Abr 10

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia, é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho

Vejo, na nossa querida televisão, uma viagem pelo mundo inédito de coisas que têm mais de duzentos anos e que parecem incomodar coisas que têm mais de dois mil anos. Apenas devo concluir que assim nunca mais poderemos compreender a democracia daquelas revoluções atlânticas que tanto produziram a glorious revolution dos finais do século XVIII, como a república norte-americana, ou as sucessivas repúblicas francesas, para não falar em Cádis, de 1812, Portugal, de 182o, na antiquíssima luta pela constituição. A política, enquanto sinónimo de democracia, sempre se deu mal com as usurpações da teocracia, do império ou do despotismo económico.

Quando a episcopal figura do porta-voz daquela magnífica corrente que, desde 15 de Maio de 1891, no século XIX, se passou a conjugar com esse esforço demoliberal, critica os maçons por permanecerem numa mentalidade do século XIX, sou obrigado a protestar, porque talvez eles sejam um pouco mais antigos, correspondendo a uma mentalidade do século XVIII, geradora dessa comunhão de causas que levou o maçon Jean Monnet a dar as mãos aos agentes vaticanos, tipo Robert Schuman, Konrad Adenauer ou De Gasperi, para o lançamento de nova revolução que está na base do projecto europeu.

Com todo o nihil obstat, fiquei ontem a saber que o cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira sempre foi um resistente antifascista e que só não deu o salto conspiratório contra o Estado Novo porque teve medo das represálias de um Salazar, que tinha dado à Maçonaria o controlo da educação!!!! Perante tão benzido revisionismo histórico, resisto em não me submeter a tal literatura de justificação que procura o monopólio interpretativo na relação com o transcendente. Prefiro o pluralismo dos deuses, a heresia e os protestos.Penser c’est dire non!

Temo que, sorridentemente, regressemos a certo tipo de relação entre o báculo e a espada, como a que levou um tal António José da Silva a ir para a fogueira em Lisboa, no dia 18 Outubro de 1739, quando apenas tinha 34 anos. E cá o subscritor deste protesto, orgulhosamente filiado na corrente de Erasmo, Montaigne, Espinosa, Montesquieu, e Kant, apenas vos deixa algumas das sentidas palavras do autor da “Guerra do Alecrim e da Mangerona”, preso pela Inquisição a 5 de Outubro de 1737:

Que delito fiz eu para que sinta

o peso desta aspérrima cadeia

nos horrores de um cárcere penoso

em cuja triste, lôbrega morada

habita a confusão e o susto mora?

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,

é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.

Mas se a culpa que tenho não é culpa,

para que me usurpais com impiedade

o crédito, a esposa e a liberdade?