Nov 25

Sobre a forma republicana de governo

Intervenção no colóquio sobre a revisão constitucional e a monarquia em 25 de Novembro de 1989

Embora tenha de agradecer aos organizadores o convite que me foi feito, queria dizer que não me sinto titulado para debates da área puramente constitucionalista. Apesar da minha remota formação de jurista, do meu gosto pelo direito constitucional e da minha vocação politológica, julgo que iria além da minha chinela se entrasse em dialécticas típicas da hermenêutica constitucionalista. Além disso, até nem tenho fé absolutamente nenhuma naquele tipo de constitucionalismo que olha o Texto à maneira dos Pontifices romanos e que certas ilusões do nosso tempo têm transformado numa espécie de religião civil.
Mas se não posso interpretar, como constitucionalista, a cláusula pétrea vigente em Portugal, não quero deixar de a tentar ler de forma político-cultural.
Interpretando tal parcela de texto que vincula os portugueses à forma republicana de governo, talvez seja capaz de dizer, com todo o cuidado literal e doutrinário, que foi alguém de formação monárquica que inspirou esse agregado de palavras. Com efeito, julgo não poder haver nenhum doutrinador monárquico, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo os próprios integralistas, que não defenda a monarquia como forma republicana de governo.
Em abono desta afirmação, poderia, aliás, começar por invocar Francisco Suarez e depois passar aos clássicos do tradicionalismo contra-revolucionário e anti-absolutista, dado que todos eles assentaram as suas crenças consensualistas no pacto de associação e na consequente origem popular do poder.
Diria até que, para ser profundamente constitucionalista, teria de começar por reverenciar a matriz de todos os constitucionalismos modernos, que é o muito res publicano constitucionalismo da monarquia britânica, um constitucionalismo que nunca precisou do conceito de Estado nem do conceito de Constituição para ser a matriz de todos os Estados de Direito Democráticos da nossa contemporaneidade.
E mesmo na nossa história portuguesa, talvez convenha dizer que antes das constituições liberais escritas, nós já tínhamos sido, antes da recepção do iluminismo absolutista, com o seu despotismo ministerial, um Estado Constitucional e, desse modelo de Constituição Histórica, ainda hoje poderíamos extrair muitas lições de consensualismo para alguns desvios absolutizantes do nosso tempo.
Até tivemos uma monarquia e uma constituição, as nossas tão esquecidas leis fundamentais, antes de se terem elaborado os conceitos de Estado Moderno e de soberania, nos séculos XV e XVI. Isto é, a organização política dos portugueses tinha não só uma espécie de Estado pré-estadualista como também um género de constituição pré-constitucionalista.
A este respeito, direi apenas que o problema da Constituição é um problema eterno do homem, o problema da luta pelo controlo do poder através de uma ideia, de uma ideia de moral ou de uma ideia de direito, contra a pura força.
E como acontece sempre, cada situação histórica tem a sua constituição e o consequente registo do equilíbrio que se conseguiu estabelecer entre a força e a ideia, entre o poder e a liberdade. Ora, porque cada constituição é sempre uma obra humana eis que tem necessariamente de ser uma obra imperfeita.
Porque o problema de qualquer Constituição é sempre o problema de institucionalização do poder. É sempre o problema de construirmos o Estado à imagem e semelhança de algo que não foi construído: o Homem.
Na verdade, muitos parecem esquecer que o Homem, além de razão e vontade, é também imaginação, é também um animal simbólico e, consequentemente, a nossa Cidade e a nossa Constituição não podem excluir esta realidade, a verdadeira e necessária terceira dimensão: o Homem como animal simbólico, onde o elemento imaginação constitui uma vertente estrutural da existência.
Daí que não possamos ter apenas um Estado racional e construtivista. Temos que ter um Estado e uma Constituição que assumam a dimensão mítica da polis, que institucionalizem, não apenas a autoridade racional, mas também a autoridade tradicional, aliás as únicas formas de seguro contra o desespero da autoridade carismática, para utilizarmos as categorias weberianas. Isto é, temos de ter uma organização das coisas políticas que não seja apenas sociedade, mesmo que nascida de um contrato de constituintes ou de um referendo, mas também comunidade.
Temos que ultrapassar o simples problema de uma sociedade de legalidade e que assunir os génios invisíveis da cidade, a chamada legitimidade. Temos que dar alma àquelas constituições escritas que continuam marcadas por velhas e caducas ilusões de historicismo e de construtivismo positivistas, temos que lhes dar a força daquelas clássicas concepções do homem que são as forças dos consensualismos gradualistas, dos realismos, dos evolucionismos, das velhas leis fundamentais.
Temos todos que fazer uma hermenêutica adequada para o nosso tempo, que fazer um esforço de construção da lei à imagem e semelhança da cidade. E para tanto, temos de ter a humildade de ler os velhos clássicos, de ler a melhor constituição que nós tivemos, aquela constituição que não saiu, como dizia o velho Professor Cabral de Moncada, da cabeça de Minerva, num determinado momento histórico, com a ilusão de querer controlar todo o futuro.
Temos de regressar ao espírito daquelas constituições que nascem dos plebiscitos quotidianos, dos seculares consensos, dos contratos permanentes entre as sociedades e essas coisas que são puros instrumentos dessas mesmas sociedades que são os Governos.

Nov 08

A sociedade aberta numa estante fechada

Karl Raimund Popper, hoje com cerca de noventa anos, constitui, sem dúvida, um dos principais patriarcas intelectuais deste nosso tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só há poucos anos é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.  Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.  Apesar de tanto atraso, Popper também tem sido um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utiliza para desgarradas citações.  Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo: The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.  O exemplar da Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.  Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma. Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.  Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente. Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam! Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.