Abr 03

Crendo com todo o nosso ser, atingiremos o máximo da dúvida

Tomo como guia a recente publicação em Brasília de um inédito de um mestre destas viagens sem fim… Com efeito, o editor Victor Alegria deu à estampa um caderno inédito de Agostinho da Silva, numa belíssima edição, que inclui a reprodução do manuscrito: Reflexões, Aforismos e Paradoxos, Brasília, Thesaurus, 1999, com apresentação de Constança Marcondes Cesar. Impossível fazermos recensão formal destes escritos intemporais do Mestre, obrados em Lisboa, talvez em meados da década de oitenta, e agora editados em Brasília. Porque boa leitura é aquela que leia o que não há entre página e página da mesma folha (fragmento nº 138). Porque a matéria não deve andar antes do mestre (nº 231). Porque é possível que a imaginação espiritualize o poder.  Há que ingressar, de vez em quando, no tempo que vamos esquecendo. Que regressar a esse poiso que nos sustenta. Na tal imanência que é transcendência, no devagar regresso ao profundo silêncio da leitura daquelas obras que não têm princípio nem fim. E estes escritos de um português execedente de Portugal só podiam ser primacialmente editados no Brasil onde se sente Portugal à solta.  E li, de um sôfrego, tais linhas, longas demais para tão curto tempo, quando apetecia que a viagem destes quinhentos anos fosse devagar. Passo a passo, absorvendo as milhas, absorvendo as letras, sentindo o deslizar dos dias e das sílabas, a mudança da mente, a mudança do corpo, nessa eterna adaptação à alma do lugar. Infelizmente, recensão é corrida, desprezando o espaço, sem lugar para a procura do mais além, aqui. Agostinho, nascido em 1906, no Porto, terá morrido em Lisboa em 1994. A três de Abril, dia da Ressurreição. Por isso ressuscita sempre que, por dentro das suas palavras, ousamos renascer, ao integrá-las no movimento da vida, numa corrente de pensamento que nos faz estar antes e depois da nossa própria vida. E desta escola da Junqueira que o acolheu depois do exílio, ouso proclamar-me seu discípulo. Não apenas da pessoa, mas da tal corrente antiquíssima, intemporal, eterna, a que ambos aderimos, que ambos ousamos servir, porque é antes e depois de nós. Neste sentido, segue a presente recensão. Tão anti-recensão quanto esses escritos, originariamente sem título, me provocam. Da criação, vem o fenómeno. Da criatividade, o imprevisto. Pelo que importa descobrir. Porque o pensamento não só relaciona, mas cria (218). E todo o concreto vem de imaginar (230). E as obras primas são sempre capelas imperfeitas para os que vêm depois de nós continuarem a criação, confirmando o sublime de descobrirmos o que já está descoberto e de inventarmos o que já foi inventado, dando continuidade à angústia, à preocupação, à dúvida.  Bem precisamos, portugueses e brasileiros, de diálogos transversais que entendam esta nossa pluralidade de pertenças. E os pensamentos agora publicados são, de facto, novo hino à heterodoxia luso-brasileira, lusitana, lusófona, quase ibérica. Desse mais além de que Portugal foi simples agente, sem saber quem foi o verdadeiro autor do impulso que nos levou de partida, sem regresso (304). Porque também navegámos nas ondas de um mar interior que nos deu ensimesmamento e porque, para continuarmos a navegar, nesse navegar é preciso, temos de nos converter ao signo maior de um tempo que tem de ser. Esse comunitário amor universal que é diluir-nos em todos os outros.  Porque, quando a viagem nos faz peregrinos, eis que podemos ser romeiros de um sentido que transforma cada um dos nossos passos em missão. E todos os que são bafejados pela força desse sentido nunca terão um sítio que os limite. Em todo o mundo poderá haver a nossa terra. Viajemos, pois, com o sentido da viagem, sem a mácula daquele que tudo pensa poder captar porque apenas viaja para fazer suas preconceituosas sensações, já registadas por outros. Sem que lhe apeteça ser Pero Vaz de Caminha. Porque não se sente parcela da mudança, dessa tal viagem onde apetece cumprir livremente nosso destino. Quando importa sermos sempre os mesmos em qualquer lugar, mas convertendo-nos ao espírito da mudança. Porque, se formos desenraizados pelo preconceito da abstracção, apenas conseguiremos ver aquilo que é a confirmação das nossas próprias previsões. E tudo isto a propósito do último texto de Agostinho. Onde se diz da busca do Perfeito (3), do chamar Deus ao pensamento (4), de, contra ortodoxias e heterodoxias, proclamar o paradoxo (5), criticando o presente e projectando o futuro. Porque toda a história que vale é do futuro (9). Aliás, o permanente é arquitectar o futuro e nele ir transformando o presente (300). Porque, crendo com todo o nosso ser, atingiremos o máximo da dúvida. Porque se não há liberdade no homem toda a profecia é inútil (195). Eis o começo de uma viagem interior, que a direita dirá de esquerda subversiva, que a esquerda dirá de direita conservadora (308). Onde o panteísmo é amor daquilo a que outros chamam Deus. Onde o dito anarquismo é verdadeiro regresso da política, da procura da ordem que deve ser contra a desordem instalada. Onde até Portugal é o universo, porque, no ínfimo da semente, pode estar o sinal do largo horizonte. Porque no átomo, no microcosmos tem de mimetizar-se o cosmos, se o cosmos for um macro-antropos, se o homem for um micro-cosmos. Porque vale a pena sonhar que um dia nada será de ninguém (30). Nesse mais além onde deixará de haver governo exterior, quando nos governarmos a nós mesmos (31).Quando dissermos que não há liberdade minha se os outros a não tiverem (50). Até porque seremos mais nós, quando a loucura nos inspirar e a razão nos exprimir (47). Para tanto, há que perspectivar a política ao contrário, não a virando de cabeça para os pés, mas pondo-a, novamente, com a cabeça por cima dos pés, sem rebaixarmos os fins. O que sucederá quando ela deixar de ser a arte de obter a paz por meio da injustiça (62). Quando a justiça der paz, quando a paz nos der justiça. O que não basta.  Porque, depois de chegarmos à Índia que vem nos mapas, temos de querer ir além da Tapobrana, em busca da Índia que não vem nos mapas, para podermos ser premiados com a Ilha dos Amores (133), a utopia portuguesa que é uma anti-utopia, porque tem lugar, tem aqui e tem agora. Esse depois da viagem de comércio e de guerra, quando há o repouso de um momento sem tempo e de um lugar sem espaço (327). Onde posso mudar se me penso mudado (335). Esse império sem império que vem depois das políticas apenas cartografáveis e geometrizáveis, dessas que exigem fronteiras, outros, ameaças, inimigos, momentos excepcionais que nos soberanizem e desumanizem. Anarquista? Sim, mas sem inveja. Porque além da classe dos que têm e da que se lhe opõe (isto é, os que querem ter, e não necessariamente os que não têm), há uma terceira: a dos que podem ter e não querem ter (141). Porque cada indivíduo tem de governar-se a si próprio, sendo sempre o melhor que é; porque tudo tem de ser de todos (324). Contra o capitalismo, economia comunitarista. Contra o cesarismo, democracia directa. Contra o inquisitorialismo, educação pela experiência da liberdade criativa, sociedade de cooperação e respeito pelo diferente, metafísica que não discrimine quaisquer outras, mesmo que pareçam antimetafísicas. Uma análise do poder que finge não ser análise do poder. Porque a política é louca quando parece certa, enquanto a teologia está certa quando parece louca (159). Uma fidelidade à verdadeira ciência que finge parecer não científica, quando reconhece que a ciência apenas cresce quando regada de ironia, coragem e paixão (179). Homem destes não poderia criar instituições. Apenas movimentos. Corrimão ou muletas que ajudem os outros a caminhar. E esse homem foi, muito simbolicamente, o primeiro responsável pelo Centro de Estudos Luso-Brasileiros desta escola da Junqueira. Num acaso que tem de ser convertido numa necessidade. Depois, Agostinho sonha Portugal. Que trouxe o de fora à Europa e que agora tem de levar para fora a Europa (63). Um Portugal, como planta destinada a povoar a terra que ousou ser tudo, para não ficar em simples nada (266). Um Portugal que, depois do ciclo do Império terrestre, não pode ser simples sobrevivente (269), preso apenas às brumas da memória, minguado no presente e sem saudades de futuro. Quando tem de continuar a lançar sementes que germinem pelo mundo (301). Porque é dever do mestre fazer com que seu discípulo seja o que é; para o transformar nele mesmo, só tem que deixá-lo ir sendo, consigo e todos e tudo aprendendo o que é; e, a cada experiência com ele o mestre reflicta. Eis-me, portanto, parcela desta viagem, por acaso parte de uma viagem que apetece, deste cumprir livremente a missão e o destino que nos são propostas”. Quanto à homenagem que gostaria de fazer na próxima segunda-feira na escola, juro que, se pudesse mobilizar gente, não admitiria nenhum discurso. Juntava a malta do ISCSP, da Veterinária e de Arquitectura e a multidão de professores e alunos assim reunidos iria dar uma volta peripatética pelo bosque de Monsanto, diante da barra do Tejo, e, parando na Rotunda da Universidade, semearia um pinheiro manso no centro do relvado, recordando Brasília. Apenas desfraldaria um cartaz de linho onde colocaria a seguinte frase: “A fonte do poder não é, para portugueses, nem delegação de transcendências, nem figuração de imanências, nem contrato ou consenso; a fonte do poder é a unidade essencial do homem, da paisagem e do sonho que numa e noutro anda; o poder emana das aldeias no curtido das faces, na aspereza das rochas, no fumo das lareiras, no mugido dos gados, no escampado horizonte, na imobilidade e no gesto, no silêncio e na palavra; o primeiro elemento é o do homem e o seu chão e o seu cão; depois se forma a aldeia, ainda pequena e desvalida para ser política; mas com o município a primeira república se forma e sobre ela tudo o resto se tem de modelar; a Federação começa aqui;com a junção das economias aldeãs; a catedral começa aqui; com esta pedra de muro ou este ladrilho de piso; conhece a nau seus primeiros redemoinhos nas águas bravas do cabril; e é o primeiro Reino o deste Rei, com o seu chão e o seu cão; repeti-lo não sobra”