lugares da Igreja haviam sido respeitados pelos indonésios fugiram todas dizendo: “Vieram para nos matar a todos”

 

 

 

 

27

Leio, no jornal "Diário do Minho" uma recente entrevista do meu querido Padre Felgueiras. Transcrevo excertos, sem muitos comentários. Apenas recordo que, quando o  conheci,  vivia em Cernache, adolescente, prestes a entrar para a Universidade e devo-lhe grande parte de quem sou, apesar de nunca termos falado de religião. Fui obrigado a ler tudo sobre Baden Powell e até me proporcionou um especial curso de dinâmica de grupo, dado pelos professores do nascente ISPA. Apenas assinalo que, nas paredes do meu quarto, além dos familiares, apenas conservo a fotografia deste missionário do século XX. Com ele, aprendi que sermos portugueses era sermos desses universais que devem diluir-se em todos os outros.

DM – Como se deu a ida para Timor?

Estava no Colégio da Companhia de Jesus, em Cernache, e o Padre Provincial propôs-me ir para Timor. Isto em Maio de 1970. Fiquei surpreendido e, então, pedi um tempo para reflexão. 

Em Dezembro desse ano, parti de Cernache rumo a Timor. Neste tempo entre o pedido do Provincial e a minha partida, li muitos livros sobre Timor a fim de criar uma visão mais objectiva daquele País. 

 

Li praticamente todos os livros que havia e que estavam na biblioteca do colégio e isso enriqueceu a minha visão. Preparei-me para partir, com consciência renovada da minha missão de cristão, de sacerdote e de jesuíta. 

Tomei esta missão a sério, não apenas como uma aventura cega. Inseri-me no espírito dos grandes missionários, sabendo da responsabilidade que era e da própria beleza da missão em si.

Com o domínio indonésio não havia guerra no interior mas apenas nas fronteiras, para onde se dirigiam diariamente milhares de homens soldados.

Mas, a invasão alastrou.

O Seminário foi bombardeado e totalmente destruído. Durante este ataque, lembro que estávamos no interior da capela, estendidos debaixo dos bancos, para evitar os estilhaços.

Estávamos persuadidos de que os indonésios iriam respeitar os lugares da Igreja e até tínhamos posto bandeiras brancas, mas mesmo assim fomos bombardeados.

Quando parou este ataque saímos de lá. Instalámo-nos numa casa de um timorense que nos deu guarida, no relevo da encosta da cidade. Começámos a cavar buracos e valas no chão para nos protegermos dos bombardeamentos, que aconteciam diariamente, de canhões, morteiros e metralhadoras.

Foi uma época terrível.

As pessoas quando viram que nem os lugares da Igreja haviam sido respeitados pelos indonésios fugiram todas dizendo: “Vieram para nos matar a todos”.

Nesse preciso momento, a Indonésia perdeu todas as hipóteses de simpatia dos timorenses.
Este ambiente de violência decorreu até ao referendo de 1999, que foi favorável à independência de Timor.

 

 

 

 


O melhor de Timor não é o aparelho de Estado, mas aquilo que está na base da política, o comunitário, a que dão o nome de nação

 

 

 

 

28

Meu ritmo domingueiro passou hoje por visitar uma feira de artesanato que reuniu grupos de mulheres dinamizadas pelo microcrédito. Fiquei supreendido pelas dezenas de pequenas unidades produtivas que transformam a economia em actividade humana e desmentem totalmente os que pensam nesse Estado como algo completamente desarticulado a nível produtivo. O melhor de Timor não é o aparelho de Estado nem as actividades das grandes máquinas do lucro, mas aquilo que está na base da política, o comunitário, porque aqui a nação é bem superior ao tal Estado. Por isso é que a base da independência e da identidade do povo de Timor assenta na Igreja Católica, mas o que não impede imensas organizações de outro cariz de lançarem a sementeira da solidariedade. Confirmei-o, espreitando a obra a Fundação Lafaek Diak, de marca protestante, e até notei que organizações australianas como os maçons de Victoria, aliados aos catolicíssimos "Knights of the Southern Cross", criaram, nomeadamente para o Colégio Salesiano, o programa "Working Tools for East Timor", ajudando a desabrochar esta bela comunidade, conforme documento na imagem.

 

 

29

Há, depois, um povo muito especial, ainda não contaminado por certas facetas da nossa política de homens de sucesso e capaz de pequenos gestos na relação interpessoal. Por exemplo, hoje, perdi o meu telemóvel local, o +670 7432773, e logo a seguir, quando para ele fiz uma chamada, logo o achador se prontificou a vir entregá-lo, coisa que talvez não acontecesse para as bandas dos que para aqui enviam especialistas em engenharia social e "state building", traduzindo em calão muita elefantíase legislativa e criando uma casta de um neocolonialismo anónimo, escondido pelas traseiras da chamada globalização. De qualquer maneira, se um Belmiro de Azevedo ou um Américo Amorim, assumindo a sua dimensão de homens de boa vontade, se prontificassem a vender nos respectivos centros comerciais muitas das produções que eu hoje vi na feira, bem poderíamos ter o capitalismo ao serviço do comércio justo e notarmos que Timor não são apenas as notícias que vendem sobre instabilidade política ou agitações de rua. Até poderíamos mobilizar entidades da nossa sociedade civil que aqui deixaram raízes em imponentes casas nas ruas principais, como a casa do Benfica e do Sporting...

 

30

Por exemplo, ainda há horas, com a ventania que hoje fustigou Dili, caiu uma árvore na rua em que se situa a minha casa, no bairro da cooperação. Garanto-vos que, menos de um quarto de hora depois, os garbosos bombeiros apareceram e limparam a coisa num ápice. Contam-me que no tempo da ocupação indonésia utilizaram outra técnica: derrubaram grande parte das frondosas árvores que bordejavam as principais avenidas da cidade. É por esta e por outras que não apetece comentar a entrevista de Cavaco Silva ao "Expresso". Prefiro acompanhar as eleições nos Açores, mas, segundo diz o noticiário da uma da RTP, que aqui é à hora do jantar, só sairão os primeiros resultados lá pela madrugada timorense



 

19.10.08

 

Aqui vos deixo a nocturna companhia, a minha irmã osga... dita toké

 

 

 

 

 

31

(Toké- lagarto especial do país [deve referir-se a Timor], que dá uns sons que parecem dizer “tó ké”, os quaes repete por vezes, dizendo alguns indigenas que o numero d’essas vezes indica as horas que são; o que é certo é que esse numero é muito variavel, succedendo que emquanto de uma vez repete o som por duas ou tres vezes, de outras chega a sete e mais.) – in Diccionario Teto-Português, autor Raphael das Dores; Lisboa, Imprensa Nacional, em 1907.

 

 

32

Também dito Platydactilus gottutus e Gecko verticillatus,um bichinho que fala sem discurso e nos acorda em som, depois de comer baratas e outra bicharada, sem uso de insecticida. Garanto que o gavião, exilado do Valbom, que costuma acordar ao sons dos galos, antes do combate, não vai cair da tentação de o espantar aqui do quarto, onde, por manobras do meu colega informático, já consigo manejar a net, por curtos períodos, roubando o “wireless” a uma casota vizinha, até repararem a avaria que nos boicota a ligação ao mundo pelos dois mega teoricamente disponíveis. Minha osga favorita ainda há pouco se passeava por cima meu pano tradional de Timor, com as cores verde-rubras, dado que ainda não encontrei uma bandeira azul e branca, pois estas apenas se conservam nas casas sagradas, às quais malai não têm acesso. Vou tentar domesticar este simpático vizinho, primo de uns que encontrei no sertão de Brasília, que me dispensa do uso do mosquiteiro, que é coisa que apenas usarei quando for condenado a comentar a poitiqueirice desse quintal à beira mar prantado que, por estes dias, exportou para a Bahia de São Salvador os principais organizadores da nossa conspiração de avós e netos, com receitas para a crise mundial que não parecem ter sido ouvidas por Bush, Sarkosy e Barroso …

 

 

 


 

20.10.08

Que prazer, cumprir este dever de ser professor! Obrigado, Timor, estou a nascer de novo!

 

 

 

 

33

Hoje foram quatro horas de aulas. Que prazer cumprir este dever, na modéstia destas instalações, onde os contínuos que abrem as portas são os próprios professores, onde os contínuos que preparam as salas são os próprios alunos e professores, onde a paixão de aprender e ensinar se vive em comunidade, sem que tenhamos de receber lições abstractas de gestão motivacional, emitidas pelo tecnocrata trinta e três, da avaliação três mil e quinhentos, vindas de quem não faz da vida de professor uma missão de amá-la ou largá-la. Que prazer cumprir este dever inscrito na ciência dos actos do homem enquanto indivíduo, expatriando-me nas raízes da minha própria civilização e confirmando que todas as civilizações verdadeiramente universais são filosoficamente contemporâneas. Que prazer não ensinar nada de novo, mas repetir parcelas de aulas de mestre Platão e sugerir as leituras de mestre Aristóteles, especialmente para povos que também tiveram Platão e Aristóteles, mas aos quais apagaram a memória. Que prazer dizer nação como comunidade das coisas que se amam, dizer Estado como libertação, onde o monopólio da violência legítima ainda sonha coincidir com a justiça. Que prazer dizer que a democracia é aquele regime que permite golpes de Estado sem efusão de sangue, como ensinava Karl Popper, mesmo quando as identidades partidárias ainda estão ao rubro, à procura da necessária institucionalização dos conflitos. Que prazer, pensar que vou ensinar, quando afinal apenas me ajudei a aprender. Sabe tão sentir a escola como espaço de liberdade e correr nos intervalos para a sala colectiva dos professores, preparando os papéis, com pensamento e entusiasmo, com honra e com inteligência. Que prazer a liberdade de ensinar e de aprender!

 

PS1: Já sei dos resultados das eleições regionais dos Açores. SMS amigo logo mos comunicou, para além de me enviar esta reflexão sobre a soberania viral dos meus actuais vizinhos. Para quem “in loco” sentiu a pré-campanha, nada de estranhar. Louvo a parte da nova lei eleitoral que reforçou o pluralismo partidário. Um abraço especial para o deputado do Corvo!

 

PS2: Nem reparei, como no silêncio destas noites tropicais, passei horas e horas a fazer a revisão final do texto da minha “Crónica do Pensamento Político”. Remeti-as já hoje pela DHL para Lisboa e não tenho onde contabilizar os custos individualizados da transferência, equivalentes a, pelo menos, seis almoços individuais no principal hotel cá da capital. Não me queixo, nem destes magníficos quartos de dois metros e meio por três metros e vinte desta residência de campanha. Missionário tem prazer de cumprir sua missão, mesmo que ela não entre na ficha dos analistas de sistemas dos burocratas e avaliólogos reinóis.

 


 

21.10.08

Longe dos trabalhos de casa para a reeleição, do respeitinho ao chefe, do leitão à Bairrada e do camarão de Espinho

 

 

 

 

 

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Acordo cedinho, pelo nascer do sol, percorro as ruas fervilhantes do nascer do dia, não leio jornais de Lisboa, estou farto da literatura de justificação dos ausentes-presentes, a que os que restam chamam memórias, a fim de promoverem um revisionismo da história, como se eles pudessem fazer interpretação autêntica dos factos em que foram actores, na maior parte dos casos, secundários, onde apenas soletraram guiões que outros produziram. Não comento as opiniões de Marcello Caetano sobre Freitas, Adriano e Kaúlza, nem as respostas que alguns deles vão dando contra Marcello e uns contra os outros. Portugal devia abrir as janelas e as portas, limpar o caruncho e o bolor e voltar ao navegar é preciso, mesmo para aqueles que têm de se submeter para sobreviverem, porque sempre devem lutar para que possam continuar a viver. Prefiro as ruas de Dili pela manhã e recordar o que ontem transmitia sobre a política, esse agregado humano superior à casa, onde o chefe político não é o chefe da casa, onde inventámos o Estado para deixarmos de ter um dono, um “dominus”, um “patrão”, um “oikos despote”.

 

 

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Prefiro recordar a velha história da doença da democracia, quando, desesperados, regressamos ao neofeudalismo de muitos donos, de muitos patrões, de muitos déspotas, de muitos protectores, de muitas compras do poder, de muitas cunhas, de muitos padrinhos e de intricáveis redes de micro-autoritarismos e sociedadezinhas de corte. Prefiro esquecer o quintalinho da Europa, de mão estendida à espera das migalhas da subsidiocracia e da mesa do orçamento. Prefiro um café pela manhã diante da ilha do Ataúro, prefiro passear ruas que ainda têm nomes como Jacinto Cândido, padrões com frases de Camões e edifícios com as cinco quinas. Prefiro não reparar nos recados que Jaime Gama deu há bocado aos senhores deputados do PS, porque, para serem reeleitos, devem fazer trabalho de casa, com leitão à Bairrada e camarão de Espinho. É bem mais interessante repararmos que para chegarmos à política, temos que sair do espaço doméstico da economia e entrarmos na praça pública pelo discurso, que em grego se dizia “logos”, isto é, razão, agregando-nos em tornos dos símbolos maiores que nos dão pátria, desde um Estado representativo, onde o chefe não é patrão, a uma religião secular que promova a comunidade entre as coisas que se amam, onde o primeiro pode ter poder, desde que assente na autoridade da segunda, porque autoridade é coisa que vem de autor, de fundador, da raiz donde brotamos e crescemos, a caminho das saudades de futuro.

 


 

22.10.08

Só por dentro das coisas é que as coisas realmente são

 

 

 

 

 

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O mais habitual nestas paragens, onde o normal é haver anormais, prende-se com as repentinas e frequentes quebras de fornecimento de energia eléctrica, não tanto pela ausência de ar condicionado, dado que a sombra ou a brisa a compensam, quanto, sobretudo, pela impossibilidade de funcionamento dos computadores, no acesso ao resto do mundo, com a inevitável “jet-rooter”. E não há pilhas de “backup” que aguentem esta sucessão de imprevisibilidades, a que só a sonhada barragem de Laga pode pôr cobro. No entanto, é comovente notarmos como, nos próprios bairros degradados, que estão bem próximos do circuito da barra que vai do City ao BNU, há inúmeros cafés e lojas com acesso à net, onde jovens passam horas e horas.

 

 

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Infelizmente, também aqui aterram algumas aves de arribação com ar de intelectuais desempregados pela demografia das nossas veiga-simónicas reformas de ensino, das tais que não estudaram previsões demográficas e que para o exótico, do pretenso veni, vidi, vinci, pensam poder vender o peixe estragado de respectivas retóricas, gramáticas e didácticas, que julgam ser “artes liberales”. Mas acontece que, por cá, são mais precisas “artes bona” dos latinos, as tais que são passíveis de conciliação com uma adequada “ratio studiorum”. Também, infelizmente, de vez em quando, lá temos que aturar alguns subprodutos das entidades herdeiras das faculdades de teologia, transformados em profissionais da intriga, dado que pensam poder interferir nas teias da partidarite dos mauberes, como se eles fossem parvos e não soubessem distinguir o trigo do joio. Não faltam sequer candidatos a espiões desempregados, formados em “copy and paste” de pós-colonialismo e artigos de divulgação das “Twin Towers”, que nem sequer respeitam democracias como esta, feitas de milhares de mortos, em nome da honra e da pátria. Entre muitos exemplares de agrobetos e de revolucionários frustrados, encontro, felizmente, uma maioria de amantes deste lugar, portugueses à solta e homens de boa vontade, convertidos à alma destas paragens, com destaque para os militares da GNR e da PSP.

 

 

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Há, sobretudo, uma enevoada metafísica nestes orientais trópicos, há pedaços de espírito que vão dando contornos às coisas, neste saudosismo dos antípodas, onde Pascoaes pode ser Pessanha e Pessoa volver-se em Wenceslau, para não falarmos em engenheiros agrónomos surrealistas que passam a Cinatti. E todos os dias, há um dia novo, uma noite de sonhos sem pesadelos, há palmares e mangueiras bordejando casas que são casas, nesta cidade de muitos fios ostensivos, motoretas sempre em bulício e essências que podem realizar-se pela existência, a dos homens concretos de carne, sangue e sonhos. Porque as essências apenas se objectivizam espiritualmente, quando as subjectividades pegam na alma e a deixam penetrar nos corpos, compreendendo. Porque só há almas quando elas se religam a um corpo, porque todos os transcendentes só o são quando situados pelos exercícios espirituais. Porque há um idealismo materialista, ou um materialismo idealista, aquele que diz, da natureza das coisas, que só por dentro das coisas é que as coisas realmente são. Continuo estoicamente panteísta.

 

 

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Aqui me esqueço desse estado a que chegámos, com o Mário Lino e o Teixeira dos Santos a fazerem o trabalho sujo do insulto à líder da oposição, dessse estado a que chegámos que pensa que se escreve razão por entre tantas linhas tortas de razão de Estado, perdido que está pelos meandros do poder pelo poder. Por mim, confesso que, aqui e agora, estou cada vez mais do outro lado, que é, desses lados, não querer ter lado nenhum. Que é estar farto desses trejeitos dos que torcem e torcem, vergando, porque apenas têm medinho do quebrar, preferindo o jogo carreirístico dos que pensam que assim vergando não perdem o investimento que estão a fazer pelas vidinhas, saltando pocinhas e evitando as pingas de chuva, julgando que, dessa forma, não vão molhar-se e alcançar o sonhado lugar ao sol. Prefiro saudar o missionário franciscano aqui da ilha, vindo da Beira profunda, que vai de motoreta de aldeia em aldeia, escrevendo divino por tantos caminhos tortos e lodosos da terra dos homens. Por isso vou continuar a tentar escrever, ao sabor da pena, o que me vem à mente, mesmo que seja a quente, para os detectores de ferro frio nos inventariem no regaço das respectivas regulamentarices…



 

Contra esse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira

 

 

 

 

 

 

 

 

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A verdadeira mãe da república do sol nascente é a Justiça. Porque foi pelo Direito que os timorenses conseguiram vencer a força. Por outras palavras, a independência conquistada é o resultado da aplicação dos princípios do Estado de Direito universal, tal como delineado por Kant em 1795, no seu folheto dito sobre a paz perpétua e que alguns ainda não conseguem vislumbrar como projecto de protecção dos mais fracos contra a violência dos mais fortes que querem ser potências. Por outras palavras, só pelo Direito podemos enfrentar a lei da selva dos Estados-Lobos-dos-Estados e evitar que, neste oceano da globalização, os peixes grandes comam os pequenos.

 

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Não diremos, como alguns nostálgicos do socialismo estatista, que a presente crise exige mais regulação leviatânica. Diremos, como liberal que continuamos a ser, que a crise desta anarquia predadora precisa de um Estado de Direito universal, que ela precisa não de uma federação de potências estatizantes, com o consequente facto da hierarquia das forças, mas de uma república universal, que, segundo Kant e Arendt, sempre foi o exacto contrário do Estado universal. Só assim nos livraremos da presente “animal farm”, onde os Estados são todos iguais, mas há alguns desses animais que são mais iguais do que outros, promovendo um neofeudalismo nesta anarquia ordenada, com a consequente governança sem governo de uma pilotagem automática a que chamam globalização.

 

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Mesmo as boas intenções onusianas de governança global podem cair na teia de uma intrincada burocracia, desse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira, e assumir a imagem de uma vasta rede de aparelhos que se instala, como fortaleza exterior, num qualquer território, com as suas tendas de ar condicionado semeando, pelos pretensos desertos do vazio de política, a cartilha do “nation building” e do “state building”. Porque se não atenderem às raízes das identidades dos vários povos, tais aparelhos podem assumir uma feição neocolonialista, mesmo que assumam a bandeira do anticolonialismo. Já conheci alguns destes agentes lá pelas Lisboas, sempre em turismo de comissão em comissão, vendendo um qualquer subproduto ianque de exportação, e, por cá, apenas posso fazer as observações permitidas pelas cláusulas do meu contrato de agente de cooperação do Estado português, coisa que não me impede a liberdade académica, o universalismo e até um mínimo de patriotismo científico.

 

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Apenas assinalo que, por cá há muitos amadores desse ensaísmo de certos conceitos abstractos, assentes nos tais “compounds” e que raramente ousam colocar os pés no tal caminho que se faz caminhando e onde é preciso dar tempo ao tempo. Não há boa ideia de república universal que resista a sacristães, sargentos e cipaios verbeteiros. Colonialismo não é apenas o chicote de capataz, mas também o engraxar das botarras do feitor, com alguns intelectuais caindo da tripeça, numa qualquer escola de passarinhos, que se julgam importantes só porque têm mobília de pau preto e secretários a quem ditam actas que ninguém vai ler. Há pesos mortos de atavismos plurisseculares, marcados pelo regime dos irmãos inimigos que continuam a asfixiar muitos sonhos.

 

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Por mim, prefiro ir além do saber do fazer e do próprio saber-agir e continuar a procurar o saber pelo saber da velha Sofia, com muitaPrudência e imensa Arte, ou Técnica. Há sempre o “consenso dos que pensam de forma racional e justa”. Porque o homem tende para o infinito sempre que se descobre finito e sabe que a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza. Por isso, ontem mesmo, lancei o primeiro blogue de turma, aqui na UNTL, dito “pensar direito”.



 

23.10.08

 

 

O gnosticismo desenvolvimentista, a concepção ferroviária da história, o pronto-a-vestir e de como as caricaturas de Descartes enjoam em Timor

 

 

 

 

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Por estas ruas, praças, corredores e salões, muitas vezes me recordo das teses de Clifford Geertz (1926-2006), o autor de Peddlers and Princes, de 1963, e de Negara. The Theatre State in Nineteenth Century Bali, de 1980, onde criticou alguns exagerados ideologismos provindos da concepção weberiana de Estado, os tais que reduzem o político ao monopólio da violência legítima e consideram a dimensão simbólica da política como mero aspecto lateral. Ora acontece que a política é sempre um trabalho simbólico, onde são fundamentais as teatralizações, as cerimónias e os rituais, pelo que existe uma concepção política oculta que marca o centro político de qualquer sociedade organizada de forma complexa. Porque há, sucessivamente, uma elite na governança e um conjunto de formas simbólicas que exprimem o facto de ser aquela que na verdade governa, através de inúmeros sinais de ostentação de poder que marcam o centro. Porque a política é a arena onde se manifestam de forma mais clara as estruturas da cultura, isto é, o conjunto das estruturas de significação pelas quais os homens dão uma forma à sua experiência.

 

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Infelizmente, não me parece que, com tanto enviados pela governação global para estes territórios, tenha havido o cuidado em prepará-los em matérias de antropologia básica, ou até de simples cultura geral. O gnosticismo desenvolvimentista da concepção ferroviária da história continua a querer obrigar muitos povos a um percurso tipo pronto-a-vestir, decretando-os como não desenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, e condenando-os a percorrer as mesmas linhas e as mesmas estações que outros já abandonaram. Talvez para lhes poderem vender equipamentos mentais obsoletos ou muito pessoal em via de inetegração no quadro de excedentes.

 

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Aqui, onde há fortes afectos de identidade nacional e radicadas sementes comunitárias, o modelo de “state building”, que a super-estrutura da governação global está a disseminar sem ordenamento, tem muitos segmentos de traduções em calão de manuais de aparelhos de poder, importados dos grandes centros comerciais da consultadoria internacional. É por isso que me sinto feliz por não ser um desses peritos de grande-hotel em missões de “copy and paste”, tal como já não tenho idade para voltar a ser assistente universitário à procura de primitivos actuais para uma tese de mestrado ou de doutoramento. Por isso compreendo bem como alguns bispos cá da ilha, em tom metafórico, trataram de denunciar certas caricaturas de Descartes que querem modernizar Timor à força de abstracções. E admiro cada vez mais o Professor José Mattoso. Que não veio para cá em videoconferência…

 

 

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Bastava que todos estes agentes da governação global atendessem a pequenos estudos sobre a simbólica da política, da religião e do direito, que assumissem a humildade de largar certo capacete neocolonial, usado por tantos pretensos benfeitores internacionais à procura de ficha curricular. Acredito que os timorenses não vão enfiar algumas destas carapuças, porque o verniz estaladiço quebraria no “day after” ao do embarque desses profissionais dos reformismos tecnocráticos. Por mim, apenas me sinto feliz por aqui estar a ensinar e aprender coisas filosofantes das “artes bona”, pouco mensuráveis pelas lupas que apenas procuram utilidades.

 


 

27.10.08

Neste acordar do Oriente

 

 

 

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Este acordar do Oriente, que acontece na precisa altura em que a noite começa a cair em lisboa, nove horas mais cedo, obriga-nos a curiosas mnemónicas, como a de somarmos três horas às que aparecem no mostrador do relógio, diminuindo-lhe depois as doze que perfazem meio dia. Mas esta não sincronia tem, pelo menos, a vantagem de relativizarmos as novas que nos chegam lá dos reinóis, com Sócrates em mangas de camisa a aparecer em mangas de camisa, depois de vermos uma missa em tétum, ao som dos Abba, o que nos permite a libertação pelo “zapping”. Aliás, o telejornal que nos é transmitido à hora do jantar é o portuense Jornal da Uma, com pronúncia à moda do Norte, relativizando ainda mais os “faits divers” dessa quase pré-campanha. Os problemas que aqui se vivem, infleizmente, não se resolveriam com a exportação do Magalhães nem com a varinha mágica do propagandismo, com os habituais golpes de “imagem, sondagem e sacanagem”, para citarmos Manuel Alegre.

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Nesta república do sol nascente, mais de 90% dos “inputs” do respectivo orçamento de Estado vêm das receitas petrolíferas e o Estado, para assegurar o monopólio da violência legítima, viu-se forçado a recorrer à cooperação internacional, em matérias militares e de segurança. Por aqui houve séculos de colonização e cerca de um quarto de século de ocupçaão militar estrangeira. Logo, vivo entre um povo onde nenhuma família escapaou a um massacre, dado que cerca de duzentos mil timorenses foram assassinados por causa de uma abstracção chamada guerra fria e de clamorosos erros de cálculo da diplomacia norte-americana e europeia e das muitas boas intenções descolonizadoras e integracionistas de Lisboa, quando ainda tinha manias de ser capital do império

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Logo, seria estúpido, depois de tantos horrores, procurarmos a contabilidade dos culpados e inocentes, dizendo que o heróis foi Maggiolo ou que o traidor foi Lemos Pires, para não esmiuçarmos os passos dados por Costa Gomes ou Almeida Santos. Mais do esquecer, importa pensar e ler o Professor José Mattoso. Daí que, por respeito pela independência timorense e, sobretudo, por respeito aos mortos, não comente as declarações cruzadas de Xanana, Alkatiri e Horta, todos eles à procura da democracia como institucionalização de conflitos. Mais irresponsável são tiradas vindas de doutos professores, propondo o desembarque nesta ilha de cortadores de cabeças, como se os duzentos mil mártires não fossem suficientes para a garantia do direito à pátria. Infelizmente, as velhas marcas teóricas que os pretensos realistas tecem, apenas nos devem merecer o nível do desprezo, especialmente quando não se importaram em receber chorudos subsídios para exportaram para este território projectos de reforma. Quando pensamos nesta ilha sagrada pelos corpos mortos dos resistentes, temos, pelo menos, o dever de respeitar a dignidade e a honra.

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A mais recente crise dos preços do petróleo, dos bens alimentares e os sobressaltos da geofinança apenas têm demonstrado que o mundo viveu hipnotizado por uma vaga ideia de globalização e que a presente encruzilhada exige uma espécie de “new deal” universal que não se confunda com a chamada teologia de mercado em que se enredaram quase todos. Não apenas os neoliberais e neoconservadores, mas também póscomunistas, pósfascistas, democratas-cristãos e sociais-democratas. Por outras palavras, a ilusão do fim da história foi, como diz o ditado português, chão que deu uvas mirradas.

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Talvez importe sublinhar que só novos paradigmas conceituais podem permitir captar e compreender as efectivas circunstâncias de tempo e de lugar que marcam as presentes coordenadas da navegação humana. E daqui, da mais recente república asiática, na ribeira da Oceania, podemos dizer que todos temos que nos expatriar nas próprias raízes do político. Porque, se como ocidentais, percorrermos Platão e Aristóteles, podemos concluir lugares comuns para o urgente diálogo de civilizações, porque todas elas são filosoficamente contemporâneas. Pelo menos, podemos extrair da história comparada uma lição: os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque a política é superior à economia, tal como é superior ao Estado e ao próprio Mercado.

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Volta a ser a hora de recuperarmos o conselho de Rawls e Habermas que, em 1995, advogavam o regresso à lição de Kant, de dois séculos antes, esse subsolo filosófico do Estado de Direito universal que nos permite superar Vestefália dos Estados-Lobos-dos-Estados, tão selvagem quanto a sociedade de casino e as bebedeiras de Wal Street. Basta recordarmos que coisas como o branqueamento de capitais, o financiamento do terrorismo e a bandocracia da corrupção deixaram cogumelos virais no próprio coração do sistema financeiros internacional. Um processo que, ao mesmo tempo, gerou inúmeros micro-autoritarismos estatais, subestatais e supra-estatis, com as suas sociedades de corte, promovendo a fragmentação e a captura dos tradicionais Estados que, algumas vezes, não passam de meras presas de grupos de interesse e de grupos de pressão.

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Tal como Kant propunha, importa darmos de novo política à chamada governação global, para que ela deixe de ser mera navegação à deriva e uma consequente governança sem governo, onde as pilotagens automáticas e as lideranças políticas de fantoches e homens de plástico parecem não assumir a urgente lealdade básica face aos valores universais da democracia. A mais urgente das regulações está na recriação de um modelo de Estado de Direito universal que não se confunda com a hirarquia das potências que brote de superpotências ou desse seu sucedâneo a que chamamos G7.

 


 

28.10.08

Da resistencia que foi ate a independencia que tem ser

 

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Ontem ao cair da tarde fui visitar o meu querido Padre Felgueiras, acompanhado pelo Padre Martins. Foi um falar de memorias para futuro, da resistencia que foi ate a independencia que tem ser, liberta dos fantasmas do Estado Falhado. Porque nada do que e humano nos pode ser alheio. Ou de como Cernache renasceu aqui em Dili. Porque a regulação que nos falta não é a que, à maneira do velho verticalismo hierarquista dos estadualismos de outrora, estabeleça uma federação de potências com um rolo unidimensionalizador, ao estilo de um qualquer simulacro de Estado Mundial, herdeiro dos erros das monarquias universais, onde os conselhos de ministros passem a ser os sucessivos festivais de cimeiras, hierarquicamente dependentes da autorização prévia de prévias minicimeiras dos controleiros que se pensam superpotentes.
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Porque esta criminosa utopia imediatamente desencadearia a revolta das principais vítimas do processo, os chamados povos mundos do mundo que tentariam o desespero de novas ideologias de lutas de classe. O que nos falata é acabar de vez com a Razão de Estado e voltarmos a peregrinar os princípios de um Estado de Direito universal, capaz de evitar uma qualquer nova “animal farm”, onde sempre haverá Estados todos iguais, mas onde alguns serão sempre mais iguais do que outros. O que nos falta é a passagem da Razão de Estado ao Estado-Razão e a um novo conceito de pluralismo político que responda à multiplicidade de pertenças. Basta que os homens, depois de libertados, queiram construir um espaço de participação para homens livres.

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As experiências de liberdade, de democracia e luta contra a doença e a pobreza, desencadeadas por alguns Estados Continentais, como o Brasil, ou os esforços de coesão e de solidariedade assumidos pela União Europeia têm treinado e praticado sistemas de solidariedade nas respectivas zonas de cidadania e apenas esperam que encetemos um esforço mais amplo de regulação global, onde a democratização e a juridificação sejam caminhos paralelos.

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Por outras palavras, a política externa da União Europeia pode ser bem simbolizado pela recente Casa da Europa em Dili. Um estímulo para que muitas entidades políticas como esta república do sol nascente possam ter um melhor Estado que não seja apenas uma governança mais tecnocrática, mas sobretudo um melhor Estado que dê força ao sentido comunitário das sociedades, isto é, do elemento comunitário dos Estados. Para que diminuam as gorduras adiposas dos aparelhos de poder e para que a pluralidade de pertenças dos indivíduos, libertados e livres, admitam a urgente pluralidade de redes políticas, onde espaços supra-estatais sirvam de reforço para as próprias liberdades nacionais, sobretudo dos pequenos Estados que admitam um Estado-Razão superior à Razão-de-Estado.

 

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Foi este o sonho dos pais-fundadores da Europa política supra-estadual. Pode ser este o principal exemplo que podemos espalhar pelo mundo, se soubermos e quisermos uma Europa que seja mais aprofundada e não apenas mais alargada. Daí que talvez seja de recuperar algumas das lições de certo liberalismo ético, como o de John Locke, quando defendia que a separação de poderes deveria incluir, como elemento vital, um “confederative power”. Os portugueses de antanho chamaram, a esse sonho, abraço armilar e talvez os povos mudos do mudo voltem a exigir que a Europa dê esses novos mundos ao mundo.

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Foi apenas isso que vim aprender a esta ribeira da Oceania, diante da sonhada terra austrália do Espírito Santo, na procura de um novo império anti-imperialista, o do poder dos sem poder. Que a Europa volte a ser uma potência do espírito e da moral e que, da respectiva conduta, se possa voltar a extrair uma máxima universal.



 

29.10.08

Aristóteles em timorense, contado aos povos sujeitos a governos de espertos

 

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O hoje, de aqui e agora, já depois de tomada a bica, ainda é o ontem de Lisboa, e lá me vou disciplinando neste beneditino exercício de preparação das aulas, depois de ontem termos introduzido o tópico das relações do direito e da força. Porque se Hobbes, com o seuLeviathan, parece sedutor, para quem anseia pelo monopólio da violência legítima, também Kant, com um Estado de Direito universal, a proteger os mais pequenos, evitando que os peixes grandes os devorem, tem aqui um cunho eminentemente realista e libertador.

 

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E lá vou lendo Aristóteles em timorense, tal como poderia ler o mesmo em Confúcio. Porque, aqui, no princípio, edificou-se uma casa, donde saiu uma geração cada vez mais numerosa, Uma-Fukun, o mesmo que nó ou origem, tal como Santo Isidoro dizia de natio, que também vem de nascendo. Aqui, foi ao filho primogénito dessa casa que se atribuiu o título de Liurai, isto é, de o mais do que a terra, também ditoNa’ai em Mamba, tal como o Deus único dos missionários cristão se passou a chamar Na’ai Maromak.

 

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Também como em Aristóteles, as várias aldeias se federaram e, acima delas, surgiu uma acrópole, com um Uma-Fakun a superiorizar-se aos vários chefes de aldeia, os Datos. Só que, havendo um governo por conselho, também se institucionalizou o Nahe Biti Boot, com o Liuraicom os seus Datos, chamados Liana’in, os mais velhos, detentores da palavra…

 

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E a história continua, em timorense, como em grego, como em latim, como em português arcaico, do tempo das aldeias comunitárias, as efectivas raízes do próprio Estado, entendido, como um concelho em ponto grande, conforme ensinava o nosso Infante D. Pedro no Livro da Virtuosa Benfeitoria, o primeiro tratado político pensado e escrito em português. Por outras palavras, o que vos conto, resulta do que tenho aprendido de alguns trabalhos dos meus alunos Liana’in, os tais que bem poderiam ter sido ouvidos para a institucionalização constitucional da democracia dos timorenses, onde uma segunda câmara bem era necessária, porque ela já existe realmente, quase de forma clandestina, porque nenhuma decisão política fundamental é aqui tomada sem prévia audição dos senadores.

 

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Porque se o costume não é fonte de direito novo, continua a ser o principal fornecedor do direito eficaz e válido, mesmo quando não está formalmente vigente. Sobretudo, nos espaços praeter legem e como critério de juridicidade na aplicação do direito. Porque só com o costume se pode evitar a pior das heranças da colonização e da ocupação militar, aquilo que Hannah Arendt qualificou como ogoverno dos espertos. Isto é, a aplicação arbitrária da elefantíase legislativa do direito formalmente posto na cidade. Onde há sempre alguns que são mais iguais do que outros e uma lei para os amigos e outra para os inimigos e dissidentes.

 

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O exagero legiferante, sobretudo o das traduções em calão, sempre levou a que houvesse uma enorme distância entre o direito formal e a vida, porque os administradores podem seleccionar arbitrariamente, como o velho déspota, as leis e regulamentos convenientes. E o pior é quando o mesmo administrador se assume como o príncipe absolutista e determina que não está sujeito à lei que aplica aos súbditos, colonizados ou ocupados (princeps a legibus solutus). Ou então, quando considera lei tudo o que ele diz (quod princeps dixit legis habet vigorem), mandando, passando a capataz de um poder sem controlo. Bom dia, Lisboa. Também por aí, na ex-capital do império, há muitos destes inimigos do Estado de Direito, muitas almas de capataz, muitos candidatos a feitores dos donos do poder que não são legítimos. Chegou a hora de expulsarmos os vendilhões do templo do povo.

 


 

30.10.08

Relendo o sentido para a vida de Baden Powell

 

 

 

 

 

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Há dias conversava com um jovem resistente, com provas dadas na libertação, que me contava como aprendera com  o Padre Felgueiras o sentido da palavra,  quando ela passa por formar um homem na raiz da sua dignidade e na procura da conquista da liberdade. Apenas se me reavivaram as memórias da adolescência, quando vivia uma crise de fé, da qual ainda não saí, e quando também ele nunca me falou de religião. Mandou-me, pelo contrário, ler Baden Powell e, há dias, ainda me confirmava que este grande paradigma só foi possível por causa do diálogo de civilizações a que os trópicos são propícios. E lá acrescentei Kipling à lista, porque as coisas antes de o serem já realmente o são, quando nos marca a imanência de só por dentro das coisas as coisas realmente serem.

 

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Esse jovem resistente lá me confirmou que foi graças à visita de João Paulo II que a resistência passou da mera guerrilha, de menos de uma centena de activistas na montanha, para a luta política global, a partir das redes de clandestinidade, ateando uma consciência de tiranicídio que passou as fronteiras de Timor Leste e penetrou no coração da própria Indonésia.  E lá fui recordando como aprendi Timor por coração e alma. Com as histórias e teorias que me foram transmitidas por Luís Filipe Reis Tomás ao vivo, ainda antes de 1974. Com os longos contactos que, depois dessa data, mantive em Lisboa com o falecido Moisés Amaral, que me levou ao Jamor e às pensões do Cais Sodré, onde sofriam os refugiados que se assumiam como mauberes. Com o hiperactivismo do Miguel Anacoreta Correia e até com uma incursão que fizemos a uma reunião de uma internacional partidária influenciada pelo arquiduque Otão de Habsburgo, um dos líderes do grupo de pressão indonésio na Europa, tentando dar notícia dos massacres e do potencial democídio. Em vez de cedermos às tretas do realismo da guerra fria que queria uma província católica num dos maiores Estados islâmicos do mundo e onde o próprio Murdani metia cunhas a Lisboa para poder fazer uma peregrinação a Fátima…

 

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Hoje, ao contactar com os primeiros frutos desta luta pela libertação, que ainda vai continuar por décadas, mas agora nas vias da institucionalização do poder, quando a mesma puder ser efectivamente protagonizada pelos próprios timorenses, apenas me apetece pedir aos que sempre foram simpatizantes, amigos ou militantes da causa que dêem tempo ao tempo e que, com humildade, tentem compreender que, por cá, há outro conceito de tempo bem diverso do “stress” do chamado “time is money”, o tal que embebedou a globalização, sobretudo a da geofinança. É preciso que o fruto libertador amadureça, enraizadamente, que a árvore da liberdade possa estender os seus ramos a uma terra sagrada.

 

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Nunca esqueçamos a bela imagem de Jean Bodin, quando, referindo-se à dimensão óptima das repúblicas, dizia que tudo dependiam da alma que as fazia mover, coisa que que é a mesma coisa num elefante ou numa formiga, porque, independentemente do tamanho, ambos são dotados do tal “animus” que os faz movimentar como um todo, quando conseguem harmonizar as respectivas contradições. E a paz pelo direito e o governo pelo consentimento nunca aconteceram num ambiente de paz dos cemitérios. Só os valores universais da democracia podem fazer com que as divergências e convergências se convertam numa emergência libertadora, a tal complexidade crescente, onde na fase superior, sem que se eliminem as anteriores divergências e convergências, se procede a uma adeuada institucionalização dos conflitos, onde, pelos lugares comuns, se torna enriquecedor o diálogo entres adversários que não são inimigos. Vou reler Baden Powell. A coragem treina-se e pode mover montanhas.




 

31.10.08

Entre a memória do sofrimento e as saudades de futuro

 

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Depois de quase dois dias sem ligação à Internet, lá voltei ao mundo, graças ao engenheiro paquistanês que lá conseguiu refazer a ligação “wireless” ao canal da embaixada. Ao fim da tarde, foi uma breve viagem aqui à beira mar, mesmo ao lado do farol, onde se avistaram duas baleias passeando-se pela enseada de Dili.  Apenas digo que, tal como em Brasília, o meu ritmo de escritura e de investigação adequa-se ao trópico, sendo mobilizado para a elaboração de textos de apoio aos alunos. Por exemplo, nestes dias, refiz o esboço de tópicos políticos, como os que apresento na coluna à esquerda, neste blogue, e irei fazer uma pequena publicação sebenteira aqui em Dili, onde há grande imaginação criativa nestas matérias de edição electrónica de textos.

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Com efeito, uma nação em construção é um desafio constante à criatividade e permite alguma metafísica, a quem se deixar enredar por esta natureza das coisas e ainda tiver o encanto da visão do paraíso, sem estar preso a utopias do passado. Basta sairmos da cidade e percorrermos um pouco do espaço rural, para podermos compreender como, por aqui, há imensas saudades de futuro e uma juventude que coloca Timor Leste no pódio da taxa de natalidade. Talvez pela memória do sofrimento, onde a liberdade passa a ser uma conquista.

 

PS: Só hoje reparei que ainda tinha marcado no blogue a hora lisboeta. Aqui são sempre mais nove horas. A correcção passa a ser automática.

 

 


 

2.11.08

Vou até Motael num ir e num voltar

 

 

 

 

 

74

Acordo, manhã de domingo, abro a televisão. está a dar o jogo das nove da noite de sábado em Portugal, tomo o pequeno almoço com o pão comprado no turco, ainda ontem, depois de uma volta de bicicleta entre Motael e o supermercado Lita, depois de saber que não havia dinheiro no único multibanco cá de Dili, o BNU, que o barco para Ataúro só vai uma vez por semana, que mesmo em dia de feriado cristão quase todas as lojas de comércio estão abertas, porque os donos são quase todos paquistaneses, chineses e de Singapura, depois de também saber que a cimera ibero-americana do Salvador serviu para Sócrates servir de caixeiro-viajante do Sá Couto do Magalhães e do Tsunami, depois de saber que a tropa lá dos reinóis faz revoluções em jantaradas, depois de saber que os professores continuam contra a Maria de Lurdes, especialmente contra o seu heterónimo dito Walter Lemos.

 

75

Acordo manhã e domingo e recordo que ainda ontem ao fim da tarde, sentado num sofá do Hotel Timor, estava, mui calma e serenamente o ex-chefe do governo Alkatiri, tomando cafezinho com a filha, a netinha e meia dúzia de amigos e amigas, assim se confirmando como a democracia é real nestas paragens e que a alternância custa, mas é efectiva. Por mim, que ainda não consegui compreender por dentro as divisões políticas entre timorenses, quase me apetece dizer que, entre os hortistas, os xananenses e os alkatirianos, todos eles irmãos, nascidos do mesmo nó de gerações, é mais o que os une do que aquilo que os divide. Uns são mais voltados para uma racionalidade finalística obtida entre os modelos moçambicano-europeus, outros, mais marcados pelos modelos internos do compromisso, mais orientalistas, mais racionais-axiológicos. Se os primeiros preferem o “state building”, já os segundos tendem mais para o “nation building”. Os dois são necessários a a alternância se for “à cabo-verde” pode ser o sal da terra.

 

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O barco do Ataúro já chegou. Lança fumo negro demais para um observador ecológico. A lua estava estirada com uma estrela ao lado. As palmeiras elegantes ao sabor da brisa. Não há polícias nem militares nas ruas. E em dia de feriado, a cidade de Dili fica quase deserta. Uns foram para os distritos e as estradas são más. Os ditos cooperantes voaram para Bali e para Darwin. E eu fiquei por cá entre as praias do Sul e as praias do Norte, usando a bicicleta antes de o sol abrasar. Estamos no fim da primeira parte do jogo do Sporting. O sol já levantou em força. Vou até Motael num ir e num voltar.

 

 


 

4.11.08

Há dias em que o tempo que passa não me dá tempo para que o tempo de espírito permita que o pensamento se desvele

 

 

 

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Há dias em que o tempo que passa não me dá tempo para que o tempo de espírito permita que o pensamento se desvele e se transforme em discurso. Porque, aqui, onde há Internet, ele é como aquela perspectiva do Gato Fedorento sobre o discurso de Marcello, sobre as coisas que há mas não há, porque ela há, mas pode não aparecer, talvez por causa de um acaso. Daí que tenha sido surpreendido pela nacionalização do BPN já muito depois do facto consumado e um pouquinho antes de Cadilhe se manifestar contra aquilo que Rangel do PSD qualifica como emergência do capitalismo de Estado. Prefiro, continuar a repetir o que Ramada Curto, o nosso socialista verdadeiramente histórico, dizia das empresas em Portugal: querem a nacionalizações dos prejuiízos para que, depois, se chegue à privatização dos lucros. Tenho a impressão que o assunto nada tem a ver com o nome de um ex-secretário-geral do PSD, de um ex-secretário de Estado de Cavaco e de muitas “connections”. Apenas coincidências. Não se passa nada. Não acredito em bruxas, mas que as há, las hay. Prefiro estar atento à eventual mudança do mundo, seja quem for o eleito para a Casa Branca, embora as novas do que vier a acontecer na América já aqui cheguem quando o dia de hoje já for, aqui, amanhã.

 

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Isto de falhar constantemente a Internet, mesmo que o sinal “wireless” seja excelente, faz com que muitas emoções e impressões se racionalizem em demasia.  Por exemplo, a emoção que senti, numa breve visita aqui dita aos distritos, isto é, numa saída de Dili, com os campos ditos de Mártires da Pátria. Com os campos santos das valas comuns dos que não cederam à ocupação e que, pelo menos, merecem respeito, sem que emitam os habituais comentários dos que tratam de mortos como uma contabilidade securitária, onde espiões e estrategistas se dizem e desdizem em pretensas ciências certas que nunca acertam, só porque esquecem que a poesia é mais verdadeira do que a história e que os homens não morrem por cabras nem por carneiros, mas pelo invisível laço que forma a tal comunidade das coisas que se amam. Mártires da pátria, campos santos e outros sinais de eterno, impõem, pelo menos, respeito. As pátrias não se medem aos palmos e as pequenas pátrias não são mensuráveis pelas fórmulas de Cline e pelos índices analíticos de certos quadros do PNUD. E as selvas das pequenas pátrias, até podem ser fomentadas pelo jogo securitário dos grandes e médios Estados.

 

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Prefiro dizer que amanhã vai aqui atracar o DOULOS da Gute Bücher für Alle, um navio de 1914, quase do tempo do Titanic. Pelo menos, conseguirei alguns dos livros que ainda estão por aqui à espera de desalfandegamento e remetidos por mim de Lisboa há cerca de um mês .

 

 


 

5.11.08

De Monsieur de la Palisse aos intérpretes da PIDE. Um abraço ao Jumento

 

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Acordo no “day after” ao dia 4 de Novembro, mas tenho de concluir que, ao contrário de Monsieur de La Palisse, uns quartos de hora depois do dia da mudança, por estas bandas do sol nascente, ainda não sabemos se houve mesmo mudança, talvez daqui a quatro horas, quando estiver a começar a minha aula. Daí que, olhando à distância para certas coisas que acontecem em Portugal, fique sem saber se estamos perante uma anedota ou uma realidade. O ministro pleno de cãs que agora toma a decisão fundamental de propositura da nacionalização do BPN é exactamente o mesmo que terá dado cobertura a um privado bancário do BCP que, há meses, era director-geral público dos impostos, com muitas ostentações missais. Parece que o senhor terá recorrido à Interpol para saber quem era o meu amigo Jumento, coisa que toda a gente que almoça no Martinho da Arcada conhece e a quem tive o prazer de ser apresentado, sem qualquer clandestinidade, numa cerimónia de lançamento de um livro de ficção na FNAC do Chiado. O professor Teixeira dos Santos, de tantos valores imobiliários e contactos insulares com o arquipélago crioulo, se quiser tomar uma biquinha lá perto de seu gabinete, basta perguntar ao empregado de tal café quem é o senhor doutor que anda sempre com uma grande máquina fotográfica a apanhar perspectivas de certas aves de arribação que se passeiam pela estátua de D. José…

 

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O velho Raymond Aron chamava a esta inundação do centro do poder por informações secundárias, ao mesmo tempo que o mesmo centro não conseguem detectar colossais sinais de BPNs e BCPs que, como todos sabem, antes de o serem já o eram, qualquer coisa comoconcentracionarismo, exactamente o mesmo vício que marcou o sovietismo, morto quando um pequeno avião do jovem Mathias Hurst aterrou em plena Praça Vermelha de Moscovo ou quando a informação de Tchernobyl não chegou a Gorbatchev a tempo e horas. Quando o  superministro das notas e moedinhas, de tantos imobiliários valores, se preocupa com o Jumento e e com os “mails” dos funcionários, resta-me sorrir com a comédia, mas preocupar-me com o drama pombalino que pode redundar em tragicomédia. Mesmo aqui de Dili, sou capaz de notar o perigo desta não-denúncia de mais um condicionamento à liberdade de expressão. O problema está no exemplo e até no desperdício de dinheiros públicos gastos nestas legalíssimas incursões do policial supra-estatal de um director-geral que gostava de missas.

 

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Sobre a matéria, apenas me apetece recordar uma velha história de certa polícia política à moda do Porto nos tempos negros do salazarismo, quando um conhecido intelectual também dito Salazar, mas anti-salazarista, foi apanhado nas teias concentracionárias de uma também legalidade, tão vigente então, quanto a dos teixeiras e macedos de hoje, tal como já foi das rodrigues, dos televisivos e estradais gestores do ano, tal como pode vir a ser de outras ministeriais notabilidades que andam distraídas. O desmiolado polícia, lá dos anos trinta, não entendendo os argumentos filosóficos do subversivo, tratou de utilizar uma técnica notabílissima, pedindo a um grande professor de filosofia que descodificasse as suspeitosas declarações do homónimo do grande chefe. Leonardo, o intimado descodificador, parece que terá ficado farto da coisa, declarando que professor não era intérprete.

 

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Paradoxalmente, o socratismo, com tanto Magalhães à moda do Norte, ficará para a história com estas manchas macedais e DRENais e outras coisas que hão-de ser ainda mais, quando bastava ao ministro Teixeira, avançar um pouco nas Arcadas e subir ao gabinete de outro governamental Magalhães, para este lhe explicar que blogues não são todos como os que o presidente Costa considera um submundo. Blogues são coisas como as canetas, os lápis, as escritas, isto é, são simples meios ao serviço de fins, que podem superiores ou inferiores. Não vale a pena o velho recurso ao chamado obscurantismo, como era o da não alfabetização dos populares para que estes se metessem com filosofias de subversivos. O ministro Teixeira não deveria ter caído na esparrela. Que Magalhães lhe perdoe… e um abração de solidariedade com o Jumento. Quando eu voltar de Timor, se não formos, os dois, apanhados pelo medo da Interpol, temos que voltar a uma almoçarada em gargalhada, que, segundo dizem os clássicos e os actuais, sempre foi a melhor forma de dar cabo do medo…

 

PS: Na hora do almoço cá da ilha, com sopinha de legumes feita em casinha, lá assisti em directo aos filmes e comentários da RTPI entre o senhor Doutor Nuno Rodrigues dos Santos e a a Drª Judite de Sousa. Só assistindo ao facto histórico é que nos poderíamos inteirar daquelas excelentes preparações que tanto falavam no presidente da zona, como no sermão da religião não precisada, onde faltaram os lugares comuns da humildade da pesquisa, como aqueles que exigimos aos comentadores dos jogos de futebol, especialmente dos internacionais. Um conhecimento modesto sobre essas coisas supremas bem nos poderiam ajudar. Depois, transmitirmos esse amadorismo para todo o mundo, repetindo gnosticismos de pacotilha é não prestarmos um bom serviço público. O Vítor Gonçalves e a Márcia, pelo menos, sabem observar. Isto é, mesmo com atributos académicos, não deixam de ser jornalistas.

 

 


 

6.11.08

Aqui é mesmo Lorosae, é sol nascente, é Oceania, terra australia do espírito santo. Memória de sofrimento. Libertação.

(breves reflexões sobre a política, dedicadas ao Pedro Bacelar de Vasconcelos, porque foi ele que mas permitiu, aqui e agora)

 

 

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Ainda não disse nada, de compreensão, sobre Obama e o ditohistórico de uma mudança que pode ser se for do espírito, se for mais moral do que política, se permitir uma moralização da política, depois de deitarmos fogo ao joio da demagogia dos que se colam ao vencedor. Ainda não surgiu a coincidência que me poderá fazer viajar nessa procura. Por enquanto, apenas fica o simbólico de a festa ter sido linda, pá,  não apenas em Chicago, mas também na Indonésia, também no Quénia, também no Hawai, também aqui. Fica o simbólico de um mestiço de viagem pura, em circum-navegação e daqui o registo, mesmo ao lado de Kupang, mesmo perto do Vanuatu.

 

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Sobretudo contra um sonho mau, mais um, que me fez acordar sem ser pelo banal da insónia, mas por uma exigência de escrita, para que, por causa de Obama, pense nos muitos companheiros de mestiçagem civilizacional. Porque ainda há pouco, quem mais uma vez se intrometeu no meu sono foi  o Torquemada do costume, feito higiénico agente do meu aparelho de estadão, esse tecnocrata reformador e nacionalizador que agora pensa que é caixeiro viajante e discursa para fora sem crescer por dentro, sem compreender. Mais uma vez, veio vestido de seminarista, tão expulso da congregação como o foi o georgiano dos Gulags, veio com o hábito longo de Bin Laden, estava, como sempre, ébrio de radicalismo balofo como um qualquer Mussolini, e sentiu-se na espinha o frio assassino de um desses guardas de campo de concentração.

 

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A minha civilização que escolheu Obama é exactamente a mesma que inventou o totalitarismo. Porque totalitarismo tem a marca registada “made in Ocidente”, desde a puritana república dos santos de Cromwell aos mais recentes genocídios balcânicos. Por isso quero seguir os exemplos que vão de mestre Agostinho, da Travessa do Abarracamento de Peniche, ao senhor Padre Felgueiras, que, depois de Cernache, volta a ser meu vizinho.

 

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Acordei para escrever o que não foi fantasma, mas sinal de acaso procurado. Acordei doendo e, na memória do sofrimento, por cima das folhas do meu cadastro, palavra a palavra, vou escrevendo Obama, pensando na história da senhora de 106 anos que votou nele, confirmando que a verdadeira libertação só é possível quando a liberdade se assume como uma conquista, quando, gotejando e gotejando, conseguimos espremer o escravo que trazemos, cada um, dentro de nós, quando nos assumimos como o centro do mundo e vamos à própria raiz da dor. A culpa da tirania reside quase sempre nos escravos que não assumem a necessária revolta de escravos e preferem a comodidade da “servitude volontaire”, servida em pratos de lentilhas, louvores de jornal oficial ou elogio de compadre no corredor do chefe. Porque, ponta com ponta, se vai refazendo o modelo, não o da conspirata, mas do mero ajuntamento de agregados interesses em redes de pressão e cunha, pintadas de música celestial…

 

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Obama. E penso no que deve ser minha missão. E recordo as matérias que aqui vou leccionando, tão orgulhosamente professor de direito quanto o professor Obama, de direito também. Recordo as duas últimas capas dos dois últimos livros de princípios de direito políticoque escrevi, onde principes tem mesmo a ver com Montesquieu edroit politique mais principes é mesmo o subtítulo do Contrat de Rousseau. E penso que tenho como missão o acaso procurado de professor de liberdade. Penso na capa número um do livro que trago na mochila, retratando o princípio da armilar, de D. João II a dar a D. Manuel o que é esfera, o que é espera e o que é esperança, nesse esotérico lusíada que me marca, que é caravela, que é Erasmo, que é Pedro Fernandes Queirós e terra australia do espírito santo, onde só por acréscimo é que alguns fazem contabilidades quanto ao pioneirismo das viagens.

 

 

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Penso na segunda capa, onde a mulher que se entroniza, a constituição, muito à Sequeira, vem de azul e branco que sempre foram as minhas cores, mesmo sem coroa, sobretudo sem a coroa fechada com que traduzimos em calão a monarquia habsburga, contrária ao nosso reino sem soberania e sem Estado. Penso na deusa da liberdade. Ensino liberdade. Ensino escolástica, ligada a Cícero, ligada ao estoicismo, ligada a Paulo, ligada a Suárez, a Molina e por aí fora, humanismo, jusracionalismo, iluminismo, as pastilhas que resistiram à ocupação do positivismo, os neokantianos de Stammler a Ortega, os neo-escolásticos de Leão XIII a Possenti, os maçons como Montesquieu, como Locke, ou como Kant, com as suas revoluções atlânticas demoliberais, assim somando humanismos…

 

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Continuo a pensar liberdade como memória do sofrimento, Subscrevo a parábola do primeiro sermão de Obama para tanto peixe que não pescou mesmo nada de um discurso onde mais do que a oferta de peixes se propunha que voltássemos a aprender a pescar. E lá vem Moses Ben Maimon, também ele judeu entre os árabes, Dá um peixe a um homem e dás-lhe comida  para um dia; ensina um homem a pescar e dás-lhe comida  para toda a vida.

 

 

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Volto a Montaigne, volto a Étienne de la Boétie, volto a Erasmo, volto a revoltar-me contra todos os pides e neopides, mesmo os que se disfarçam com glosas a discursos alienígenas, volto a revoltar-me, revolto-me sempre, sobretudo contra os mesmos neopides vestidos de tecnocratas que não sabem que a poesia é mais verdadeira do que que a história. Aqui é mesmo Lorosae, é sol nascente, é Oceania, “terra austrália do espírito santo”. Memória de sofrimento. Libertação. É por este acaso procurado que o sermão de Obama serviu para recordar-me e crescer por dentro.

 

 


 

7.11.08

 

Também há dessas pretensas elites missionárias, entre os que aqui procuram a revolução perdida ou o império que não houve

(dedicadas ao velho e falecido amigo Moisés do Amaral, quando o Jamor não rimava com Timor)

 

 

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Muitos estranham que nada até agora tenha dito sobre a vida política dos timorenses, eu que comento apaixonadamente a da minha identidade, assim exercitando a cidadania, assim sofrendo, no lombo, a persiganga de todos os que não assumem a democracia como institucionalização de conflitos, de todos quantos preferem o louvaminheirismo da personalização do poder, esquecendo que uma “polis” não é uma empresa, uma “casa”, onde haja um patrão, um pai, um déspota (de “oikos despote”), ou um dono (de “dominus”). Não estranhem que aqui não vos inunde de pormenores sobre FRETILIN contra AMP e vice-versa, mas não faço parte daquele bando de revolucionários frustrados que aundo chega a uma ex-colónia se assume como colonizador neocolonialista, nem sequer respeitando a real independência dos que se sentem e são filhos de boa gente. A política apenas surge quando saímos do doméstico e vamos para a praça pública, porque inventámos a política para deixarmos de ter um dono. E porque acabamos com a política quando voltamos ao déspota. Mesmo que seja nas políticas de outras cenas, incluindo as académicas.

 

94

Acresce que, por cá, metade das gentes das minhas turmas são de um lado e a outra metade, do outro e logo, sendo professor de ambas, seria estúpido que fizesse interferência de na vida interna de uma pátria que tem mais do que direito a procurar o seu próprio caminho. Ou que fosse tão assexuado que omitisse os subsolos filosóficos que me apaixonam como adepto da liberdade, das libertações nacionais ou da religião secular da democracia, sem esquecer a missão do Estado de Direito, como Estado de Justiça. Sobretudo numa semente de escola de direito que tem de ter uma missão e uma deontologia activista.

 

95

Mas posso, não quero nem devo dizer qualquer coisa que se confunda com interferência na vida interna de uma pátria irmã que quero aprender a ama. Primeiro, aconselho aos lusos que não embarcam em jangadas de pedra que descodifiquem os blogues apaixonados que seleccionam a informação sobre Timor e que a transmitem para o espaço da lusofonia, misturando muita teoria da conspiração com a dor de terem perdido as eleições ou a euforia de as terem vencido. E não misturem togas, balandraus ou becas com palmeiras, mangais e ramelaus.

 

96

Por aqui, uma personalização do poder do modelo afro-luso talvez seja impossível, por tantos liurais e datos. Mesmo nos tempos do velho Conselho que precedeu a Constituinte, um dia houve em que o candidato de Xanana, que já era o Ramos Horta, perdeu nas urnas contra Manel Carrascalão. E quando Alkatari foi substituído como foi, apenas se confirma que, por cá, pluralismo é efectividade que, dificilmente, será destruído por qualquer verticalismo hierarquista, ou pela ilusão de um construtivismo programático, liderado por um partido disciplinado pelos quadros e pela propaganda.

 

97

As forças federadas que, por enquanto, se enfrentam não cabem em bipolarizações, como aí alguns reinventam, em torno dos eixos direita/esquerda, teocráticos/racionalistas ou entre amigos da potênciax contra amigos da potência y, de acordo com as conversatas de sofá, dos que se passeiam em má língua entre a esplanada do City e o bar do Hotel Timor, com resmas de espionite mal digerida e de ciência de ouvida mal escutada. Comigo não contem para essa circulação de pretensas elites missionárias, entre os que aqui procuram a revolução perdida ou o império que não houve. Como todos os que me conhecem por dentro sabem, prefiro o poder dos sem poder poder e um império anti-império, que não seja deste mundo.

 

98

Preferia, por exemplo, que estivesse disponível um dicionário de português-tétum e não apenas o magnífico texto de Luís Costa, sobre o tétum-português, porque quando recorro aos que se dizem de inglês-tétum, acontece que metade das palavras de tétum aí incluídas são português que dizemos arcaico, correndo o risco de ficar destruída a coisa mais bela destas paragens que é a utilização da metáfora para a descrição do mundo.

 

99

É por isso que subscrevo as afirmações de certos eclesiásticos sobre a impossibilidade de aqui aplicarmos as regras do método de Descartes. E faço-o, não para louvar a hipótese absurda de instauração de uma qualquer república teocrática, o que seria anticonstitucional, mas para subscrever o laicismo de São Tomás e de Francisco Suárez, e concluir como, com as nossas lentes de contacto conceituais, somos capazes de embaciar a pluralidade de uma entidade simultaneamente panteísta, católica, animista, democrática, feudal, pós-moderna e pré-estadual,  a quem não serve o pronto-a-vestir de certa modernidade fora de moda, por mais que se esforcem o supermercados de Singapura, os antropólogos das escolas coloniais e os politólogos desenvolvimentistas, que aqui tentam imitar o Corte Inglés, a democracia em comprimido das “foundations” e dos “compounds”, bem como o Bill Gates do troca o passo.

 

PS: Como não sou dos tolos, que sentenciam sem pisar as poças de água da chuva que aqui desabou, aproveitou esta manhã de sexta sem aulas para, depois de longa volta de bicicleta até ao mercado do farol, para ir aos tolos que vão ao “Doulos”. Gostei. Do resultado da tal ONG que vende livros num barco de 1914. Muita criançada das escolas, muitas freirinhas, tudo em visita, e eu também. A primeira prateleira desta feira do livro navegante dizia tudo: uma acção missionária de uma qualquer igreja protestante, muito de “speak english”. Livro caríssimo para timorense, barato cá para mim. Abasteci-me. ONGs são assim: sabem pescar nas águas dos subsídios do mundialismo, para venderem os respectivos sermões. Até as universidades já estão assim “o-ene-gizadas”, como estão “onugizadas”, com especialistas em Timor só porque aqui conferenciam em acções de formação numa das caves do ar condicionado e lagosta ao fim da tarde na Praia da Areia Branca. Sou dos tolos que fui ao “Doulos”. E ainda por cima gostei. Gostava mais do navio “Sagres”, ou de uma barcoleta dita “Descartes”, ou de uma caravela chamada “Loyola”. Venham todos, timorenses precisam desta pluralidade de pertenças…

 

 


 

10.11.08

Do relatório da Transparency não consta o financiamento de gentes do BPN aos nossos queridos partidos. Só falam no pitról do mar de timor…

 

 

 

 

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Bom dia, gentes para quem ainda é meia noite de domingo. Aqui já é segunda-feira, sol em pleno, e já longos quilómetros de bicicleta, entre Motael e Comoro, no passeio que Sérgio Vieira de Melo fazia todos os dias, mas em passo de corrida, quando aqui lançou um modelo de governança que ainda toda gente recorda, com saudade e morabeza. Bom dia, gentes da noite de domingo, lá do Puto, donde fiquei a saber que os dragões acabaram de comer os leões nas grandes penalidades, sem muita tranquilidade. Por aqui, é o diligente corropio de adolescentes fardados e compostos, a caminho de uma escola que ainda respeita os professores, porque, felizmente, ainda não quiseram importar daí os walters e os lemos, avaliólogos. Por aqui, são as “microletes”a caminho do centro, são os vendedores de frutas, legumes, polvos e peixinhos à procura de quem lhe alivie a cana. Por aqui é sol nascente, é sol pujante.

 

101

Sobretudo, estas ilhas assim perdidas no meio do mar e que permitem que, delas, se avistem outras ilhas, longe do continente, coisa que, nessa língua de trapos tecnocráticos que é inglês, tem o poético sabor de “mainland”, porque a metrópole da Albion também é uma ilha. Porque estas ilhas dos Jaus permitem que os homens fiquem mais em solidão, à procura do acordo com as respectivas autonomias, não sendo redutíveis a simples esferas jurídicas, a abstractos centros de imputação de direitos e deveres. Apetece que os homens, todos e cada um de nós, fujam da multidão solidária, e possam em solidão, comunitária e solidária, viver a perfeição de olhar a abóbada daquilo a que chamamos cosmos, a máxima ordem a que temos direito a imitar.

 

102

É por isso que, nas ilhas, de Timor ao Corvo, de Ataúro às  Flores, se exercita melhor a metafísica, até porque, nesta ilha do sol nascente, as águas, a duzentos metros da linha de costa, podem ter azulíssimas estrelas do mar, negros e prateados peixes redondos, corais vermelhos, muitas coisas e algas que apetecem espreitar em mergulhos simples de domingo, mesmo que, no dia seguinte, os ouvidos se ressintam, constipadíssimos, com a água de ontem que não sai.  Volto a Dili, pedalando, pedalando, ruas cada vez mais cheias de gente, ruas tão pacatas que ninguém se lembra que elas foram lei da selva, quando professores de Lisboa para aqui ousavam mandar comentários sobre canibais e cortadores de cabeças, depois de terem feito não sei quantos cursos de formação sobre a reforma da administração municipal do novo Estado, esse “catch all” do “nation building” e do “state building”, coisas que já deram direito a não sei quantos doutoramentos e teses de mestrado, na universidade portuguesa que os do costume viradeiro vão avaliando, partidarizando e destruindo.

 

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Prefiro a hermenêutica do semanário cá do sítio. Com entrevistas a D. Basílio, declarações do presidente Horta, excertos de um texto de Xanana e longa retórica de Alkatiri, todos em proporcionalidade. Onde o bispo reclama intervenção social e política à “Gaudium et Spes”, onde Alkatiri discursa em bela retórica de lógica cartesiana sobre a construção do Estado, onde Horta clama pela identidade, pela nacionalidade e pelo tétum ser da Igreja, e onde Xanana é mesmo Xanana, todos numa dialéctica de grande fulgor discursivo, todos praticando a democracia lorosae no mesmo espaço público e transformando o natural do conflito em palavras, à boa maneira ateniense, depois de entrevista do embaixador norte-americano, de visita do chefe da oposição cá do sítio ao continente vizinho da Oceania e de, daqui a um pedaço, ter que ir dar mais uma aula sobre direito e justiça e de ter que passar pela DHL, para mandar mais umas centenas de páginas de texto revisto para a Europa-América.

 

104

Ainda não fui à Internet espreitar os primeiros jornais de Lisboa depois da meia noite, mas gostava de ter estado na manif. Mas sei que ontem a secção “Domingo” do Jornal de Notícias trazia declarações minhas, tal como a Ana Clara, em “O Diabo”, me fez intervir na polémica das ilhas e do Cavaco, com o texto que emiti em Agosto. A política lá para essas bandas, com o deputado do PND da Madeira a fazer bailinho e os nomes de Manuel Dias Loureiro, Fernando Aguiar Branco e Oliveira Costa sem merecerem jornalismo de investigação, obrigam a que prefira ver o capítulo sobre Timor da “Transparency International”, porque o referente à minha “mainland”, a tal que já foi metrópole e agora nem jangada de pedra pode ser, não tem as notas de pé de página sobre o financiamento directo, ou indirecto, das gentes do BPN aos grandes partidos do estadão e a vales do azevedo.  Enquanto as nacionalizações vão e vêm, nenhum folga os impostos e só alguns é que são financiados pelas prescrições, comentadas, em linguagem de comício MRPP, pela Drª Mizé que não á Avilez, nem Nogueira, nem Pinto, mas dos Canaviais.

 

 


 

11.11.08

Essa bastarda da luta de classes a que muitos chamam luta de invejas

 

 

 

 

105

Hoje é onze do onze, memória do armistício da Grande Guerra, de pátrias e democracias que foram conquista da liberdade e não ofertas dos fundos mundiais missionários que espalham processos de unidimensionalização globalizadora. Hoje é onze do onze, véspera do massacre do cemitério de Santa Cruz. Hoje é dia de não esquecer.

 

106

Por isso, relativizo os sinais que vêm de Lisboa de cento e vinte mil professores do ensino pré-universitário na rua, porque os do universitário apenas continuam a ouvira Mariano Gago quebrar o silêncio, sobre os maus gestores que temos na autonomia universitária, tal como temos maus reitores e bons ministros, directores-gerais e outros burocratas que nos avaliam e inspeccionam.  Mas não posso falar dessas coisas que me enervam. Prefiro sentir algumas reacções de alguns velhos e eternos socialistas sobre Maria de Lurdes Rodrigues. Prefiro sentir que muitos ainda reassumem a dignidade daquele permanecente socialismo praticado pelos liberdadeiros empedernidos.

 

107

Apenas recordo que, como histórico anticavaquista, que não mudou nem vai mudar, o que me faz distanciar do socratismo não é o lastro liberdadeiro do PS, mas antes os atavismos do cavaquistão que o enredam, incluindo o nacional-negocismo. Porque, entre os micro-autoritarismos que tentam imitar a determinação reformista, tecnocrática e propagandística de Sócrates e a impossibilidade de o PS dar lições de moral ao PSD sobre os meandros e ambiente do ciclo dos Tavares Moreira, dos Oliveira Costa e dos Dias Loureiro, há aquele fio de linho que levou este último a ser apresentador da biografia do “Menino de Ouro”. Entre o absolutismo maioritário da Madeira, onde o BaltazarAguiar continua a ser o revelador e os pequenos nadas da persiganga burocrática, tecnocrática e reformocrática de alguns mais papistas que o papa, venha o diabo e escolha.

 

108

Sentidas a 18 000 km estas tricas da Corte reinol não são apenas literatura ridícula da má-consciência, mas sintomas de uma decadência que, por vezes, até para esta ilha tenta exportar alguns dos que continuam à procura da revolução perdida numa qualquer lugar exótico que pensam ilha sem lugar e sem tempo. Uma ideia tão abstracta quanto outras suas irmãs-inimigas, como as do construtivismo estatocêntrico que quer meter, à força do martelo, povos e territórios no caixilho dos preconceitos e dos fantasmas.

 

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Hoje é dia onze, do armistício, e não quero recordar outros dias de outros anos de 1975.  Porque não alinho em processos de limpeza das memórias, ou de lavagem de recordações, com a lixívia de um pretenso racionalismo de pacotilha propagandística, aqui e além pintalgado com pingos encerados de velas de um qualquer “ex voto”. Por mim, tenho outra missão: a de aprender e de, eventualmente, ajudar a não destruir interessantes energias libertadoras e criadoras de povos que se sentem nações e que não podem ser derrubadas por essa bastarda da luta de classes, a que muitos chamam luta de invejas.

 

 


 

12.11.08

 

Uma palavra, uma voz, obrigado a quem ainda pode ter uma comunidade das coisas que se amam e que será para sempre

(meditações, dedicadas ao Pedro, ao Parente e à Teresa, amigos do Maltez filho e do Maltez pai, que vos agradecem…)

 

 

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Raras foram as vezes que a minha parcela de dimensão individual de pessoa dotada de cidadania recorreu à sua outra dimensão social, para a defesa de um direito natural que, por acaso, também é direito civil. Eu, o indivíduo-cidadão, o tal indiviso, o tal ser que nunca se repete, dotado de direitos naturais e originários, gosto mais de me nortear pela auto-nomia dessa ciência dos actos do homem como indivíduo, a que chamamos moral, ou pelo chamado direito da razão, a que alguns ainda dão o nome grego de direito natural, ou de direito da procura da perfeição. Por outras palavras, poucas vezes recorro à irmã-gémea da ciadadania, aos direitos civis que o contrato social atribui à minha esfera jurídica, à tal personalidade jurídica que é um centro de imputação de direitos e deveres, uma forma de penetração no mundo artificial das relações jurídicas e do consequente processualismo que marca o ritmo dos tribunais. Prefiro manter o bom selvagem do que refugiar-me no Leviathan provocado pela selvajaria do lobo do homem.

 

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Um liberdadeiro empedernido, como gosto de procurar ser, sabe que o direito nada tem a ver com a vida, porque as relações jurídicas são apenas uma parcela ínfima da vida social. E até o sei como jurista e como professor e escrevinhador de coisas científicas sobre a matéria. Por outras palavras, como liberal liberdadeiro odeio tudo o que cheire a litigância da estadualidade.  Mas também sei que acima da lei está o direito e acima do direito está a justiça…

 

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Mas hoje posso confirmar que ontem chegou a um dos seus termos a primeira “acção” da minha vida em que pedi ao senhor Estado, através de um tribunal de Lisboa, que tutelasse parte da minha vida pessoal. Parece que consegui que me carimbassem, como judicialmente protegida,  aquela coisa que para mim, há muitos anos, era do direito natural, do direito da razão e do espaço sagrado dos afectos. Obrigado aos que me ajudaram nesta encruzilhada a provar a verdade.

 

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Desenganem-se, os tresledores de mensagens, e os seus criado, esses patifes encartados a quem mandaram fazer blogues com o meu nome, para assassinato de carácter, à boa maneira sacrista do neopidismo da gestão motivacional em administração por objectivos e água benta de comício do situacionismo. O  habituais bufos, a quem eles encarregam de relatórios de interpretação sobre palavras do meu blogue, procurando afanosamente as vírgulas, os pontos de exclamação e as heresias que, eventualmente, possam infringir o regulamento  quatrocentos e troca o passo das respectivas notabilidades de estadão, não conseguem descodificar o que acima comunico. Há coisas que não caben no tal “quid”, dito domínio do ninguém, que costuma caracterizar o comunismo burocrático, com que Joaquim Pedro de Oliveira Martins baptizava o intendente, o sargento e o manga de alpaca.

 

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Por outras palavras, quando aqui digo comunismo não quero ofender nem cunhalistas nem jesuítas, mas tão só o cinzentismo leviatânico, de esquerda ou de direita, que é um bicho que me tem espetado regularmente as mãos felpudas de suas garras nojentas. Não as digo, por enquanto, que isso de vitimização é o que o monstro gosta de usar, para nos pôr o garrote do ridículo, especialmente nestes momentos de encruzilhadas e rodriguinhas,  e de muitos outros que vão gastando o dinheirinho do contribuinte da Bielochina, na sua sanha contra os aborígenes que dão nomes de deuses a muitas curvas dos caminhos de pé descalço.

 

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Os meus advogados aconselham-me a que não diga mais, para que Kafka se não ria das das tumbas e Torquemada ainda possa vir a avaliar professores. Mas ontem li e reli o discurso do deputado do PND da Madeira e apenas confirmei que ele pouco tem a ver com o que habituais analistas políticos referem sobre as relações de Manuel Monteiro com a a política. Aquilo é mesmo puro e duro madeirismo e tem um ritmo de autenticidade que merece ser meditado. Transformar a cena numa anedota, como é conveniente para o PSD-M, ou ocultar a violação frontal da Constituição, apenas me leva a recordar coisas da I República e do Congresso da Mitra e Gaita. Por isso, apenas vou reler Montesquieu, sobre o inevitável do abuso do poder e da desculpa da ditadura da virtude. E, infelizmente, apenas posso referir que abusos destes, também abundam noutros micro-autoritarismos sub-estatais, com mandarins de esquerda e e de direita, dado que o “défice” democrático costuma rimar com “claustrofobia”.

 

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Até aqui em Dili, o domínio de ninguém circula, neste dia de memória do massacre de Santa Cruz, feriado nacional. Porque a República do Sol Nascente, se é um povo, dotado de um território que, pela democracia, constituiu um poder político autodeterminado, é povo porque é nação nascida do mesmo nó de gerações que se transformou em comunidade das coisas que se amam e tem um território que que foi sagrado pelo sangue dos que lutaram pela liberdade, por aquilo a que, por cá, também tem o nome de mártires da pátria. Por outras palavras , esta comunidade de sua terra, tem uma terra sagrada pelos mortos que nela lançaram semente. Já tem direito a pátria.

 

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Estranho, portanto, que a ilustre governação universal que para aqui, para Dili, mandou delegados e profissionais, não tenha reparado na data de hoje e que, em dia de mártires da pátria, em que devia ser respeitado o respeito, obrigasse os seus funcionários ao pica-no-ponto, incluindo os cidadãos timorenses que, assim, não podem ir ao cemitério manter a chama das saudades de futuro. Se isto é “nation building”, até um ex-ministro salazarento poderia, para aqui, ser chamado, para fazer relatórios sobre o “state building”, elaborados por gaiatas e gaiatos do neocolonialismo de exportação. Por mim, apenas tenho pena de já não saber rezar, para, em cadeia de união, refazer o que foi quebrado e olhar o cosmos.

 

 


Para que a geração dos inactivos e enjoados do situacionismo possa dar lugar aos indisciplinadores da nossa tradicional criatividade do abraço armilar

(aos meus amigos A, B e C, pouco dados ao lume da profecia e que me acusam de milenarismo, panteísmo e de pontapés nos registos das descobertas e navegações, não compreendendo que, para quem anda em busca de si mesmo, navegar é preciso, viver não é preciso, até porque a poesia dura bem mais do que a história…)

 

 

 

 

 

 

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Pediram-me de um jornal de Lisboa que tentasse dizer alguma coisa como seria Portugal daqui a um quarto de século. Fiquei com a certeza de que, então,  já cá não estarei e olhando a parede finita da inevitável morte, tentei exercitar o infinito. Nas ruas, aqui de Dili, é mesmo dia nacional da juventude, tudo circula em silêncio, naquilo que eles chamam procissão e que, por aí, se diz “manif” ou “passeata” em brasiliense. Tentei ligar para notícias de Lisboa, mas sai-me sempre Constâncio, Louçã e Portas, com conversas parlamentares até às três da manhã, porque ninguém consegue entrevistar o Oliveira e Costa e o Dias Loureiro. Desliguei. Mas quando reabri os aparelho, era a ministra rodriguinha a palpitar do alto do seu despotismo esclarecido, mas sem grande iluminação, a não ser nos óculos que, sem ser por acaso, são do mesmo estilo da Sahra Palin, assim escrita com  nome de deserto, apesar de ianque, alaskada e muit adepta da ética republicana que, refrigerada deixa de ser laica. Voltei a desligar. Porque quando anunciaram Madeira, percebi que, dentro de vinte e cinco anos nehum destes fenómenos será detectável pela simples recordação. Porque a rodriguinha não será candidata a presidenta dos States (não é alexandra lencastre, manuel oliveira já não vai realizar filme sobre a matéria e continua a dizer que é de esquerda e democrata, como se isso fosse certificado de impunidade). E Constâncio poderá estar a tomar uma limonada com Cadilhe, Serrão e Tavres Moreira , num centro dos reformados bancários, organizado em qualquer sítio com sinais palmeiras, mesmo que a relva seja artificial. Preferi fugir destes meandros e entrar nas esperanças de Portugal, futuro do mundo, respondendo ao inquérito…

 

 

1. Quando dizemos que Portugal tem oito séculos e meio, estamos a fazer uma interpretação retroactiva da história, estamos a contar uma história que tem mais a ver com a literatura de justificação do presente e com certa saudade de futuro do que a dizer verdade. 

 

2. Portugal foi não apenas uma fundação, mas uma sucessão de refundações, porque a continuidade nos segredou que valia a pena assumirmos aquilo que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes. 

 

3. Eu que, neste meio século, assisti ao Portugal que alguns diziam dos anos do fim, foi-me dado concluir que, apesar de tudo, nos reinventámos, tal como em 1822, depois do traumatismo do fim do Reino Unido, conseguimos navegar na balança da Europa, gerindo dependências e aproveitando marés das interdependências, mas contando, no final do século XIX com a geração do heróis do mar e da reconstrução de mais um ciclo imperial, depois do marroquino, depois do indiano e depois do brasiliense. 

 

4. Dizer o que vai ser Portugal daqui a vinte e cinco anos, com algum lume da razão, é muito menos do que vislumbramos do que, sobre Portugal, pode ser dito com algum lume da profecia. 

 

5. Por mim, apenas digo que vai continuar a ser reinventado e reidentificado, desde que a geração dos inactivos e enjoados do situacionismo possa dar lugar aos indisciplinadores da nossa tradicional criatividade do abraço armilar. 

 

6. Neste sentido, faço parte do partido dos velhos crentes e continuo a defender o quinto-império, o do poder dos sem poder, em que voltarão a reinar as crianças, podendo cumprir-se o máximo do sonho de Portugal que é o diluir-nos em todos os outros, sendo brasileiros, angolanos, moçambicanos ou timorenses. 

 

7. Por mim, que, por estes meses estou na república do sol nascente (Timor Lorosae), digo, como um navegador de outrora, que vale a pena procurar a “terra australia do espírito santo”. 

 

8.O dito, chamado Pedro Fernandes Queirós, era natural de Évora, estava ao serviço de Filipe, saiu do Perú e pensou que o Vanuatu era a Austrália, mas mesmo assim fundou uma cidade chamada Nova Jerusalém e uma ordem de cavalaria dita do Espírito Santo. 

 

9.Enganou-se, falharam todas as respectivas obras, mas ficou o sonho, aquilo que é o mais português de Portugal que é procurar Portugal fora de Portugal no que o Professor Sérgio Buarque de Holanda qualificou como “a visão do Paraíso”, o exacto contrário da Ilha Sem Lugar (U-Topos) e que se aproxima da ilha dos Amores, do aqui e agora. 

 

 


 

13.11.08

Uma enfermeira timorense, um médico iraquiano e duas bolas enceradas e castanhas que me entupiam ouvidos alfacinhas e só me davam eco

 

 

 

 

 

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Acabei de sair do Hospital Nacional Guido Valadares, aqui de Dili, depois desta minha sina de, quando vivo em regiões tropicais, ficar afectado dos ouvidos. Já assim foi em Brasília, voltou a acontecer em Timor e lá tive que recorrer aos serviços públicos de saúde, já que o belo serviço de apoio à cooperação portuguesa, com médico, enfermeira e consultas melhores que lá do médico de família, apesar de também serem públicos, me aconselhou a ir ao especialista, detectando a causa dos meus males. E lá fui, sem renitência, visitando um mundo normalmente esquisito, como quando quebrei um braço em Leninegrado e com raios X, puxões e geladinhas de liquidificação, fiquei curado, porque, em ortopedia, russo é especialista. Ou quando tive que ir ao hospital de Macau por outras avarias canalizadoras, junto de um médico vietnamita que me queria operar em 24 horas. Ou então, quando em Brasília, já do Lula, fui a médica convencionada que me descobriu estas otomaleitas.

 

 

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Posso dizer-vos que, depois da breve intervenção, onde doutor iraquiano olhou, entrou nos canais e limpou cá meus aparelhinhos auditivos, voltei a poder sentir os passarinhos e os lagartos e só tenho que agradecer à enfermeira, Maria Filomena Carmo e ao tal clínico da Mesopotâmia que me atendeu, do alto da sua experiência de setenta e quatro anos. O cubano só chegava uma hora depois e os chineses andavam noutras especialidades. Meus ouvidinhos eram como os velhos pirolitos, tapados com dois berlindes, dada a minha “ceráfica” tendência para fazer concorrência às abelhas…

 

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Com efeito, todos aqueles preconceitos sobre a saúde do terceiro-mundo seriam bem desfeitos com esta volta por uma instituição, Hospital Nacional Guido Valadares, fortemente apoiada pela União Europeia, mas com mãos dadas de todo o mundo, com cooperantes que assim praticam a defesa da dignidade da pessoa humana, porque todos somos efectivamente iguais em corpo e alma, bactéria ou vírus. Há gente mesmo igual a toda a gente, em todo o lado, sempre velhas senhoras de cabelo apanhada como andava a minha avó que também não sabia ler nem escrever, mas que conservava a nobreza do silêncio digno. Obrigado, sôtor iraquiano, que me permitiu voltar a poder ouvir inteiro, depois de três dias de quase surdez, por causa de dois berlindes grandalhões, bem encerados e sequinhos que tudo transformavam em eco, até as minhas próprias palavras.

 

 


 

14.11.08

O Processo de Desinstitucionalização em Curso (PRODEC)

 

 

 

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Chegam-me, de vez em quando, alguns pedaços de correio electrónico, invocando o facto de estar longe, fora do bulício e agitação que grassa pelas terras europeias do antigo império, onde imaginam que o afastamento corresponde a paz e sossego bem diverso do que se passa nesse reino da macacada, onde consta que há um plano previamente traçado para destruir a escola pública. O que hoje transcrevo rima perfeitamente com a carantona não apenas da senhora ministra, mas de muitos outros ministros socratizados pelo propagandismo disciplinado que pensa vencer as sucessivas tempestades com discursos de brigada do reumático. Infelizmente, nem sequer compreendem que actuam como aliados objectivos de todos os vermes que estão a desinstitucionalizar a comunidade, ou república, com o seu pluralismo plurissecular. Um pouco como um destes sapos exóticos que forças militares vindas de outras ilhas aqui lançaram para limpar Timor de cobras venenosas, mas que se trasnformaram numa praga semelhante à dos coelhos de outrora na Austrália.

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A maior parte destes desinstitucionalizadores, que passaram de revolucionários frustrados a ministros dos estadão, através daquele clique em que as mãos do primeiro-ministro os propuseram ao presidente, pensam que é através deste terrestre carisma que a ave da sabedoria levanta voo ao entradecer e, por tudo e por nada, entre os palanques inaugurativos e os microfones de telejornal, botam faladura tão empoeirada de cremes e arrozada quanto os gaguejos em que são apanhados. Dizendo que são de esquerda, com a mesma convicção com que poderiam dizer que eram de direita, não têm sobre o aparelho de Estado que foram obrigados a mostrar obra qualquer ideia de obra, a não ser aquela que os jovens assessores lhes traduzem em calão tecnocrático sobre o último relatório da OCDE ou do PNUD para um desses países que promete sair do quarto para o terceiro mundo.
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Regras de processo são coisas que o escritório do amigalhaço em “outsourcing” conseguem reparar com cola e cuspo de muitas cláusulas matreiras, ao ritmo daquele velho princípio da legalidade que sempre foi o exacto contrário do Estado de Direito, porque tanto a Inquisição como a Pide eram veneráveis instituições que cumpriam as leis e os regulamentos em vigor e os bons costumes dos certificados que passava o ti Regedor. Aliás,  é ver, hoje, entrar nos gabinetes o jovem advogado metrossexual e a juvenil advogadíssima mais pró hetero, recentementevítimas do desempacotamento hetero, a quem mandam os últimos processos disciplinares dos dissidentes e sindicalistas, enquanto os mais calejados de rabo e manha, são os ilustres causídicos a quem mandam fazer as discursatas e os relatórios dos diplomas, até porque, quando eles são aprovados, sempre os ditos podem pôr, no “portfolio” do escritório, que foram os autores da lei x ou y e que, portanto, estão preparadíssimos para mais um curso de formação profissional intensiva aos peritos dos órgãos de soberania que aprovaram a coisa proposta por estes agentes neofeudais.

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Finalmente, a desinstitucionalização passa pela liquidação das últimas manifestações de comunhão que se manifestavam entre os membros do grupo. Aquela comunidade entre as coisas que se amam que nunca tinha sido incompatível com a burocracia, quando esta tinha uma missão que não tinha sido escrita pelos tipos do PRACE do senhor Teixeira dos Santos e do senhor João Figueiredo que, entretanto, já deu às vilas Diogo do mais vale um pássaro na mão do que ter aturar cursos de formação na universidade. Manifestações de comunhão é coisa que o “agenda setting” dos novos donos do poder foi buscar às aprendizagens de extrema-esquerda e de extrema-direita dos tempos do PREC, com algumas pitadinhas de seminarista baladeiro. Logo, à boa maneira do Maquiavel da razão de Estado bem cristã, nada melhor do que o neofilipismo da sacanagem catolaica e congreganista do “divide para reinar” e do “faz e desculpa-te com os erros do chefe da secretaria ou da contínua que ainda ontem fazia torradinhas ao chefe de posto”.

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Por outras palavras, meu caro, a antiga capital do império, voltou novamente a ser colónia, colonizando-se a si mesma, através destes agentes inconscientes de novos donos do poder que lavam as mãos como Pilatos, assentes em reformas douradas, porque sabem que reina o desregramento do sapateiro de Braga, onde tanto não há moralidade como não comem todos neste fartote do ver se te avias. Ao pé disto, os walters, os pedreiras e as rodriguinhas nem merecem que  renunciemos a ovos estrelados, escalfados ou omeletizados. Eles são umas criancinhas de coro, isto é, não são causas, são meros sintomas desta ditadura da incompetência que há muito nos minou por dentro, fazendo apodrecer as raízes e impedindo a regeneração que costumava vir de dentro. Porque, por aí, onde Roma até paga aos traidores, a fila dos denunciantes à porta do chefe é enorme, para ver se ainda apanham os últimos restos carreirísticos que sobejam da orgia porcina  em que se transformou a mesa do Orçamento.  Aliás, Hispania, o nome original, também queria dizer terra de coelhos, como nos antípodas, embora o ritual da luta de galos com galinhas, em nome da igualdade do género, se mantenha tão bárbara como a velha tourada dos agrobetos…

 


 

15.11.08

Não costumo calar nem atenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las

 

 

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Acordo, quatro e meia da madrugada, dezanove e tantas lá de Lisboa. Deitei-me bastante cedo, em regime inversamente proporcional ao da maioria da comunidade lusa cá da terra, talvez porque o corpo é que paga e as novas remetidas em envelopes, lá da grande capital do império dos intendentes, inspectores e avaliadores, obrigaram a que acontecesse mais uma dessas reuniões de abstractas comparações de fichas avaliadoras e mais regras de cumprimento de procedimentos e de regulamentos, agora ditas, à maneira da ONU, de “proceedings” e “proceedings”, com SMSsssszzz e Mailssszzz, artiguelhos e regulamentecos, onde quem quer comer tem de calar, mesmo que não apeteça comer e mesmo que queira continuar este blogue que, dentro de meia dúzia de “proceedings”, se poderá transformar num curioso “case study”, como os mais atentos ao que aqui vem sido escrito podem imaginar. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Infelizmente, no auge destas trocas e baldrocas, o excelente sinal de “wireless” que, por aqui, a firma paquistanesa colocou ao serviço da embaixada, no pequeno bairro das traseiras da antiga câmara eclesiástica, incendiada em 1999, em Colmera, apesar de o sinal se excelente, ficou sem ligação à internet e por mais que muitos professores de informática tentassem ir ao suporte e reparar a avaria, nada, apenas nada. A única solução foi ir ao hotel do Monjardino, usar da internet rápida que sempre funciona, mas paga a peso de ouro negro,  e  mandar um SOS para Lisboa, confirmando que sim, senhor, que recebi a papelada, embrulhada em protocolo, e que iria depressa responder, perdendo muitas horas deste meu tempo a interromper as funções docentes e de tutoria. Porque, nestas relações com a capital do império, tudo funciona, embora, quase sempre, o sempre não exista, dado que, se foi extinto o ministério das colónias, as repartições do mesmo espalharam-se por todos os ministérios que restam e tratam os cidadãos que exercem funções de agentes do mesmo como meros agentes da abstracção da ficha avaliadora do PRACE, numa zona onde não há “off shore”. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Daí que haja esta pressão de interromper o sono a meio da noite, de ligar o computador e de aproveitar o tempo que devia ser de sono ou de festança, para poder conversar um pouco com as centenas de fiéis leitores que continuam a dialogar comigo, mesmo a dezoito mil quilómetros de distância. Porque esta via que, segundo qualquer manual de procedimentos do carreirismo, constitui um suicídio, porque diz o que pensa ao correr da tecla, pode ser interessante para um futuro especialista em análise de conteúdo que, encadeando, em articulado, uma vintena de excertos de parágrafos, pode concluir que somos infiéis, socialistas, adeptos de Portas, anarquistas, papistas ou o mais que os carregue. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Como, feliz ou infelizmente, transporto comigo a missão de publicista, bem me apetecia que, também qualquer dia, um desses autores de “proceedings” avaliativos se desse ao trabalho de, consultando os meus livros de poesia, e os recompusesse pela datação, tratasse de, num processo judicial, reconstruir as minhas relações de correcção com os poderes conjugais, ou públicos, a que, então, estava sujeito. Claro que, quem, dentro de anos, e à distância, analisar a linguagem destes “proceedings”, achará que todas as cartas de amor são ridículas, mas que, ainda mais ridículo, é ninguém ter escrito cartas de amor, mesmo que as cartas não sejam apenas a pessoas individuais e o sejam a instituições que eram comunidade das coisas que se amam e hoje se nos tornam indiferentes porque sufocadas pelos hierarquismo do mandarinato. Eu, ao menos, fartei-me de escrever cartas de amor e poderei também ser dos poucos a ser condenado oficialmente como incorrecto. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Por exemplo, se eu reconstruir todos os discursos de Barroso, da Mizé ou da Ana Gomes, no tempo em que eram MRPP e pedir ao senhor chefe dos contínuos da FDL que conclua pela respectiva incorrecção, quase faria o mesmo dos analistas da vida de um provedor de defuntos no Oriente que, por acaso, se chamou Luís Vaz. Quase a mesma coisa do que colocar nos anos trinta deste século, dois ou três deputados salazarentos a comentarem nos jornais a obra literária de um funcionário da agência de publicidade Hora, ou a de ter que aturar, como suprema responsável pela educação das nossas crianças e dos nossos jovens, a discursata de um tal walter e de um tal lemos que, sem a lábia do José Hermano Saraiva e sem o futuro do Veiga Simão, nos diz que há manipulação numa manif de alunos convocada por SMS e muitos ovinhos, e que também não era ele que o também dizia. Quase bem pior que outros ministros e secretários de estado da antiga senhora, face às movimentações dos marianos gagos de então. Bastava ir aos arquivos da RTP e colocar os secretários de Estado de Marcello, comparando-os com os de agora, face aos mesmos problemas de que também já foram vítimas o Couto dos Santos e os rabiosques ao léu da geração dita rasca. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Mas ao que nenhum mariano, nenhum gago, nehum lemos, nenhuma maria de lurdes, nenhum sócrates, nenhum jorge lacão, nenhum rui pereira,  nenhum alberto costa, nenhum josé magalhães, todos e cada um escapam é ficarão eternamente ligados a causas que serão casos e a cento e vinte mil professores na rua, uma e duas vezes, sem ser por causa do bigode verbeteiro do Mário Nogueira. Porque, no tempo do Simão e dos gorilas, no tempo do Saraiva e dos Adrianos, o tópico de Estado de Direito ainda não estava na Constituição e  o direito português, em termos de direito de defesa à liberdade de expressão, ainda não se tinha universalizado pelas cláusulas gerais do direito da razão, nomeadamente o “case law” do direito comunitário. Por isso é que os higiénicos instrutores, os higiénicos juizes e os higiénicos ministros, lavavam, com legalidade de Pilatos, as enormidades plenárias e ministeriais. Hoje, talvez, não, mesmo que tentem afastar os coelhos da cartola parlamentar ou se esqueçam das relações de Cavaco com Saramago, onde a lixivada justificação apagou os nomes do primeiro e do Santana. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

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Por mim, tanto faz! O que eu quero saber é se as novas regras dos “proceedings” permitem que eu possa continuar a acumular este meu estilo de escrever público, mas assinado, com a deontologia do ser professor, ou, se para continuar a viver como penso, só ser for deputado, secretário de estado ou ministro, por um lado, e blogueiro de nome oculto do outro, com pidescos métodos de mandar as cadelas morder nas canelas dos incautos. Apenas quero saber as regras do jogo. E se aquilo que é cumprir o meu dever de liberdadeiro pode continuar a ser sancionado pelo Leviathan de sempre e pelos Pina Manique que o mesmo condecora. Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: “Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las”……

 

 


 

17.11.08

Pátria, Pátria, Timor-Leste, nossa Nação… Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação.

 

 

 

 

 

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O dia começou com pequeno espaço de aula, logo seguido de participação na cerimónia comemorativa do oitavo aniversário da Universidade Nacional de Timor Lorosae, presidida por Xanana Gusmão que entrou no ginásio, lado a lado com o Reitor, Professor Doutor Benjamim Corte-Real. O ginásio construído pelos indonésios, ainda tem a placa com o nome do célebre General Moerdani, mas hoje, lá dentro, milhares de jovens dão vida à instituição. Bastava a emoção de se assistir ao hino nacional naquele ambiente, entre o formal do corpo diplomático e o peso das baancadas apinhadas de futuro : Pátria, Pátria, Timor-Leste, nossa Nação./ Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação./ Pátria, Pátria, Timor-Leste, nossa Nação./ Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação.O autor da letra, Francisco Borja da Costa, morreu no mesmo dia da própria invasão indonésia.

 

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Xanana entrou, hábil na relação com as massas, desejoso de palavra. Cumprimentou os embaixadores. Saudou o representante da Igreja, mas voltou para trás, algumas filas e foi dar uma saudação especial ao senhor Padre Felgueiras. Como não podia deixar de ser, a cerimónia começou com uma oração. Umas dessas líricas de paz e harmonia, com orações em brasileiro, que passou no écran, mas Xanana, desejoso de intervenção, subiu ao palco e ele próprio, com o timbre que lhe conhecemos leu, linha a linha, a oração. Nada a comentar desdenhosamente, Xanana soube ler com força e convicção esse poema, colocando as coisas num ritmo muito especial.

 

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Olhei este palco do novo país que é, sobretudo, um país jovem e que vai viver num mundo que lhe pode ser mais favorável nos próximos tempos, porque quem, sendo um pequeno Estado, está condenado, tanto à cobiça do negocismo como a um conceito de independência que se identifica com a gestão de dependências e a navegação na interdependência. Decidi viver a cerimónia como professor da Universidade Nacional de Timor Lorosae, humildemente, sentindo o que, certamente estavam a sentir os meus alunos. Que a universidade é universitas scientiarum, que é uma instituição, uma ideia de obra ou de empresa, marcada por regras de processo e por manifestações de comunhão em torno das coisas que se amam. Decidi sentir universidade, aqui e agora.

 

 


 

18.11.08

A principal potencialidade desta Nação ainda sem “state building” é a sua principal vulnerabilidade, e vice-versa, com cheiro a petróleo

 

 

 

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A maior parte dos portugueses não lê blogues. E com toda a razão, se forem a dar crédito ao presidente António Costa que classificou este modo de comunicação da viragem do milénico como o vazadouro do submundo. Por acaso, eu também não os leio como deve ser, porque criei a minha própria rede de selecção e de diálogo na praça pública e quando, todos os dias, dou o meu passeio matinal, encontro os companheiros que fazem parte da minha comunidade de significações partilhadas e que, comigo, têm os lugares comuns que me permitem o diálogo.

 

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Mas gosto particularmente de acordar de madrugada, nas seis horas da manhã de Timor, que equivalem às dez da noite aí da véspera. E gosto de o fazer, nesta época das chuvas nocturnas, para poder sentir o sol a lavar a manhã e a passarada vencer o som das osgas e fazer sorrir o pátio de pequenas pedras trazidas da praia, quando ele é diligentemente varrido pelas vassouras feitas de folhas de palma. Gosto deste momento de solidão, antes de espreitar os jornais do dia. Antes de  preparar as aulas que irei dar. Antes de registar os tópicos das aulas que aí vêm. Antes de ler as recensões semanais a que obrigo os alunos. Antes de começar a ler os trabalhos de campo que eles escolheram. Antes continuar os trabalhos de sapa que tenho em mão.

 

138

Recordo alguns dos devaneios da aula de ontem e até reparo que, se tivesse que preencher a ficha da Rodrigues e do Valter, não sei onde incluiria a coisa que foi viver metade da aula fora do programa por causa do “quodlibético” provocado por alunos que sabem muito mais do que o professor, como é o caso do meu aluno, reitor da Universidade e a quem eu devo apenas transmitir apenas as metodologias da minha área científica. Porque todos acabámos por pensar a República Timorense a partir do pensar o direito. Porque até acabei por me socorrer do tópico do discurso de Péricles sobre a fundação da democracia em Atenas, em nome do regresso soldado morto pela pátria.

 

139

Com efeito, eu poderia imaginar no mundo Estados em abstracto, todos eles bem governados pelos “proceedings” da boa governação global, estabelecidos por organizações internacionais, desde o PNUD à Transparency International. Até poderíamos fazer concursos públicos internacionais sobre empresas de consultadorias, disponíveis para a governação, que nos fariam excelentes leis e nos trariam ministros mais competentes do que a maior parte dos dos que temos no mostruário lisbonense das tomadas de posse em Belém e na Ajuda, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido. Bastava encimar este bolo apátrida com a cereja de um qualquer Sócrates ou de um qualquer Xanana, para lhes dar a cor “typical” da selvajaria local, com danças tradicionais ou fotografia nos Jerónimos. Candidatos a caixeiros viajantes desta “good governance” não faltam e muitos antigos políticos e burocratas desempregados estão perfeitamente disponíveis para estes chorudos financiamentos.

 

140

Só que a política não é apenas feita de “state building”. Há outra coisa bem mais complexa. O invisível laço que nos dá comunhão em torno das coisas que se amam. A chamada identidade, ou nação, a tal comunidade das coisas que se amam, que faz, de uma população, um eu em ponto grande como “moi commun”; que faz, do território, uma pátria; e que faz, dos governos e dos parlamentos, uma paixão identitária de luta de facções, plena de institucionalização de conflitos, que bem podem ser os de uma dessas democracias que nacionalizem racionalidades importadas. E aí, nada do que é humano nos pode ser alheio. E aí, não há consultor internacional ou “legal adviser” que possa dizer Alkatiri, Horta e Xanana sem ser em ritmo timorense, ou Alegre, Sócras, Soares, Manela ou Cavaco, sem ser em ritmo de lusitana paixão. O universal só se atinge pela diferença. E o tempo dos caixeiros viajantes das “public relations” teve os seus últimos episódios com tipos como o Mário Soares.

 

141

Timor, como Portugal, tem o belo problema de não ser um Estado multinacional. E, neste mundo da ONU, desses espécies de Estado, há bem poucos. Porque das três a cinco mil nações que podiam ser Estados, a história apenas permitiu a concretização de cerca de meia centena de entidades com este perfil, de nações que querem ser Estados e não de Estados que, pelos aparelhismos, constróem nações, incluindo as imaginadas e as de relatórios de PNUD.

 

142

 

Nações-Estados, em vez de Estados-Nações são a maioria dos ditos PALOPs. Infleizmente, trata-se de matéria que, contudo, não costuma ser tratada nas cimeiras da dita organização, mais preocupadas que estão com outras coisas e loisas de somenos e habituados a traduções em calão de nacionalismologia de importação anglo-americana, tipo LSE, de recente teorização smithiana sobre a matéria, pouco dada a loucuras teóricas, mas certeiras de um Hernâni Cidade.

 

143

E Timor tem, como Portugal, um problema estratégico. Não o de estar entalado entre um dos Estados mais populosos do mundo e outro dos que tem das maiores extensões territoriais do universo, mas antes o clássico desafio de saber transformar as vulnerabilidades em potencialidades e de evitar que as potencialidades passem a vulnerabilidades. Porque grandes potencialidades como era a portuguesa do triângulo estratégico levavam a que fossemos imediatamente ocupados por outros, enquanto a vulnerabilidade do David os cem guerrilheiros timorenes, enfrentando o Golias de um dos maiores exércitos do mundo, levou a que a pedrada de Santa Cruz e do trabalho político urbano acertassem em cheio no olho do gigante que tinha os pés de barro da crise das bolsas asiáticas.

 

144

Hoje é o contrário. A principal potencialidade deste Estado-Nação, que é Nação ainda sem construir um Estado feito à imagem e semelhança dos timorenses, chama-se petróleo. Coisa que gera apetites. Coisa que sabe navegar na política que é aquela senhora que tem uma face visível e uma face invisível. Coisa que não se compadece com teorias da conspiração e historietas de espiões e especialistas em informação e segurança. Coisa que merce mais uma espécie de patriotismo científico. E melhor política. Não digo mais porque só sei que nada sei. Aqui só sei que há milhares, centenas de milhares de pessoas que morreram pela pátria, por esse invisível laço que nada tem a ver com facturas de bibis e de búfalos. Morreram pela pátria e podem escrever democracia segundo o discurso fundador da dita. Feito pelo estratego Péricles em Atenas, há vinte e cinco séculos.

 

145

Apenas comunico que ontem ao fim da tarde, indo a casa de uma família amiga, mais dada às ares do que ao negócio, mais dada aos afectos do que à má língua, mas que há mais de uma década por cá se enraizou, dei por mim que o quintal era comum com a casa de habitação de um ilustre membro do presente governo de Timor. Um célebre secretário de Estado, aliás, dado a sonhos e a realizações. A modesta vivenda geminada do tal governante tinha a porta aberta e a televisão ligada e estava cheia de miudagem e a graúdagem que fazia o jantar, num corropio de quem também via o telejornal. Uma confusão criativa, feita modéstia, feita identidade, feita alegria no rosto e simpatia na comunicação. Seria interessante que os habituais polícias da corrupção aqui viessem medir este índice objectivo de vida modesta, de vida igual a todos os homens comuns desta terra.

 

146

Com mais secretários de Estado como este, que, desde sempre, gosta de viver como pensa e não pensa como, depois disso, vai viver, Timor poderá ser um exemplo para o mundo. Também por cá há homens que, neste tempo de homens lúcidos, gostam de ter a lucidez de ser ingénuos. E tipos como este, habituados ao terreno e à confiança público, podem dar consultas de realidade timorense sem a cobrança dos honorários dos causídicos da petrolífera relação de poder. Peço também desculpa por ter dado uma informação errada: afinal, no Timor Contacto, da RTPI, uma empresa timorense de video, a Valsa, passou longa reportagem sobre a feira de artesanato das mulheres timorenses, que aqui descrevi, num dos primeiros postais sobre esta terra.

 

 


 

19.11.08

Dos topasses, que já cá estavam antes dos soldados, dos padres, dos burocratas, dos partidos e dos negociantes reinóis

 

 

 

 

 

147

Muitos antes da chegada dos missionários ou dos governadores, vindos do reino, por estas ilhas se espalhou uma estranha mistura de gente, meio portuguesa, meio local, com nomes esquisitos, ditos Larantuqueiros, por causa do nome do porto da Larantuca, ou portugueses ditos pretos, ou Topasses,  nome este que já terá sido usado em 1545 e que tem a ver com uma palavra malaia referente ao que fala duas línguas.

 

148

É este o sincretismo genético donde brota este eixo foi dito de Flores, Solor, Timor. É este o sentimento do homem da rua, ainda hoje, aqui por estas bandas que fooram sandalosas e agora são petrolifereiras. Os Topasses chegaram antes dos soldados, dos comerciantes, dos burocratas do governador. E em 1975, quando, sem ainda sabermos bem porquê, os portugueses se ataurizaram, tudo voltou a ser tão topasse quanto no próprio no princípio, quando era apenas o verbo. Eles ficaram aqui em procura do seu lugar onde. E trouxeram do reino outros Topasses, em outras procuras de abraço armilar.

 

149

Foi a sensação que tive quando, ontem, finalmente abri as duas caixas de livros que trouxe de Lisboa e que também só ontem foram finalmente desalfandegadas. Onde vieram muitos dos relatórios em forma de livro sobre o que se passou no ano horribilis de 1975 e que, relidos, neste aqui e agora, me deixam confuso sobre as muitas verdades que não são verdade, sobre as muitas mentiras que passaram a verdade, e sobre a estupidez de nos enrodilharmos entre o vazio de a culpa morrer solteira e as estúpidas teorias da conspiração.

 

150

Por mim, prefiro continuar a investigar sobre os Topasses que já aqui estavam antes de chegarem os reinóis e as suas bandeiras, incluindo ideologias e partidos. Pelo menos, esses não mandaram os dominicanos assassinar os jesuítas, como aconteceu nos primeiros tempos da missionação. Nem se passaram para os holandeses. Nem enviaram para cá como governadores da I República um Filomeno da Câmara ou um Teófilo Duarte. Deixaram que, pelo acaso, das  greves da Marinha Grande,  chegassem os Carrascalão e que, por outro acaso procurado, nos anos setenta,  aqui assentasse o padre Felgueiras. E esses, aprendendo com os Topasses, ficaram Topasses, mudando ou não de cor, e assim ascendendo ao altar da metapolítica, naquilo a que se chama confiança. O português que se diluiu no outro, e que cumpriu seu destino armilar é que também se assume como o santo da minha confiança. Força, Manel, nessa luta contra a doença. Timor precisa do teu exemplo! Sempre!

 

 


 

20.11.08

Por mais livros sobre pretéritos imperfeitos, mais confirmo que a poesia é mais verdadeira do que a história

 

 

151

Do ano de todos os fins dos princípios e de todos os princípios dos fins, entre a guerra dita fria, a revolução em Lisboa e os desembarques timorenses (um, nove, sete, cinco), já foram escritas todas as frases sobre atribuição e passa culpas, já foram preenchidas todas as fichas da chamada teoria da conspiração, e já foram contabilizados os duzentos mil mortos resultantes de erradas teorias de relações internacionais. Todos conhecemos os tristes meandros de uma ditadura, de uma revolução e de uma ocupação, permitidas e fomentadas pelas higiénicas teses do pretenso realismo político e do seu irmão-inimigo da utopia. Todos sabemos como se disfarçam osmaquiavélicos defensores da liberdade, bem como os assassinos que lavam o sangue com os amanhãs que cantam. Até já vi chefes da PIDE teorizarem sobre o humanismo, só porque libertaram da morte e da prisão alguns que os seus lacaios para tal enfileiraram… Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

152

Importa mais notar que tanto timorenses como portugueses, neste virar do milénio, procuraram expiar as suas culpas, provocadas por potências que nos fizeram agentes de guerras por procuração. Por isso, vou pesquisando a política da ilha do jacaré, notando como ela aqui é condenada a ter várias dimensões. Não apenas a da face visível do poder, como a que Geertz estudou na teatrocracia de Bali. Não apenas a da face invisível do mesmo poder, para uso de militares e adidos de segurança, sentados nos sofás do Hotel Timor, antes de partirem para os seus “briefings” nos “compounds” do ar condicionado, com metralhadora à ilharga, por causa das ajudas de custo. Mas, sobretudo, a de outras dimensões, mais fora do que é captável, como as que Ruy Cinatti nos ensinou. Como a que os bons padres e bons irmãos semeiam. Como aquela que está mais próxima da realidade. Como aquela que implica crescer para cima e crescer por dentro. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

153

Limpemo-nos da hiperinformação  com que nos tentamemprenhar de ouvida os muitos fazedores de literatura de justificação e de memorialismo. Desde os revolucionários frustrados, aos colonizadores que fugiram. Bem como dos agentes dos poderes estabelecidos que fomentam teses situacionistas ou oposicionistas. Aqui e aí, em qualquer lado. Como português à solta, de mal com os poderes estabelecidos por amor da liberdade, apenas me orgulho de as nossas presenças, nestas bandas, terem sido sempre extremamente ténues, na maior parte das vezes, como subdelegação de poderes vindos de Malaca, de Goa ou e de Macau. Mesmo o governador só aqui chegou no século XVIII, permitindo que os abstractos representantes do Estado fossem dominicanos, de vez em quando acirrados e importunados com a rivalidade dos jesuítas. Por mim, não quero balbuciar nomes como lemos pires, jónatas, barrento, mota, maggiolo, porque todos eles estavam no momento inoportuno no lugar errado e seria estúpido culpar almeida santos, soares ou costa gomes. Em timorense, todos estes nomes se escrevem com minúsculas. E só passaram a ter maiúsculas os que se superaram diante das circunstâncias de tragédia que os elevaram a heróis. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

154

Prefiro dizer que plenitude de uma racionalidade importada, de matriz estadual, conforme as normas do manual do cidadão, da organização política e administrativa da nação ou dos manuais de direito constitucional, revistos e anotados, apenas começou a estender as suas sombras nos finais do século XIX, com o governador Celestino e as suas campanhas ditas de soberania, quase iguais às de certos “consultings” jus-magistrais aqui aterrados. Aliás, os governadores republicanos são tão famosos que quase apenas se chamaram Filomeno da Câmara e, depois, Teófilo Duarte, valendo-nos a circunstância de um acaso procurado, a deportação, nos anos trinta, de anti-salazaristas, a qual, posteriormente, nos vai permitir alguns momentos de romântica luta de libertação, face à ocupação japonesa, depois da ocupação australiana, onde os mais dos mortos foram principalmente timores e não malaesPor isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

155

 

Julgo que quanto mais dias por aqui passo, espreitando o corpo da terra desta ilha, ou desvelando a alma das gentes, mais chego à conclusão que só sei que nada sei e que, por isso mesmo, começo a saber alguma coisa.  Há por aqui uma natureza que, na alma destas gentes, é assumida como o objecto perfeito, entre a terra, o ar, a água e o fogo.Karma, panteísmo, Cristo, Maomé, ou Buda, todos são mais propícios para esse acesso ao multidimensional desta complexidade, para aquilo a que damos o nome de Deus. Daí que prefira a síntese de tal transcendente situado, a que chamam poesia e que nos permite manejar o mistério, o amor e algo do infinito. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

156

E depois de tantos livros de memórias e de história, de tantos ódios e de tantas estórias, regresso ao que deve-ser, e ao cancioneiro, com que Cinatti, que até era engenheiro, mas agrónomo, tentou aproximar a ilha do trovadorismo medieval donde nascemos, para se concluir que todas civilizações são mesmo poeticamente contemporâneas e não apenas na filosofia. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. 

 

157

Por mais livros que leia sobre os pretéritos imperfeitos, sobretudo os da descolonização e da ocupação, mais me refugio nas memórias do cancioneiro de Cinatti e assim confirmo como a poesia é mais verdadeira do que a história. Como o Ele, o amigo timorense, disse ao Eu:quando chegámos a Timor içámos os barcos para a montanha, virámos-lhes a quilha para o ar e servimo-nos deles como se fossem casas. O mito manteve-se mas o rito, o treino, perdeu-se, a memória esqueceu-se… Timor foi para nós o fim do mundo…

 

158

No cimo, erguemos a casa sagrada, tal como a Acrópole dos Gregos. E renovámos o culto da serpente, esquecido durante as longas viagens marítimas, quando as filhas da Terra nos foram oferecidas,  pelos primeiros habitantes de Timor em troca de uma paz desejada por vencedores e vencidos. A serpente ficou soberana da Terra, ainda que sob outros nomes, mas o seu poder diminuiu. Já não abarca o Céu, como outrora, senão quando a tromba d’água desaparece nas nuvens ou o arco -íris lhe oferece seguro percurso. Ouve-se, então, a serprente chorar, como nas fontes a água. O Sol, porém, consagrou-a, como esposa. Quando morremos, nem todos nós descemos às entranhas da Terra… Os que foram designados filhos do Sol ascendem ao Quarto Céu do mundo superior e ali ressuscitam iguais ao que eram em vida. Não te surpreendas se te disser que o Quarto Céu é muito parecido com a terra de onde vieram os nossos antepassados. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. A saudade é tão grande que não são poucos os timorenses vivos a receber a visita apaixonada das filhas do Céu….

 

 


 

Eu, desde sempre processado como incorrecto, apoio Manuela Ferreira Leite, pessoa em quem nunca votarei, mesmo que Cristo volte a mergulhar no Tejo

 

 

 

 

159

Quem todos os dias olha o que resta da República dos Portugueses do outro lado do mundo e do outro lado da própria história, com um pouco de metapolítica e pouco lume da razão, compreende a pequenez em que nos vamos destroçando, face àquilo que escrevi no meu primeiro artigo de intervencionismo político, enquanto estudante universitário: somos um neofeudalismo que actua sobre uma anarquia ordenada. Infelizmente, aquilo que são as necessárias “sementes da revolta”, título do meu segundo artigo no mesmo jornaleco semiclandestino e ciclostilado, que o director, muito matreiramente, passou a “sementes da revolução”, perdem-se no processo selectivo dos compadres e das comadres das chamadasforças vivas.

 

160

O que se passou com o BCP e com o BPN, pequenas amostras do que foram os traseiros do cavaquistão, sobretudo a correria dos que consideraram que o importante não era ser  ministro, mas tê-lo sido, é directamente proporcional aos retiros soarentos para os restos coloniais de Macau e das fundações que, da sociedade de casino, de lá importámos e onde aconchegámos muitas finas flores do salazarismo, do marcelismo e do soarismo, a maior parte das quais não parece ser muito boa para cheirar.

 

161

Acresce que estas sucessões círculos concêntricos de neofeudalismosda casta bancoburocrática de sempre, assentes nos pactos de silêncio do rotativismo, espalha a estreiteza dos respectivos quintais a outros mundos, desde o jornalismo e comentarismo às placas giratórias das universidades e dos centros de carimbagem da intelectualidade, bem expressos nos abaixo-assinados com que apoiamos a lista de cartões de visita de um ou outro director que os supremos directores querem sanear. No fundo, no fundo, por todo o lado, das forças vivas, se espalha aquele odor a cadávares adiados com que impregnámos as ditas universidades privadas que, depois de falirem, parece que estão a lançar o processo de fragmentação junto das próprias universidades públicas.

 

162

É a toda esta sucessão de sinais de putrefacção que tenho chamadoditadura da incompetência, quando, como no crepúsculo da I República, regressam os bonzos, os endireitas e os canhotos. É por isso que, em resposta a um jornalista de Lisboa, sobre o caso MFL, recordei que estratégia, como aprendi no IDN, sempre foi  a arte detransformar as vulnerabilidades em potencialidades e, pelo contrário, de evitar que as potencialidades passem a vulnerabilidades. Apenas para concluir que, de tantos líderes anteriores, plenos de tacticismo, mas falhos de estratégia, o PSD, para mal da democracia, não  pode ter estratégia de comunicação, porque ainda anda à procura de estratégia de acção, que lhe permita superar o vazio de funcionalidade no actual sistema político.

 

 

 


 

21.11.08

Há medo, nunca vi tanto medo no meu país…

 

163

 

Quando tomo contacto com a anunciada detenção do homem do BPN, e medito no que o treinador Manuel José qualifica como o país dos suspensórios, prefiro olhar noutra dimensão, na que nos foi delineada por  Agostinho da Silva, por Natália Correia ou por Jorge de Sena. Porque há momentos em que outros dizem tudo aquilo que nebulosamente parecíamos alinhavar. Aconteceu-me, há pouco, com  Fernando Dacosta, o tal continuador do triângulo de mestres que invoca, quando ele proclama: Temos um imaginário público que necessita de ser alimentado. Os sonhos que tivemos no passado continuam no futuro. Daí dizer-se que temos saudade do futuro e não do passado. A minha geração foi altamente privilegiada, porque viveu um compacto de experiências que marcaram definitivamente a segunda metade do século XX. Compete-nos agora sensibilizar os mais jovens. De momento, não há regimes em ascensão. Estamos a assistir ao desbravar de uma era que vai fazendo movimentos para olhar o passado. Já os surrealistas diziam que “se queres caminhar para o futuro tens de olhar para o passado”.

Porque sem memória não há ideias, sem ideias não há pensamento, sem pensamento não há criatividade e sem criatividade não há futuro. Agora as pessoas, sobretudo as que nos governam, estão perversamente a apagar a memória e a vender o seu peixe. É por esta razão que os grandes criadores portugueses estão a dar grande importância à memória.

As coisas não se repetem. A Direita endeusou, a Esquerda simbolizou o Deus do bem e do mal, mas o político tem apenas de ser reduzido à sua condição humana. A maior parte dos nossos políticos, jovens, dinâmicos e pós-modernos ainda não repararam que estão todos no século XIX e não no XXI. Enquanto isto, o grosso das pessoas recusa pensar, sonhar e agarra-se à sua existência como se não houvesse vida paralela. Há medo, nunca vi tanto medo no meu país.

 

 


 

23.11.08

A conspiração de Alves dos Reis, assim vista de mares a Sul de Larantuca

 

 

 

164

Sim! Já foram escritos todos os livros que explicam Ataúro 1975, invasão indonésia, Xanana, chefe da resistência, Ramos Horta, presidente, petróleo, Austrália. Mas ainda não sei suficiente lulic para deixar de ser malai, ainda não compreendi a imanência do crocodilo e de todos meus antepassados, ainda não sei que avô quer dizer mais do que auctoritas. Porque já se passaram muitos séculos desde o ano de sandalosos livros de deve e haver com a foz do Rio das Pérolas, coisa que é mais do que o papiar cristão ou que a busca do que está além da canela. Pelo menos, foram trezentos anos antes de 1812, depois de chins e dominicanos, pombais e jesuítas, e até filipes e 1640, tendo finalmente arribado, do Rio de Janeiro, um tal Vitorino Gusmão, que detectou a ilha dividida entre um partido a favor do rei de Motael e outro a favor do Padre Governador do Bispado, com a praça de S. Alteza Real abandonada.

 

165

Na altura,  estava  o pessoal militar reduzido a doze Europeus, vindos como degredados de Goa, a quatro oficiais em iguais circunstâncias e somente um tenente coronel, um major, e um capitão, apenas os três que  tinham vindo servir voluntariamente. Embora houvesse cem soldados timores, mas sem soldo nenhum, enquanto o que recebiam Europeus e Goeses apenas dava para comerem durante quatro meses, sendo, portanto, forçados a comerciar, a ir aos diferentes reinos com fazendas muitos ordinárias, a troco de sândalo, cera e de escravos, num verdadeiro tráfico de mercancias…

 

166

Mas, de tanto ler e reler tudo o que trouxe, e muito do que por aqui descobri, para ler, reler e anotar, entre letra de forma, fotocópia e discos duros e flexíveis, confesso que já confundo Luna de Oliveira com o relato de Manuel Dias Loureiro a Judite de Sousa, e o ano de 1677, depois da ida a Porto Rico, com a conversa que o distinto conselheiro teve com António Marta. E já nem sei se tal aconteceu, antes ou depois, de um tal Oliveira e Costa andar como vice do Banco Europeu de não sei que tostões, ou depois de muitos perdões de dívidas a homens de Aveiro, a homens do Norte, a muitas contas de Mecenas e Mercenas, os quais, aliás, nada têm a ver com o aeroporto de Macau, nem com os campos de golfe do troca o prego.

 

167

Porque os PSs e os PSDs nunca tiveram financiamento partidário sem ser previamente auditado, nem secretários gerais com jantaradas no restaurante da tia Rita, da tia Matilda, do Manel das Iscas, e do ver se te avias naquilo que Antero de Quental escreveu sobre a casta bancoburocrática do rotativismo, ou sobre aquilo que ensinavam ministros de salazar reconvertidos à tia Rita, à tia Matilda e ao Manel das Iscas, depois de muitos suores tropicalíssimos. Porque sempre há o tal que teve Soares na presidência, o que tem Cavaco na presidência, o que tem Sócrates com livros sobre os meninos de oiro apresentados pelo mesmo Loureiro, que até livros da Universidade de Coimbra chegou a patrocinar.

 

168

O Vale e Azevedo que foi adjunto de um dos governos de Balsemão está agora em Londres. O Menezes, que voltou para Gaia, quer inverter a teoria camiliana de a queda do Anjo. O Ti Manel da Fava Rica vai escrever memórias com muita espuma, porque, como lhe faltavam balas, mandou Guerreiro fazê-las de pau, rijo como o ferro, e, juntamente algumas de calibre menor, de ferro batido, que trouxera de Macau, feito em obra. E Pedro de Mello certificou que tudo foi determinado para castigar as sublevações levantamentos que achou nas ditas ilhas,  e se vão continuando e sugerindo…

 

169

Sei que, de Lisboa, vêm computadores Magalhães e carrinhas a electricidade, de quadrilátera estética oriental, que em Timor se vai construir um oleadutor, uma barragem de água destilada e que, da Indonésia, através do Lopes da Cruz, virá o justo desejo de fazer parte da CPLP, porque há blogues Fretilins e juízes Ivos, e juízes Rosas, e que há blogues anti-fretilins, e que também há relatórios de todas as cores, sobre a origem  dos partidos timorenses, sobre as teorias científicas wallersteinianas, sobre constitucionalismos mirandenses e canotilhenses, sobre memorialismos e politologias de reformas autárquicas, prebendadas, subsidiadas, viajadas, elogiadas,  e muitos outros que hão-de desembarcar, chegar, ver, receber e vencer. Por mim, que só sei que nada sei, vou continuando a ter que estudar, a ter que seguir o conselho da muita experiência, porque ainda há muito que quero fazer, sem nenhuma jantarada, almoçarada ou uiscada no hotel timor, com muita e muita gente que bebe do fino e dá parecer…

 

170

Estou aqui sentado no meu cantinho, diante das árvores do meu jardim, em mais uma noite em que dolorosamente me fico sem dormir, estou aqui, sentido, diante de mim, por dentro de mim,  confirmando, nas memórias das gentes, nos sinais das pedras, nas conversas de muitos, algo que se passou desde que o almirante chinês que podia ter feito a descoberta do caminho marítimo  da Índia para Lisboa, acabou por ter que regressar ao império do quadrado debaixo do céu, mui celeste, rodeado de sombras, porque a caravela era mais tecnologicamente atractiva que a grande nau, grande tormenta, de quem  se sentia ameaçado por gentes do Norte. Mas se o dono do casino da Coreia do Kim Il Sung já dita desditas, valia mais o Alves dos Reis macromonetário, precursor de Keynes, do sonhar é fácil. Porque chapéus há muitos, seus palermas, no tempo em que os vascos eram santanas.

 


24.11.08

Apenas continuo a fingir que ainda posso desembarcar em Lifau e passar a Solor e Flores, sem fugir para o Ataúro

 

(in memoriam de Rui Palma Carlos, que aqui veio ao fim de Portugal e nos deixou, em surrealismo de 1977 , este quadro dito Libertação)

 

 

 

 

171

Os meus alunos e os meus filhos não são do tempo dos restos do Império que nunca foi o Quinto, quando alguns ainda diziam que podíamos visitar um tempo em que o tempo tinha parado, porque, por cá,  ainda vivíamos antes de Bandung, mas também antes dos massacres do Ruanda, antes da guerra civil de Angola, antes de Mugabe, antes de Mandella.

 

172

Era o tempo em que ainda era ministro Joaquim da Silva Cunha, que fumava cachimbo e despachava, com pormenores de lápis atrás da orelha, uma qualquer construção de barragens lá para os lados da Namíbia, sem ceder à pressão dos carcamanos e a outras, incluindo as da compra do poder. Até desdenhava daquela que lhe fazia a bicha dos intelectuários, desses que são intelectuais porque foram ministros, tal como foram ministros porque todos diziam que eram intelectuais, mas sem que a inteligênciase tivesse casado com a honra, porque mesmo em glosas de um quarto de hora  antes de morrerem continuam a ser tão tratantes como sempre foram.

 

 

173

Era um tempo em que Lisboa vivia como se o Príncipe Regente ainda pudesse largar de barco do cais da Junqueira, com o Estado na bagagem de porão, sempre disponível para ocupar a colónia do Sacramento, para conquistar terreno na Amazónia, para poder contar com discursos feitos pelo Silvestre Pinheiro Ferreira, contra a oclocracia, ou com planos de reconstrução bancária do José da Silva Lisboa, para não ter que se dar razão a Weber, e ao protestantismo como a única ética possível para o dito capitalismo, o que vai do Oliveira e Costa ao Valle e Azevedo, onde nenhum deles é zeca nem diabo.

 

174

Alguns dos meus leitores que pensam ter horas certas, bem certinhas, quando lêem, com os olhos do respectivo a priori,  pré-captando (donde veio preceito) e cum-captando (donde veio conceito), o tempo e o lugar de emissão deste meu blogue, sem admitirem que, por aqui, tudo é nove horas mais cedo, também nunca hão-de compreender como, de vez em quando, assim vir ao mais cedo é talvez poder andar, no tempo, antes do tempo, coisa que, contudo, apenas é admissível para os que, não tendo queda para a literatura de justificação do revisionismo, julgam que o futuro é tempo que ainda vale a pena conjugar.

 

175

Não é um acaso, mas apenas uma procura, a que, neste período, entre Obama eleito e o melão de Sócrates entreaberto, a que vou fazendo por esta ilha, pretensamente perdida. A tal que os administradores do império quiseram esquecer, a tal que os agentes da descolonização, do anti-rapidamente e em força, mais rapidamente se quiseram livrar dela, com o absurdo, entendível, de gonçalvistas promoverem partidos integracionistas face à Indonésia, enquanto nacionalistase super-direitistas iam traindo, cavando e dando às vilas diogo. Por isso me lembro da morte do Rui, lá no mês de Maio, para que não mais morra.

 

176

Porque, in medio, não estava a virtus, mas  moderadíssimos e malandríssimos oficiais, de carreira ainda mais ambiciosa, que, usando o “divide et impera”, com riscos pouco calculados, prenhes de especialismos em estratégia, apenas não ponderaram a hipótese de duzentas mil vidas, decepadas por maus cálculos de “intelligence”.

 

177

Até nem faltaram sequer especialistas em importação de sandalosas iguarias, que não sabiam de poços de petróleo, nem entendiam que valeria a pena a soma de São Tomé com Timor, para a hipótese de um novo ministro das colónias que não tratasse apenas das contrapartidas dos casinos em omnipotência dita moral que é pior do que a outra. Pelo menos dava mais emprego do que o Macau do Stanley e outras afundações que são as únicas que julgam poder emitir adequadas certidões de patriotismo, porque, dos ostrácicos, nunca rezará a história, nem do futuro.

 

178

Portugal ainda era o erat e o tal erat era tão real que contá-lo, três décadas volvidas, pode parecer que soa a falsete. Mas o erat era mesmo em todo o lado, do mesmo modo, onde para fazermos a quarta classe sabíamos dos afluentes do Mondego e dos apeadeiros da Linha de Oeste, até que chegaram os que gritaram, e conseguiram, o nem mais um soldado para as colónias.

 

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Os que traduziam o estilo de Jane Fonda com o gnóstico de Mao Tse Tung, pintando de vermelho e amarelo as paredes da gare marítima de Alcântara, enquanto outros, mais telúricos e dados a santinhos de barro e missal, viam filmes do Eisenstein e punham Cunhal no lugar de Nossa Senhora de Fátima. Mas a maior parte de tais outros nem sabia para que lado seguir, entre os que partiam para Franças devalise de cartão e os soldadinhos do adeus até ao meu regresso com o angola é nossa tatuado por cima do amor de mãe.

 

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E foi assim que correu Abril num fazer coisas em estampido, no que, noutros lugares, onde o tempo havia sido tempo do seu próprio tempo, havia demorado séculos de guerras civis, de guerras mundiais, de guerras coloniais. Eu, pelo menos, tive a vantagem de ser um desses meninos que passou noites em claro a transformar, em escrita, poemas por cumprir e manifestos políticos de uma revolução a haver, enquanto se ouvia Zeca Afonso e Chico Buarque, se liam coisas da arca do Pessoa, assim postas nas pretensas obras completas da edição brasileira, ou se descobria a Cecília, dos Açores e do Brasil. Para, bem lusotropical, me preparar para a guerra que um dia tinha que vir, com dois anos de comissão em terras de malária, mísseis e missangas.

 

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Por mim, que acabei por não vir à guerra, por não fugir para Paris, mas a ter que gerir o resultado de não ter havido guerras civis, guerras mundiais e guerras coloniais, apenas continuo a fingir que ainda posso desembarcar em Lifau e passar a Solor e Flores, sem fugir para o Ataúro.

 


 

 

A insustentável leveza do “to be or not to be, sendo que sonhamos ser

 

 

 

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Agradeço aos muitos amigos que me enviaram o artigo, de hoje, do jornal “Público”, da autoria de Pedro Rosa Mendes, dito “Timor Leste, a Ilha Insustentável”. Sobre a matéria, as frases que, neste blogue, já escrevi assumem uma perspectiva diversa da expressa pelo correspondente da Lusa, homem de excelente palavra, óptima informação e com valores e crenças.  Sobretudo, porque não tenho, nem nunca tive, altas expectativas de uma ilha da utopia, nem as consequentes frustrações.

 

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Segundo, porque basta fazer comparativismo, e colocarmos Timor do Sol Nascente no contexto de outras Nações da respectiva Sociedade das Nações, para concluirmos que se trata de  uma realidade tão normal em  tal anormal quanto o seria a República dos Portugueses, se a relativizássemos no contexto de uma pequena Sociedade das Nações, restrita aos nórdicos escandinavos. Feliz, ou infelizmente, o meu estatuto de agente da cooperação obriga-me a ter que dizer antes e, para dentro, através de adequado relatório à consideração superior, mesmo que seja um tombo no caixotinho do lixo, o que, para fora, me apetecia comunicar e até polemizar.

 

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Mas, dentro de algumas semanas, poderei, em plena liberdade académica, se ela ainda houver, para mim, analisar, não tanto a questiúncula portuguesa, quanto a existência de uma das primeiras tentativas de criação de uma secção colonial do anticolonialismo da supra-estadualidade onusiana, com o seu “state building” de laboratório e o seu “nation building” de teses de mestrado e doutoramento.  Felizmente, não oriento nenhuma e se, por improvável acaso, for convidado para um júri desses, recordarei que continuo em regime de  ”non grata” para com os missionários e missionárias de tal “way of life”. Apesar de herético, prefiro a companhia e os conselhos do Padre João Felgueiras, que é homem de fé e maneja tão bem o lume da razão quanto o lume da profecia. E vou continuar a decifrar os conselhos do Professor José Mattoso.

 

 

 


 

A passarada começa a chilrear depois da tempestade. Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia…

 

 

 

 

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Acordo, depois de muito trabalho e de poucas horas de sono, depois de meditada reflexão sobre exercícios de avaliação de alunos de uma bela licenciatura em direito, lançada pela cooperação da universidade portuguesa, com o esforço de muita gente, representada pelo Professor Doutor Pedro Bacelar de Vasconcelos. Fico feliz com os resultados do diálogo de culturas e de civilizações, com o comparativismo, com a análise complexa das situações de violência estrutural da colonização, da ocupação militar, do violento despertar da institucionalização dos conflitos pela via partidária, do lançamento do Estado de Direito… A esperança pode vir dos próprios desesperados.

 

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Converso nas arcadas da universidade com variados alunos, desde deputados da situação e da oposição, desde antigos candidatos a presidentes com actuais reitores e membros dos gabinestes ministerais, desde altos graduados das forças armadas a simples bombeiros, gente de todas as condições, de todas as línguas, de todas as formações, uns vindos de Lisboa, outros da Indonésia, outros da Austrália.Vale mais exeprimentá-lo do que julgá-lo, mas julguem-no todos os inspectores da cooperação e dos manuais de procedimentos que podem achar interessante umas férias no Hotel Timor, com saltos a Bali e às praias de Comoro. Hoje, em pleno desabar de uma forte chuvada tropical, viveu-se a inauguração da Casa da Europa, com o comissário Michel, bem como de alguns melhoramentos no hospital Guido Valadares. Barroso, aqui, deu, de certeza, o seu apoio.

 

 

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Nisto, não elaboro teorias, pratico e tento cumprir uma ideia que eu penso ser a de Portugal universal e pós-imperial, que é a que passa pelo abraço armilar da CPLP, aqui registado por Cinatti, Reis Thomaz, José Mattoso ou Rui Palma Carlos. Num ensinar e num aprender como em qualquer universidade do mundo, como as melhores onde já tenho feito exactamente o mesmo, da Clássica de Lisboa à Técnica também de Lisboa, da UNB de Brasília, à francesa de Estrasburgo.

 

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Leio e releio, o tal artigo-manifesto, tão bem construído por Pedro Rosa Mendes, assente numa opinião fundamentada, numa concepção coerente do mundo e da vida, escrito num tom de revolta que apenas expressa a angústia de alguém que ama esta ilha. É uma pedrada que pode despertar homens de boa vontade. Leio, infelizmente,  imediatas reacções de puritanos analistas que vivem entre o tudo e o seu nada. Até sou capaz de prever que, dentro de dias, aí na metrópole, com reflexos condicionados neo-imperiais, haverá quem proponha o regresso do “white man’s burden”, super-demoliberal, à bela maneira da SDN, quando Kipling, o autor da frase, andava com os mesmos símbolos de Ramos Horta na camisa.

 

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Apenas conselho que passemos a uma fase superior de análise do problema timorense: vamos, como me escrevia um aluno que vou citar, ao âmago das coisas, vamos auma abstracção mais elevada, mas que, ao mesmo tempo, sente os pés firmes na terra, na medida em que relacioan sempre o teórico com a prática concreta, ainda mais com a realidade que atravessamos e melhor ainda quando se dirige à conjuntura actual do nosso país. Até há por aí ex-maoístas como a Ana Gomes ou o Zé Manel Durão Barroso que bem precisam de dar uma ensabadoela de amor a Timor nalguns ocidentalizados mais à pressa da redacção de “O Grito do Povo”. E há também uns padres e umas freirinhas aqui da ilha que têm de ir a Fátima para uma vela à divindade, para que fora da causa de Timor não fique um único Deus marginalizado…

 

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Para descanso de alguns editorialistas do ex-maoísmo, e agora fundamentalistas neoliberais, neo-utilitaristas e neoconservadores, os mesmos que, com esse gnosticismo vérmico, apoiaram Bush e a invasão do Iraque, seria melhor que não repetissem tretas que já ouvi, sobre esta metade de uma ilha, vindas de fascistas folclóricos, cobardes e pica-subsídios, que apelavam ao desembarque de cortadores de cabeças, sem perceberem nada das almas de antepassados ou dos crocodilos que são avôs. Porque quase todos repetem o que disse Junot e o Maneta sobre os reaccionários e sebastianistas lusitanos dos começos do século XIX, ou os devoristas discursos parlamentares de Costa Cabral, a nossa tradução de Guizot em calão, sobre opovão da Patuleia e da Maria da Fonte, antes de Saldanha pedir a intervenção da comunidade internaciona,l para que se repusesse a civilização da Convenção do Gramido, isto é, os interesses de Espanha, da Grã-Bretanha e da França. Prefiro continuar a ler o Espectro e a refundar a Carbonária, contra o governador que vendeu parte destas ilhas à companhia de deve e haver lá dos Países Baixos.

 

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Julgo que, nestes domínios de timorologia, a história demoliberal portuguesa pouco deixou de orgulhosamente recordável cá pelo sol nascente, desde o tal  governador que vendeu parte do estabelecimento, para cobertura do défice orçamental, ao abandono insolente e ignorante, concluído com a retirada para Ataúro, quando a tropa era um departamento de bombeiros incendiários, brincando a revoluções, guerra fria e “gritos do povo” sobre um nem mais um soldado para as colónias, para que morram apenas os coloniais, nestes jogos de guerra que aqui vamos propagar, para gozo de Pequim, Moscovo e Washington.

 

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Mesmo em demoliberalismos esotéricos, apenas se detecta uma loja Oceania, lá nos tempos da I República, um regime que aqui teve como principal governador Filomeno da Câmara, o dos fifis do pós-28 de Maio. Fica, contudo, de forma paradoxal, uma ideia de resistência contra os japoneses, com deportados anarquistas, tipo Carrascalão, e republicanos, tipo Cal Brandão ou tenente Pires, quando as tais sociedades secretas eram heróicas pela liberdade e correctas com a pátria, a quem cederam os simbolos da soberania no fim da guerra.

 

 

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Como leio num trabalho de um aluno: se perguntarmos à maioria dos timorenses dos distritos… que resistiu á invasão indonésia, porque hoje estamos independentes, as pessoas irão certamente atribuir o facto a Deus, aos ancestrais, aos nossos dirigentes e aos chefes tradicionais ou ainda à Natureza, como afirma a maioria dos guerrilheiros sobreviventes dos 24 anos de resistência nas matas de Timor-Leste. E isto é uma prova da existência de uma cultura, de uma comunidade regida por um direito consuetudinário que, ao longo dos séculos, sempre conduziu este povo até à sua libertação final do jugo colonial e tornar-se uma país independente.

 

 

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E vai chegando a madrugada. A passarada começa a chilrear depois da tempestade. As pequenas osgas alegram-se no toke, toke. Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia. Um povo que quer ter direito a ser povo vai despertando para mais um dia de luta. Um povo que quer ser nação, unir-se em torno de uma comunhão pelas coisas que se amam, e pelas quais dezenas, centenas, milhares, centenas de meilhares deram a vida. Leio trabalho de um desses alunos: em Timor-Leste, particularmente nas áreas remotas, ainda reina o sincretismo, não sendo fácil às pessoas distinguirem os princípios de Direito dos da Religião, da moral e do costume. Enquanto em Dili as pessoas se viram cada vez  mais para o profano, procurando por todos os meios assimilar conhecimentos dos quais pensam poder dominar a natureza, nas montanhas as pessoas preocupam-se mais com as necessidades imediatas e, quando muito, as de médio prazo, passando os dias e, principalmente, as noites a admirar a natureza, a tentar perceber a saa concatenação com a alma dos ancestrais,e com uma lisan e uma lulik. A sua maior preocupação é o estabelecimento de uma harmonia espiritual, física e mesmo material com a Natureza, pois sabe e está convicto de que nós somos apnas uma ínfima parte do Cosmos.

 

 

 


 

Os fumos do artigo já foram afastados pela chuva, e pela brisa de um novo dia que nasceu, com as acácias verdes e vermelhas

 

 

 

 

 

 

 

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A contabilidade dos dias, na dimensão visível da sua aparência, começa a diluir-se na rotina. Xanana Gusmão está em Lisboa. Cravinho vai em breve aterrar em Timor. A embaixada está em pleno. A CPLP em funcionamento. As missões estão todas  cumpridas e já quase todos os cumpridores do regulamento que vem na Gorda podem pedir a reforma, a aposentação, a posta, o refrigério do subsídio vitalício. Os fumos do artigo de Pedro Rosa Mendes já foram afastados pela chuva, e pela brisa de um novo dia que nasceu e as acácias continuam verdes e vermelhas, como dizia o Alberto Osório de Castro. Os tipos que escrevem com tal intensidade têm de amar esta terra e esta gente e o respectivo alerta, limpo dos preconceitos e dos fantasmas, pode ter servido para unir os irmãos desavindos da partidocracia, e para que o presidente não ande por aí a mostrar a fralda da camisa, para gáudio dos sofás da intriga, no antigo hotel Makota.

 

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A tutela neocolonial da chamada tecnocracia multicultural, as muitas e desvairadas gentes de todas as sete partidas que, vindas de inúmeros Estados falhados, se assumem como super-especialistas no “state building”, são coisas que muitos apenas julgam só porque nunca as puderam chegar  a experimentar. Esta nebulosa apátrida de certo funcionalismo supra-estatal, que vai lançando seus acampamentos em todos os sítios ditos da desgraça, pode, desenraizadamente, ajudar a destruir as energias libertadoras da política. Há resmas de teorias de justificação para o estado a que chegámos, resmas e redes de amiguismos que desempenharam funções no BPN, que meteram cunhas para patrocínios do BPN e em todos os outros BPNs, com outro nome e outros partidos matriciais, filhos dos mesmo bloco, mas que são iguais em amiguismos e em cunhas, porque, nas pátrias dos poderios sem autoridade, por onde nos arrastamos, quem não aparece não existe.

 

 

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A democracia não é uma qualquer engenharia social que seja abstractamente cega. Eu, pelo menos, não consigo admitir que ex-políticos, adeptos e praticantes dos planeamentismos centralistas, possam ser recrutados agora para a construção de capitalismos a retalho, com retórica de desenvolvimento sustentável, apenas porque assentam, como chefes de contínuos, numa legião de recrutados estagiários, saidíssimos das faculdades do fabrico em série, ou das avaliações de sargentos, das tais que nos põem em fila indiana no dia da inspecção, à procura do funcionário a promover por mérito excepcional, medida pela ficha da classificação de serviço. Há, por estas e muitas outras bandas, alguns imensos e pretensos gurus que não são peritos de qualquer coisa, em qualquer lugar com tempo, mas que sabem exercitar a arte do relatório cinzento, desses “papers” que transformam as crises políticas, económicas e sociais numa espécie de modo de vida de alguns desempregados estruturais, com os seus “caterings”, os seus “briefings”, os seus “compounds” ambulantes, coisas exógenas e exóticas, com que se vai poluindo a paisagem das coisas humanas e sociais.

 

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Nesse jardim zoológico que vai invocando a superioridade quase celestial da metapolítica, não sei se vamos gastando dinheirinhos que bem poderiam servir para dar segurança, matar a fome e lutar contra a doença de todos. Uma organização ou uma cooperação internacionais, quando se tornam infuncionais, podem transfigurar-se em entidades feitas de poder pelo poder, mas já perderam o sentido dos gestos.