Ago 28

Entrevista

28 de Agosto de 2008

 

Entrevista Professor Adelino Maltez

 

 

1 — A menos de um ano das eleições legislativas, que avaliação faz do estado do País?

 

Um Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas..porque, entre o cavaquismo presidencial e o socratismo da governança, o sistema vai acirrando o desespero sem esperança, onde até mingua a própria esperança dos desesperados

 

 

 

 

2 — Esta crise que se vive no País é apenas económica e social ou tem também traços de uma crise mais profunda, relacionada com o sistema democrático?

 

Os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas

 

3 — O poder político tem feito tudo o que está ao seu alcance para inverter a tendência de crise?

 

Quase três décadas e meia depois do fim do “antigo regime”, onde a ilusão revolucionária dos cadetes do 28 de Maio virou uma viradeira, mais fradesca do que caceteira, apenas temos de concluir que também este sistema virou situacionista, recuperando fantasmas e preconceitos da viradeira de sempre, sobretudo nas suas facetas de inquisitorialismo e de centralismo, as mesmas que promovem a sucessão de micro-autoritarismos sub-estatais. Pior do que isso: com uma democracia deslumbrada pela eficácia da governabilidade, reforçaram-se as nossas facetas anti-societárias e anti-pluralistas, para gáudio do negocismo dos chamados homens de sucesso.

 

 

4 — Uma das grandes causas para o País continuar longe dos índices de desenvolvimento desejáveis prendem-se com o facto de Portugal não ter um projecto colectivo mobilizador?

 

Sempre que penso neste país resignado ao rotativismo do mais do mesmo, onde os tiques da persiganga recrudescem, apenas tenho que reconhecer que são altos os custos individuais dos que querem praticar a independência dos homens livres. Porque voltámos àquele autoritarismo de rebanho que vive na tristeza do temor reverencial do “yes, minister” ou do “sim, senhor director”. Daí que os detentores do poder não consigam compreender como se vai acumulando a explosividade da revolta que, numa qualquer encruzilhada, pode ser rastilhada por um qualquer acaso procurado, como se traduzem as nossas habituais crises. Só que a próxima será importada dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais…

 

5 — A opinião pública aguarda e espera por um acontecimento que a mobilize. Qual poderia ser esse acontecimento?

 

Quem conhece a longa história das nossas sucessivas frustrações colectivas, sabe como é doloroso confirmarmos que a presente democracia deixou de ser dos nobres pais-fundadores e caiu nas teias dos “filhos de algo”. A culpa talvez esteja em certo modo-de-ser daqueless portugueses que não são sonhadores activos, esses que procuraram o paraíso na expansão ou na emigração e que resistem no não retorno. Agora domina o enjoado inactivo e subsidiodependente, acirrado por certa lisonja encantatória de algumas facetas do PREC. Os mesmos que tanto repudiam o universalismo da nossa tradição de tolerância e temem que as chamadas minorias étnicas entrem, com eles, em concorrência face ao assistencialismo de um Estado que pretendia ser de bem-estar e que tende a ser, cada vez mais, de mal-estar.

 

 

6 — De que forma se pode recuperar o País? Cabe aos partidos políticos e aos poderes instituídos fazê-lo mas parece que muitas vezes não há essa vontade. Porquê?

 

Presos à pilotagem automática de uma governança sem governo, que se desculpa com a integração europeia e a globalização, deixámo-nos enrodilhar por todos quantos detestam o empreendedorismo e o sentido do risco. Há uma massa cada vez mais inerte e desorganizada que não consegue ser mobilizada para o bem comum, entregando-se alienadamente ao chicote e à cenoura do verticalismo hierarquista do estadão que continua a táctica do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

 

7 — Como avalia, actualmente, o sistema político português?

 

Há um Estado filho do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, Afonso Costa e Oliveira Salazar que teve em Soares e Cavaco os principais restauradores. Geraram estes conservadores do que está, mas não do que deve ser, os tais que até se dizem de esquerda, confundindo esta com o estatismo. Não reparam que o Estado absolutista, seja autoritário ou sectário, pode transformar a democracia no desepero de um partido-sistema que, mesmo quando se transfigura no rotativismo bipartidário, não deixa de manter a mentalidade do partido único ou a cair na tentação usurpadora da personalização do poder

 

 

8 — O Parlamento continua a ser um lugar de interesses ou a qualidade da casa da democracia é hoje superior à que existia no passado?

 

 

9 — Há uma tradição em Portugal para a coabitação do chamado centrão. Isso vicia o jogo do poder ou apenas o sustenta?

                         

 

10 — Hoje já não faz sentido falar em ideologias? Elas estão a perecer com a globalização?

 

Uma ideologia não passa de uma ideia com peso social, onde o elemento ideia, para se propagar na sociedade, se transforma num elemento emocional e num elemento mítico. Sempre houve ideologias e sempre houve dificuldade em identificar a ideologia dominante, dado que ela não precisa de propaganda e difunde-se suavemente, como o ar que se respira. Diremos que, aqui e agora, há uma ideologia vencedora, o demoliberalismo, e há ideologias que pretendem conquistar esse terreno, mostrando-se tão agressivas quanto a falta de receptividade das pessoas face a essas causas ditas fracturantes, ditas de direita ou de esquerda. Basta reparar que os principais inimigos do demoliberalismo têm sido conquistados, desde os democratas-cristãos e socialistas, dos meados do século XIX, que se transformaram em gestores do demoliberalismo no pós-guerra, aos fascistas, hoje ditos pós-fascistas à italiana, e aos comunistas arrependidos, do tipo ministros de Guterres e Sócrates, para concluirmos como o processo sincrético de aculturação vai marchando…

 

11 — O PS, no Governo, desde 2005, tem mostrado isso mesmo, ou seja, que as ideologias já não interessam na governação?

 

O PS pós-revolucionário, que meteu o socialismo na gaveta, sempre foi um centro de reciclagem para a democracia pluralista de ex-radicais de esquerda e ex-comunistas, acompanhados até por ministros e altos dignitários do regime derrubado em 1974. Apenas digo que continua a cumprir a sua missão, embora os 20% de simpatias, nas sondagens, pelo PCP e pelo BE, aconselhem a que retome o neo-soarismo, que captou a extrema-esquerda e os anticunhalistas. Daí não estranhar o próximo anúncio das pazes de Sócrates com Alegre…

 

12 — A direita, que registou mudanças na liderança no maior partido da oposição, pode mudar alguma coisa no espectro político?

 

Não há esquerdas nem direitas que sejam secularmente políticas, dado que as chamadas “causas” foram usurpadas por certo confessionalismo político-religioso, quase congreganista, do novo politicamente correcto, como se os valores morais fossem monopólio dos fracturantes do esquerdismo, do partido arco-iris, ou da velha sacristia. Daí que quem quiser ser fiel ao velho mas não antiquado humanismo, estóico, renascentista, ou iluminista, corra o risco de ter que passar para o exílio interno, só porque não alinha com o colectivismo sectário de certas congregações catolaicas ou comunistas, como avisava Orwell.

 

13 — Manuela Ferreira Leite pode complicar, na sua opinião, a vida a José Sócrates e ao PS em 2009?

 

Manuela ainda não abriu o seu melão… Por mim, apenas quero saber se ela pretende ser uma espécie de “vice-rei” de Cavaco, mantendo o rotativismo deste Bloco Central, ou se quer esquecer-se que apenas entrou no PSD em 1985. Continuarei a ler os próximos artigos de Luís Filipe Menezes e as propostas de novos partidos girondino-catolaicos de Alberto João Jardim…

 

14 — Como avalia as reformas implantadas pelo PS nos últimos três anos? Houve, de facto, ímpeto reformista?

 

Quiseram reformar o sistema, continuando a confundi-lo com o regime, quando deveriam evitar esse perigoso pântano, cheio de tabus, onde muitos querem escapar para a comissão europeia, ou os onusianos apoios aos refugiados e à aliança de civilizações, para que os ausentes-presentes continuem a conspiração de avós e netos, tipo Soares, Freitas ou Adriano. Apenas os aconselho a não confundir os que defendem os modelos de radicalismo democrático, à maneira dos programas seareiros, com os inimigos da democracia que alguns ilustres socialistas vão protegendo, entre fascistas folclóricos e estalinistas não arrependidos…

 

15 — Na sua opinião houve mudanças estruturais ou as reformas da Saúde, Justiça, Educação e Administração Pública foram apenas mera cosmética?

 

Todas leram a cartilha de São Keynes, confundindo o bem comum com o estatismo…

 

16 — Os lóbis económicos, na sua opinião, têm minado as decisões políticas, e são um travão ao desenvolvimento económico?

 

Há lóbis que são lobos do homem e lóbis que não uivam. Preferia que o PS tivesse optado pelos empresários que estão contra o ritmo salazarento daquela economia mística que gosta de nacionalizar os prejuízos e privatizar os lucros…

 

17 — Concorda com os que dizem que o Governo de José Sócrates se tem subjugado aos interesses económicos?

 

Se os interesses económicos preferidos fossem os dos agentes económicos liberais, sem medo da competição, aplaudiria…

 

18 — O Governo reduziu o défice, porém, o desemprego aumentou, as famílias endividaram-se e a classe média asfixia. O esforço da redução do monstro valeu a pena?

 

O monstro visível foi alterado, mas reproduziu-se em muitos monstrozinhos ditos privatizados ou de “outsourcing” e consultadoria, especializados na engenharia do subsídio e da cunha… como o demonstra a passagem de ex-ministros para executivos das grandes companhias do estadão…

 

19 — A Educação, considerada um pilar do Estado de Direito, continua por refundar? O que tem falhado em Portugal na reforma do sistema educativo?

 

No regime pré-liberal, a função educação não cabia ao Estado, mas à Igreja, coisa que continuou no século XIX, quando a tropa criou as suas academias e a maçonaria as respectivas associações. Por outras palavras, cabia ao clero e à nobreza (nobreza funcionalmente é tropa e não fidalguia) uma função que só mais tarde foi estatizada e transformada num monopólio dos burocratas dos actuais dois ministérios educativos. Isto é, a educação começou por ser comunitária e só depois entrou no hierarquismo verticalista da administração directa do Estado. Julgo que nos falta o regresso ao comunitário, coisa que não se confunde com a ideia de lucro que anda associada, injustamente, às escolas ditas não-públicas.

 

20 — As universidades também estão em agonia financeira. Há, na sua opinião, um desinvestimento no Ensino Superior?

 

Gasta-se demais para aquilo que se produz… enquanto não repararmos que para se ultrapassar o presente confronto entre o chamado conselho de reitores e o chamado ministro, há que reduzir drasticamente o número de universidades públicas, mas mantendo e reforçando a presente desconcentração e regionalização. Isto é, importa reduzir, não o número de escolas, mas de reitores e da sociedade de corte que a eles anda associada, evitando o surgimento de mais mandarins, sob  a figura directorial, com o consequente cortejo de micro-autoritarismos sub-estatais e personalizações de poder, assentes no absolutismo democrático da troca do voto pelo emprego e pela rápida subida na carreira dos aconchegados pelo situacionismo.

 

 

21 — A nova lei que dá autonomia ao Ensino Superior fica em causa com a criação das Fundações? É a privatização do Ensino Superior?

 

Julgo que a solução encontrada pelo ministro Gago e pelos tecnocratas que o servem devia reparar que, em vez de fundações, uma novidade na história do direito português, nascida nos finais da década de cinquenta do século passado, por causa do testamento de Calouste Gulbenkian, deveríamos refundar uma pessoa colectiva especial, a própria universidade, de acordo com o modelo do século XIII. Esta entidade que já existia antes de haver Estado, apenas deveria ser respeitada pelo mesmo Estado e deixarmo-nos de questiúnculas sobre as privadas, as públicas e as concordatárias. Basta irmos às cem maiores universidades dos “rankings” mundiais e repararmos na farpela jurídica que as veste. Julgo que o bom senso deveria ensinar que o fim público da função não exige a titularidade ministerial, a não ser para os preconceitos jacobinos, de direita e de esquerda.  Ora, sem os mínimos de patriotismo científico e com tanta tradução em calão dos modelos que a OCDE quer exportar para a Coreia, não tardará que se peça o regresso do eterno pai das reformas educativas, o Professor Veiga Simão, ou um seus filhos de algo…

 

22 — Como avalia o sistema de Justiça?

 

Outra vaca sagrada, provocada pela santa aliança de constitucionalistas e de sindicatos de magistrados, agora indisciplinada pela demagogia de Marinho Pinto. Deveríamos experimentar novas soluções, desde juízes eleitos, à maneira ateniense, para pequenas causas, de maneira a aproximar o povo dos tribunais, à restauração do pretor romano, com um programa anual de sucessivas tolerâncias zero para a política criminal, à maneira holandesa. Até poderíamos ir mais longe e adoptarmos o sistema norte-americano, transformando o ministro da justiça no procurador-geral da república, para que não continuem os vários poderes a lavar as mãos como Pilatos, para que a culpa continue a morrer solteira. Por outras palavras, a justiça é assunto sério demais para não ser politizado…

 

23 — Tem-se falado muito de corrupção. Mas, na opinião de muitos, pouco ou nada mudou. Há quem diga que esta apatia interessa a quem pode mudar a lei — o poder político —, os mesmos que não estão interessados em combater o fenómeno. Concorda com esta ideia?

 

O problema da corrupção em Portugal é mais um problema moral do que um problema de leis, magistrados e polícias. Com efeito, não é por acaso que os países menos corruptos do mundo são precisamente os mais liberais e os mais capitalistas, porque o controlo é comunitário, dado que o corrupto é socialmente sancionado, enquanto que, por cá, esta ideia de Estado-Ladrão dá aquela esfarrapada desculpa do Zé do telhado, porque ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão… Enquanto não fizermos uma revolução cultural, a corrupção é directamente proporcional à própria evasão fiscal, também ela não socialmente condenável, dado que o Estado, mesmo em democracia, continua a ser um “lui”, um “eles”, os “soberanos”, de quem tentamos sacar algo. Só quando o Estado formos nós é que mudaremos o ritmo.

 

24— Portugal é um país de corruptos, como muitos dizem?

 

Os partidos que a permitem a corrupção passaram a ser controlados pelos favoritos da chamada sociedade de corte, os tais que, com as suas castas, tiveram a ilusão de conquistar o poder e que usam Estado a que chegámos como presúria, para distribuírem os troféus da conquista pelos supostos vencedores, para que os vencidos tenham a ilusão de espera pela alternância dessa quase pilhagem e mantenham este situacionismo predador do “comer à mesa do orçamento”. O pior é que dão o nome de democracia e de Estado de Direito a este sucedâneo de feudalismo, mas já sem nobreza nem clero.

 

 

25 — Em que é que a corrupção mina o sistema democrático?

 

Os partidos correm o risco de passagem à categoria de meros bandos, onde o principal valor tem a ver com o investimento individual na militância, esperando-se um retorno imediato, nomeadamente pelo curto-circuito da cunha e de todas as medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública.

 

26 — Acha que as pessoas, em Portugal, têm medo de denunciar os actos de corrupção? Porquê?

 

Voltando ao paralelismo com a evasão fiscal, direi que só quando atingirmos uma efectiva democracia fiscal é que poderemos gerir a coisa pública de forma comunitária, retomando o velho lema de “o que é comum não é de nenhum”, mas desde que o entendamos o comum como coisa da nossa propriedade e posse, onde os governantes apenas são gestores temporários e não donos. Quase me apetecia voltar a repetir a proposta de Passos Manuel que queria o regresso a certas formas de sufrágio censitário. Por mim, restringiria os direitos de cidadania aos cumpridores dos deveres fiscais…

 

27 — Como analisa as relações entre Belém e S. Bento? Há um esfriamento natural entre Cavaco e Sócrates?

 

Os dois são a mesma coisa ideologicamente: disseram-se da esquerda moderna, invocaram Bernstein e têm programas de governamentalismo keynesiano, assim coincidindo com o que poderíamos qualificar como salazarismo democrático. Até porque herdaram do antigo regime esta mania de acordos neofeudais com as forças vivas, bancoburocráticas, naquilo que poderíamos qualificar como a direita dos interesses. É essa barganha a que damos o nome de social-democracia que é exactamente a mesma coisa do que socialismo democrático, onde o europeísmo é o novo D. Sebastião, mas onde as disparidades sociais e a injustiça são crescentes. Nenhum deles é capaz de um “new deal” de menos Estado e mais sociedade e ainda por cima são as duas cabeças das duas principais multinacionais partidárias da eurocracia…

 

28 — Estamos a caminhar a passos largos para as eleições norte-americanas. Uma vitória do partido democrata nas presidenciais de 2008 nos EUA pode significar um novo relacionamento entre Washington e a Europa?

 

Para mim, a república norte-americana é uma das mais belas construções políticas da nossa matriz civilizacional e ai das ideias liberais que perfilhamos se não assumirmos as raízes comuns para podermos construir o futuro em parceria. Julgo que poderermos avançar muito se o futuro presidente da república imperial compreender que o gnosticismo bushista, quando confundiu os interesses universais com os interesses norte-americanos, foi uma oportunidade perdida para o universalismo da esperança pós-soviética.

 

29 — Qual dos dois candidatos, Obama e McCain, servem melhor os interesses dos EUA e o relacionamento deste País com o Ocidente?

 

Não sou cidadão norte-americano e, quando muito, tenho solidariedade para com as preferências das comunidades portuguesas e luso-descendentes. E julgo que tradicionalmente estas alinham com os democratas…

 

30 — Como olha, hoje, para a União Europeia a 27?

 

Uma das mais belas construções políticas da humanidade, permitindo o sonho de uma Europa que vá da ilha do Corvo a Vladivostoque, assim se consigam superar os presentes dramas de renegociação do acordo comercial com a Rússia, dado que o de 1995 acabou em 2005. Daí estes bailados interventivos, entre o Kosovo e a Ossétia, quando não assumimos que a Rússia de Soljenitsine está a construir uma democracia e uma sociedade aberta e pluralista, mesmo que os entorses da personalização do poder e da bandocracia ainda estraguem o sonho. A alargamento a Leste, se não for entendido como um sucedâneo da guerra fria, pode levar a um investimento de paz e justiça que dá à nossa geração uma superioridade moral face às anteriores, as que transformaram guerras civis europeias em guerras mundiais. Ajudar o partido russo do humanismo laico e do humanismo cristão a vencer os atavismos antidemocráticos e antipluralistas é o verdadeiro fim daquela construção europeia que pretenda eliminar os imperialismos internos que transformaram esta bela ideia civilizacional em muitos segmentos de prisões de povos…

 

 

31 — Aprovado o Tratado de Lisboa, na sua opinião, vamos ter uma Europa a duas velocidades?

 

A ideia de caixa de velocidades representa o pior ds gnosticismos progressistas, aquele que diz termos todos os povos que percorrer uma via única, em direcção a certa estação terminal do fim da história, percorrendo as mesmas estações, mas com uns a irem mais avançados e outros em estações subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Por mim, preferia não ir nesse comboio de descarrilamentos e ter não várias velocidades, mas várias formas de saudades de futuro.

 

 

32 — A ratificação teve um acidente de percurso com a Irlanda a dizer «não» ao Tratado de Lisboa. Este voto dos irlandeses representa o quê?

 

Para mim, representa a coragem dos irlandeses que conseguiram garantir da União Europeia o respeito pelas autonomias nacionais. Infelizmente, não têm força para transformar a Europa numa democracia de muitas democracias, contra a tentação do super-estado eurocrata.

 

Ago 26

A minha resposta

Ÿ Sempre gostei que comigo entrassem em contradita, pelas ideias a que me dou e manifesto e não pelos fantasmas que alguns dizem que tenho, só porque não penso aquilo que convém, quando sinto ter o dever de pensar, mesmo quando o professo em contra-corrente.

 

Ÿ  Por isso não me amedrontam os adjectivos diabolizantes dos pequenos inquisidores que caçam nas névoas dos bruxedos.

 

Ÿ Penso o que tenho o dever de pensar e cumpre-me dar disso testemunho, mesmo que corra o risco de estar em minoria.

 

Ÿ Porque ter coragem é não contabilizar a opinião quantitativa e não procurar saber de que lado sopra o vento.

Ÿ Pensar é resistir, é ter a coragem de sermos minoria, assumindo a atitude daquele que, para estar de acordo consigo mesmo, tem, por vezes, que estar em desacordo com todos os outros, não para “épater le bourgeois”, mas para servir a comunidade, mesmo que a comunidade o não reconheça no seu próprio tempo de vida.

 

Ÿ Pensar é, para esses seres semoventes, entoar uma espécie de música celestial que só influenciaria os habitantes da utopia. Porque, aqui e agora, o dinheiro que compra o poder e a inteligência, o dinheiro que dobra as vontades, começa a tornar-se no valor predominante.

 

Ÿ Escrever é assumir o risco de viver, de estar sempre à beira de um abismo onde, muitas vezes, não existem corrimões nem as habituais redes protectoras que nos sustenham a queda, como é habitual neste país de meias tintas, entre a esquerda menos e a direita envergonhada, onde quem é do centro, muitas vezes, não passa de um jogo de soma zero, resultante da mistura da esquerda mais com a direita menos, ou do mais direita com o menos esquerda, como sempre foi a preferência dos vários situacionismos, onde sinais contrários não conseguem disfarçar a existência da mesma substância.

 

Ÿ Nós e aquilo que temos a ilusão de criar não passamos da poeira de um caminho que nossos vindouros hão-de calcorrear. Importa ter a humilde consciência deste dever. De sermos parcela da longa corda de transmissão de um sinal de sonho. E é nesta postura de serviço que conquistaremos a eternidade, mesmo que não o registem em nota de pé de página.

 

Ÿ No intervalo, apenas seremos compreendidos pelas almas gémeas que servem connosco o mesmo objectivo desta procura colectiva. Mesmo que não surjam anónimos sinais de irmandade. Quem tem a consciência de assim estar vivo e sentir o silêncio dos que, em fidelidade, comungam connosco do mesmo ideal de vida, apesar de se poder sentir só, sabe, intimamente, que não está só e que muitas outras mãos nos querem dar as suas mãos de escrita.

 

 

Ÿ O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, faz-se o exacto contrário do que se vai proclamando.

 

Ÿ E agora tudo se disfarça com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato pode ser gratificante. E tudo sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parece transportar para a delícia cultural dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta.

 

Ÿ O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade.

 

Ÿ A rede de dependências e medos vai continuar enquanto não assumirmos que em situações pós-totalitárias e pós-autoritárias, mesmo depois de se eliminarem os aparelhos visíveis da repressão e da corrupção, permanecem os subsistemas de medo e de venalidade que os mesmos geraram.

 

Ÿ Pior: abundam os micro-autoritarismos sub-estatais e esses modelos de temor reverencial podem aí ser substancialmente agravados e fomentados, principalmente quando as pequenas e os pequenos chefes do bando actuam em legítima defesa, em épocas de transição ou de crepúsculo.

Ÿ Neste regime de pequenos feudalismos em que se enreda o oportunismo lusitano, o longo prazo do combate por ideias nunca conseguirá ter qualquer espaço de comunicação com o frenesim do mediático. Os candidatos com mais sucesso, silenciando irreverentes, souberam criar uma espécie de sociedade de Corte, tecendo uma rede de fidelidades e simpatias, tal como ilustres gestores do presente aparelho de Estado subiram ao poder gerindo adequadamente o saco azul, vermelho, preto ou amarelo dos pareceres e avenças.

 

Ÿ Por outras palavras, o quintal português da feira das vaidades é estreito demais tanto para a autonomia da sociedade civil como até para efectiva expressão da liberdade de pensamento. Os grandes controleiros deste pequeno “big brother” devem ser, aliás, os primeiros que se riem com os habituais invocadores da chamada teoria da conspiração. E isto porque a estreiteza do nosso espírito capitaleiro produziu uma lógica de campanário na nossa principal aldeia, a que damos o nome de Lisboa.

 

Ÿ Quando a política de campanário nos vai fragmentando em facciosismos e pequenas zangas de comadres e compadres, onde não faltam os potentados dos pequenos e velhos padrinhozinhos. Quando o futuro se confunde com cinematográficos regressos ao passado e quase todos se diluem na procissão carneiral dos colectivismos morais, importa reparar que à míngua de pátria é o povo comum que começa a perder a vontade de sorrir.

 

Ÿ Quando é a esperança colectiva que vai definhando, face à falta de sentido cívico e ao vazio de justiça, começamos a notar que surge uma sociedade de ouriços cacheiros, onde em vez do individualismo da criatividade pessoal e das boas sociedades de egoístas, começa a marcar ritmo de desespero o “vê se te avias” e a moral do sapateiro de Braga, onde tanto não há moralidade como ninguém come nada.

 

Ÿ O próprio discurso sobre o bem comum foi esfacelado e usurpado por vendedores de banha da cobra que o encomendaram aos assessores honestos que recrutaram no mercado do proletariado intelectual. Os tais para quem a moral é uma lei que eles impõem aos outros, mas de que se pensam dispensados pela graça do poder, esquecendo-se que não podem invocar tais normas de autonomia os que são exemplos de falta de autenticidade. E não nos parece que os anunciados candidatos à reflexão presidencial tenham suficientes saudades de futuro para provocarem o urgente acordar deste nebuloso letargo em que nos vamos enrodilhando.

 

Ÿ Este profundo estado depressivo em que nos deglutimos nada tem a ver com as tensões do tudo e do seu nada de anteriores crises colectivas, quando a alma colectiva ainda não era pequena e nos entusiasmavam os sonhadores activos. Agora, vive-se uma espécie de definhamento com barriga cheia e luxo à farta, com que vamos alimentando a ilusão de ainda sermos uma comunidade nacional.

 

Ÿ A mentalidade típica de certos donos do poder está em que entre a teoria e a prática tudo é teoricamente prático e tudo é praticamente teórico, porque, na prática a teoria é outra. Mas, como pela boca morre o peixe e estamos na terra do sapateiro de Braga e de Frei Tomás, se uns logo observam que ou há moralidade ou comem todos, muitos outros logo reconhecem que bem pregas Frei Tomás.

 

Ÿ Enquanto estes pálidos e pretensos taumaturgos continuarem nos pedestais do seu ministerial despotismo, não são possíveis gestos com sentido. Eles prostituíram a palavra e profanaram os símbolos. Pujantes em seu efémero julgam-se donos da eternidade. E se alguns dos que vivem como pensam podem volver-se em agnósticos, muitos outros ainda continuam a semear a esperança dos desesperados.

 

Ÿ O proibicionismo caceteiro e a persiganga, só porque assentam nos donos do subsidiável e do inspeccionável e que nem sequer têm que registar interesses e acumulações, podem continuar a inspirar muitas transpirações serôdias, inumeráveis cortes de salamaleques, lisonjas e engraxamentos, mas acabam por contribuir para o nosso fenecer sem honra nem humildade.

 

Ÿ O decretino e o mediático podem ter, no curto prazo, a razão da eficácia, mas nem por isso se livram de poderem ser um clamoroso erro no médio prazo e até uma estupidez destrutiva no longo prazo. De boas intenções está o inferno do pseudo-reformismo cheio

 

Ÿ Não há meio de compreenderem que a história, mais do que o produto da intenção de certos homens que dizem deter o monopólio das boas intenções, é, sobretudo, o produto da acção dos homens livres. A história é sempre uma co-criação de homens livres e raramente é detida pelo caixilho teórico dos que apenas pensam que pensam.

 

Ÿ O dominador sempre conseguiu controlar as esperanças e domar as ilusões, através do magistral uso do chicote e da cenoura, usando apenas o primeiro de forma selectiva, de maneira a liquidar as cabeças que se assumem como alternativas oposicionistas. A cultura imperial-otomana que nas amarfanha, pintando-se de bom pai tirano, sempre soube manipular de forma magistral o pão e o circo, desde a jantarada à custa do dinheiro do contribuinte, às sucessivas farras e guitarradas, para que a rapaziada se embebede e não cuide da chefia da cidade.

 

Ÿ E neste ambiente de acrítico louvaminheirismo continua a ser pecado produzirmos simples farpas que ousem sair da mediania estupidocrática dos produtores de hossanas nas alturas aos contadores de histórias que ocupam as chefias. Porque ninguém ousa dizer em voz alta, mesmo sem berros, o que todos vão comentando pelo sussurro, sobre a total inutilidade de instituições que, sem ideias, apenas servem de corrimão para gentes viciadas em protagonismos balofos de falso mediatismo, apesar de as cortes se emprenharem em ilusionismos activistas

 

Ÿ Ainda há instituições que continuam a ser espaços infradomésticos de falso paternalismo, porque ingloriamente dependentes de certos capatazes e dos respectivos fiéis. E nesse universo de cinzentismo pós-totalitário, quem se assume da oposição quase parece que comete um pecado, porque os donos e senhores da coisa logo dizem que monopolizam o conceito de bem institucional, considerando os divergentes como dissidentes a abater. E assim podem sobreviver, para além do prazo de validade, sistemas imperiais de gestão, marcados pela arendtiana categoria do governo dos espertos, onde se manipula a legalidade, conforme o uso que dela podem fazer os espiões da Razão de Estado. Os quais nem sequer alguma vez compreederam o mínimo denominador comum da civilização do Estado de Direito.

 

Ÿ A cultura da dependência, gerada pela estreiteza de vistas do paroquialismo balofo e pelo charlatanismo dos piratas com chapéu de coco, que confundem a palavra com a demagogia, apenas afina o delírio de um carreirismo cobarde.

 

 

 

Ago 20

Depoimento ao Público

Férias são mesmo férias, tempo de trabalho sem o controlo da greve de zelo que os burocratas impõem aos funcionários, mesmo que os controladores dos funcionários sejam os chamados gestores, de fora da carreira da função pública, mas que a vão reformando em descaracterização de serviço público. Férias são mesmo tempo de beneditino trabalho de investigação, nesta disciplina a que me sujeitei de algumas horas diárias, pelo que o blogue foi interrompido e, pela via do Hifive, fiquei sujeito a um ataque viral que mandou seis a sete mails para a minha lista de contacto. Apenas alguns jornalistas me foram contactando para o habitual comentarismo. Ontem foi o jornal o Público, sobre o veto presidencial.

Abalo na coabitação, um cisma entre a presidência e o Governo cujo desfecho ninguém consegue antever? “Não é pelo facto de se exercerem os poderes constitucionais que se verificará qualquer inversão estratégica. O que me parece é que o veto reflecte um confronto de concepções do mundo e da vida”, afirma Adelino Maltês, assinalando que, pela primeira vez, um Presidente da República “tem um intervencionismo moral”. “Infelizmente, é o regresso ao discurso do patriarca”, afirma o politólogo, assinalando que enquanto “o agnóstico Mário Soares não defendeu posições laicistas, Cavaco está a ser um Presidente católico”.

Como adverte Adelino Maltês, há equilíbrios difíceis de gerir a um ano de todas as eleições: “Se o PS continuar a conciliar, corre o risco de perder para o BE e o PCP, que nas últimas sondagens já somavam 20 por cento das intenções de voto. Se não ceder, também pode ofender o centro, católico”. A juntar a isso, deixa uma outra observação, aquilo que designa como “coincidência táctica” entre a posição do Presidente e as declarações de Manuela Ferreira Leite, que manifestou publicamente a sua oposição à nova lei do divórcio. “Há uma ligação com a intervenção presidencial”, diz.

Ago 19

Correio da Manhã- Sobre Alberto João

No dia 19 Agosto 2008 foi o Discurso directo do Correio da Manhã: “Alberto João Jardim está arrependido”.

Correio da Manhã – Há espaço em Portugal para um partido social federalista como propõe Alberto João Jardim?

Adelino Maltez – Acho que isto traduz um arrependimento do dr. Alberto João Jardim, porque no referendo sobre a criação de regiões no Continente ele foi contra. Agora, arrependeu-se e passou outra vez a ser regionalista para os outros. Até aqui era só regionalista para ele. Quer construir um partido regionalista, federativo, mas os que são regionalistas no Continente não se esquecem disso. É curioso que o dr. João Jardim se diz girondino contra os jacobinos, mas na Revolução Francesa os revolucionários girondinos eram quase todos maçons. Ele quer fazer, portanto, o regresso aos girondinos com a Doutrina Social da Igreja Católica. É interessante esta mistura. O dr. Jardim é um bom político, está bem informado e aproveita esta informação e introduz aqui uma confusão. É tão confuso que tem a dimensão de provocador. 

– É uma forma encapotada de recuperar o tempo perdido na corrida à liderança do PSD?

– Para a História, o dr. Alberto João Jardim não vai ficar como apoiante ou adversário da dr.ª Manuela Ferreira Leite. Vai ficar como líder autonomista da Madeira. Neste momento, ele trabalha para a História. Esta hipótese de trabalho, de criação de um movimento, não é pelo Alberto João Jardim que vai lá. Isto é mais um movimento interpartidário do que propriamente um partido. Que existe em todos os partidos.

Ago 12

As dores da Ibéria Oriental (Kartvelos) e o arreganhar da dentuça de uma nova república imperial

As novas falam no conflito quente da nova guerra que deixou de ser fria, lá para as bandas da Geórgia e da Ossétia. Os comentadores de política internacional, especialistas em oleodutos, galpes e venezuelas, vão traduzindo em calão os oficiosos busheiros e europeístas. De pouco lhes interessa que tenha havido um Pharnavaz (302/237 antes de Cristo), o primeiro rei de uma Geórgia, então dita Ibéria caucasiana ou oriental, pelos antigos gregos. Para quê falar num Bagrat III que restaurou a monarquia na mesma Ibéria oriental, ou caucasiana (980-1014)? Que interessa os Ossetas, fugidos das invasões de Alanos e Khazares, colocados sob a tutela dos Tártaros no século XIII, e apenas submetidos á Rússia com Catarina II?

Não sei qual o pretexto das invasões e contra-invasões. Ouvi o João Soares que conhece o terrenos e os meandros políticos das causas e não posso deixar de reparar que nos faz falta uma política europeia para as relações com a Rússia, nesta fase em que Moscovo ensaia o seu regresso ao estatuto de República Imperial, tão república e tão imperial quanto Washington que assim deixa a solidão de única superpotência. As brincadeiras diplomáticas do Kosovo e o desastre da intervenção no Iraque criaram um ambiente propício a estas entradas de leão dos herdeiros do imperial-comunismo de Moscovo, enquanto o outro império, ainda formalmente comunista, nos dá espectáculo de política desportiva.

As nações frustradas, que ficaram séculos sob essa prisão de povos que era a Rússia dos czares e dos estalinistas, precisam de tempo para que possa desabrochar um modelo que não pode seguir retroactivamente as passadas de Jean Bodin e de Tomas Hobbes, refazendo retroactivamente Estados Modernos e Soberanos, de acordo com a velha lei da selva da política internacional, onde os Estados são lobos de outros Estados e não os bons selvagens dos comentários eleitorais da democracia-espectáculo, com que se deliciam os chamados observadores internacionais.

Ago 10

Neste meu refúgio saloio…

Uma semana longe de Lisboa, entre Albarraque e Valbom, nestas férias saloias, de muito trabalho de arrumações de panos, móveis e papelada, quando volto ao meu ofício de marceneiro, herdado de meu avô Zé Horácio, cujas ferramentas ainda uso. Sobretudo, o arrumar de papelada nas velhas arcas de família, enquanto, nos intervalos, lá continuo meu diário trabalho no livro a editar, cuja revisão me levou a refazer os próprios meandros da pesquisa, nas habituais “férias” de muito mais trabalho do que no tempo dos horários. Até de outras universidades me vão contactando, mandando teses e marcando reuniões, tornando impossível a greve de zelo que costuma mobilizar os agentes da burocracia, principalmente os intendentes controleiros dos processos costureiros com que costumam desmobilizar a entrega ao bem comum. Por isso, o acesso ao computador fica quase restrito à consulta do “correio”…

Ago 06

Entrevista a O Diabo, sobre o parlamento

1 — De acordo com o relatório do Tribunal de Contas. as despesas da Assembleia da República atingiram cerca de 94 milhões de euros em 2007. Na opinião de muitos é um abuso de gastos. Considera que os gastos da AR são elevados para a qualidade produzida no Parlamento?

Não me preocupa o montante em causa. A democracia de qualidade tem o preço da qualidade e não se consegue obter numa loja dos trezentos, ou em época de saldos. Até podiam gastar o triplo se isso fosse um real investimento em cidadania, por exemplo se as comissões parlamentares de inquérito não servissem de mera caixa de ressonância das maiorias governamentais. Eu não me importava de ter um parlamento mais caro se ele quebrasse a má tradição de subserviência face aos sucessivos situacionismos, se ele se assumisse como a verdadeira sede de poder e a retirasse dos directórios partidários que fazem do governo uma subsecção e do parlamento uma dependência da liderança do partido dominante. Bem gostaria que os meus impostos servissem para restaurar umas cortes que assumissem a função política de regeneração do regime… E nem sequer me importaria que se reforçassem as áreas de exclusiva competência da Assembleia da República, diminuindo o excesso de poder legislativo do governo, nesse legado do autoritarismo e dos períodos ditatoriais dos governos provisórios. Adoraria que se reforçassem as respectivas funções de supremacia simbólica, limpando alguma ferrugem que vai entupindo as canalizações representativas. Porque se o parlamento se desprestigiar, como mera caixa de aplausos, mesmo que gaste um décimo do que hoje gasta continuará a ser visionado por muitos como um desperdício. Mas se o parlamento servisse para a institucionalização dos conflitos poderia contribuir para a diminuição do indiferentismo e a compressão da cidadania.

 

2 — Na sua opinião, tendo em conta a contenção de despesas que o Governo invoca no Estado, acha que a Assembleia da República devia também conter os seus gastos?

 

Se decompusermos os gastos do parlamento, poderemos notar que diminuíram os gastos com deputados, dado que a actual presidência de Gama assumiu um centralismo controleiro, talvez por causa das despesas em matérias como as da presidência da União Europeia, ou nos belos exercícios culturais de música sinfónica e de grandes fadistas nos jardins do Palácio, substituindo o que deveriam ser tarefas do Ministério da Cultura. Até os sinais dos choques tecnológicos em “Powerpoint”, com direito a ar condicionado, lavaram as velhas salas daquilo que outrora foi o “Solar dos Barrigas”. Daí que não comungue em certo miserabilismo que não dá aos deputados o direito aos assessores e consultadorias que têm os directores-gerais e os secretários de Estado. Por exemplo, no anterior 10 de Junho, todos ganharíamos se, para comemorarmos do dia de Portugal, tivéssemos enviado deputados de todos os partidos, que ainda fazem belos discursos, em vez de cinzentos secretários de Estado que espalhámos pelas sete partidas. Eu até gastaria ainda mais dinheiro com a reforma do canal parlamento, retirando-o desse equilibrismo cinzentão, dando, por exemplo, a todos os partidos parlamentares espaços de autonomia em termos de tempo de antena, ou atribuindo a universidades e outros centros de estudo períodos de padagógica divulgação da nossa história do presente, para que a verdadeira política tivesse uma divulgação equivalente à propaganda das religiões nos canais públicos.

 

3 — Considera que a redução do número de deputados em Portugal seria benéfica?

 

Sempre defendi, publicamente, e até em intervenções numa comissão parlamentar, como convidado, uma redução drástica para cinquenta parlamentares, cada qual com um gabinete equivalente ao de um ministro. Mas, desde que se gastasse mais, com a criação de parlamentos regionais, para eliminarmos tantas segundas e terceiras filas em São Bento. Por outras palavras, prefiro investir em deputados de qualidade do que em assessores governamentais e da burocracia hierarquicamente dependente da administração verticalizada. Não alinho na tradicional denúncia dos tradicionais adversários da democracia que, desleixadamente, são antiparlamentaristas. Com isto, não abdico de criticar politicamente este estilo assumido por muitos parlamentares que se renderam à partidocracia e se desleixaram no recrutamento dos melhores. Mas não deixo de observar alguns bons sinais dados pelo esforço reformista de António José Seguro cujos frutos não se fizeram ainda sentir porque o vinho velho do mais do mesmo não deixa de ser azedo só porque pusemos umas aduelas recauchutadas nas velhas pipas.

 

4 — Em que medida?

 

Julgo que seria bem melhor repararmos nalgumas compressões da autonomia dos deputados, em nome de alguns normas de gestão dos falsos especialistas em reformas administrativas que já há muito deveriam estar reformados. Eu prefiro recordar que a casa de São Bento tem o dever de assumir a tradição semeada nas Cortes de Leiria de 1254 e na rebeldia criadora das Cortes de Coimbra de 1385, devendo honrar o princípio sagrado do consensualismo, segundo o qual cabe ao parlamento cumprir o sagrado do velho princípio segundo o qual “o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido”. Daí que não deva o parlamento ser um sítio daquela “vontade de todos” de Rousseau, quando todos decidem pensando nos próprios interesses parcelares, mas antes o sítio da “vontade geral”, quando todos decidem, renunciando aos próprios interesses, e assumindo o todo, o imperativo categórico do bem comum, através daquela instituição de conflitos de uma democracia real, onde os adversários dialogam porque têm “lugares comuns” como os do patriotismo, numa comunidade que tem de ser comunidades das coisas que se amam.

 

5 — São muitos os que consideram que a imagem da AR espelha a imagem do País. Também nos gastos, na Assembleia o despesismo é visível?

 

O parlamento é o espelho da nação e a crise que o afecta é uma crise de povo que se manifesta pelas classes políticas que se resignam a este situacionismo do mais do mesmo, com o acréscimo dos privilégios para os favoritos de certa sociedade de corte e para as castas que continuam a pensar que o poder é uma coisa. Uma coisa que se conquista, nomeadamente um aparelho de Estado feito presúria que se distribui pelos vencedores, para que os vencidos esperem pela alternância para se vingarem e fazerem nova pilhagem, a que Rodrigo da Fonseca chamava “comer à mesa do orçamento”. E o pior é darmos nome de democracia a certos sucedâneos de nobreza e de clero, sempre que os partidos se degradam e passam a ser federações de investimentos individuais na militância política interesseira, aquela que espera um retorno pelo curto-circuito da cunha e das restantes medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública. Se continuarmos a ser massa informe que não se mobiliza para o bem comum, através do pluralismo e da autonomia da sociedade civil, continuaremos a ser pasto de entregas alienadas ao chicote e à cenoura de um aparelho de Estado, absolutista, autoritário ou sectário, o tal que transforma a democracia no desespero do partido-sistema, mesmo que se disfarce no bipartidarismo rotativo. E o parlamento deveria ser resistência contra esta mentalidade de partido único e das sucessivas usurpações das personalizações do poder.
Ago 05

Aquela verdade que está acima do povo, acima da pátria e acima da ideologia

Morreu ontem um dos mais marcantes mestres de quem sou: Alexandre Soljenitsine. Não apenas pela lição de antitotalitarismo consequente que a todos nos deu, mas pela procura da conciliação de tradição e libertação. Partindo de um humanismo existencialista, marcado pela memória do sofrimento das vítimas do totalitarismo soviético, trata de retomar certas pistas do romantismo messiânico e das utopias conservadoras, proclamando uma espécie de teologia laica de libertação.

Com efeito, através de uma paradoxal prosa, a obra de Soljenitsine é uma espécie de curso de lógica perante uma sociedade alógica, até porque, como dizia Hegel, a prosa é uma realidade ordenada. Com Soljenitsine vai assim reintroduzir-se na história cultural russa, o conceito de povo e o de consciência popular, à maneira da Escola Histórica Alemã, bem como o radical humanismo que o leva à consideração daquela verdade que está cima do povo, acima da pátria e acima da ideologia, como dizia Dostoievski.

Nele, a fidelidade, ao programa dos dissidentes: um idealismo religioso absoluto, ou seja, com uma orientação predominantemente cristã e uma aliança espiritual permanente com aqueles que professam outras religiões; um antitotalitarismo absoluto, ou seja a luta contra todos os tipos de totalitarismo: marxista, nacionalista ou religioso; um democratismo absoluto, ou seja, o apoio consequente a todas as instituições e tendências democráticas da sociedade contemporânea; uma ausência absoluta de partidarismo, considerando: nós somos o Leste e o Ocidente da Europa, as duas metades de um mesmo continente e devemos ouvir-nos e entender-nos antes que seja tarde (in revista Kontinent).

Em 1967 proclamava: se um dia conquistarmos a liberdade, devê-la-emos exclusivamente a nós mesmos. Se o século XX vier a comportar alguma lição para a humanidade, nós tê-la-emos dado ao Ocidente, e não o Ocidente a nós: o excesso de um bem-estar perfeito atrofiou nele a vontade e a razão. Isso não implica a desculpabilização dos russos e, com eles, de todos os homens.

Mas também reconhece: faltou-nos o suficiente amor à liberdade, e, antes de mais, a plena consciência da verdadeira situação. Gastámo-nos numa incontível explosão no ano de 1917 e, depois, apressámo-nos a submetermo-nos… merecemos simplesmente tudo quanto sobreveio depois.

Porque os povos precisam de derrotas como certas pessoas precisam de sofrimentos e de desgraças: elas obrigam a aprofundar a vida interior e a elevar-se espiritualmente.

Também ele viveu num país que se assemelhava a um meio espesso e viscoso: é incrivelmente difícil efectuar aqui o menor movimento, pois este, em compensação, arrasta imediatamente todo o meio ambiente.

Porque toda a época estalinista é apenas a continuação directa do leninismo, mas com mais maturidade nos resultados e um desenvolvimento mais vasto e mais igual. O estalinismo nunca existiu, nem na teoria nem na prática… estes conceitos foram inventados pela ideologia ocidental de esquerda, após 1956, apenas para defender os ideais comunistas.

Porque estes os três quartos de século de pós-estalinismo deixaram-nos tão imersos na miséria, tão esgotados, tão apáticos e desesperados, que muitos de nós sentem os braços cair e parece que só uma intervenção do Céu nos poderá salvar.

Espero que alguns descendentes do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, de Afonso Costa e Salazar compreendam porque Soljenitsine foi um dia homenagear a resistência da Vendeia contra os jacobinos de esquerda e de direita. Eu, adepto da aliança dos girondinos e dos tradicionalistas, quero continuar a casar a honra com a inteligência…