Dez 31

Tiranos

Mataram um ditador… dizem as notícias que nos fazem recordar que a tirania é aquela forma de governo que não procura o consentimento nem a persuasão, mas a opressão e a violência, como já dizia Platão. Trata-se de um modelo que segue algumas das ideias de Xenofonte, o admirador de Esparta, que concebia, para Atenas, um governo militar. Mataram um tirano, mas continua a não haver norma universal sobre a matéria, nem sequer consenso entre os que pensam de forma racional e justa. Nestes domínios, com as esquerdas e as direitas a justificarem o sangue provocado pelos da respectiva seita, corremos o risco de não sair da espiral da violência, conforme ensinava D. Helder da Câmara, o bispo vermelho do Recife que teve a vantagem de começar pelo Integralismo brasileiro.  As nossas democracias ocidentais do pós-guerra assentaram nas fotografias de um Mussolini assassinado pelos “partisans” ou na execução do poeta Robert Brasillach pela “Libertação” francesa, tal como alguns republicanos homenageram os regicidas, ou os comunistas assentaram na execução dos Romanov, ou o pós-comunismo romeno na imagem sanguinária dos Ceausescu. Em Espanha, a guerra civil tanto assassinou José António Primo de Rivera como Frederico Garcia Lorca. Por outras palavras, não há justiça se continuarmos neste círculo vicioso promovido pela história dos vencedores, onde tudo se mede pela eficácia da vitória da força. Daí que aconselhe os incautos a mergulhar nas clássicas páginas do pensamento político sobre a matéria. Especialmente neste Portugal do conde de Andeiro, de Miguel de Vasconcelos e daquela sucessão de assassinatos do século XX que nos fizeram o país mais magnicida da idade contemporânea, assim confirmando os nossos brandos costumes. Basta fazer a lista: D. Carlos, D. Luís Filipe (1908), Sidónio Pais (1918), António Granjo e Machado Santos (1921), Humberto Delgado (1965) e talvez Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa… Já S. Tomás de Aquino ensinava que tal como a lei injusta não é propriamente lei, também o tirano não passa de um sedicioso, pelo que a luta contra o tirano (aquele que utiliza o poder no seu próprio interesse e não ao serviço do bem comum) não é sedição e a resistência à tirania é legítima. Salvo se da resistência resultar maior dano que a tirania ou se a tirania for considerada como justo castigo dos pecados cometidos pelo povo. Mas a resitência é prerrogativa da comunidade que só através dos seus representantes qualificados pode cometer o tiranicídio, nunca podendo os particulares matar o tirano por sus própria iniciativa (teses contrárias à de João de Salisbúria (1110-1180) e de Juan Mariana (sec. XVI) Muito liberalmente, Locke define a tirania como o exercício do Poder para além do Direito, onde o uso do Poder não é para o bem dos que lhe estão submetidos, mas para as vantagens privadas de quem o exerce. A vontade do detentor do poder passa a regra e os comandos e acções do mesmo não são dirigidas para a presrevação das propriedades do respectivo povo, mas para a satisfação das paixões desse detentor. A tirania não afecta apenas a monarquia, mas qualquer outra forma de governo. Assim, onde o direito termina, a tirania começa. Entre nós, Fernando Pessoa, em Cinco Diálogos sobre a Tirania, refere-a como o exercício de força; de força para obrigar alguém a fazer ou não fazer qualquer cousa; que é exercida em virtude de um princípio exterior ao individualismo tiranisado; que esse princípio não é por ele aceite; e que da aplicação desse princípio nenhum benefício, mediato ou imediato, para ele resulta.  Para Hannah Arendt, na tirania, o poder é destruído pela violência, onde a violência de um destrói o poder de muitos, gerando-se um Estado em que não existe comunicação entre os cidadãos e onde cada homem pensa apenas os seus próprios pensamentos e levando ao banimento dos cidadãos do domínio público, para a intimidades das suas próprias casas, exigindo-lhes que se ocupem apenas dos assuntos privados. Assim, a tirania privou as pessoas da felicidade pública, embora não necessariamente do bem-estar privado.  Neste contexto, assume particular destaque a teoria do tiranicídio. Se a anterior teoria escolástica considerava que o tirano apenas podia ser morto por representantes autorizados do povo, alguns autores escolásticos vão passar a defender que ele pode ser morto até por um indivíduo isolado. Entre estes, o jesuíta espanhol Juan de Mariana (1536 1624) que, em De Rege et Regis Institutione, editado em Toledo em 1599, assume uma posição de tal modo radical, que o coloca ao lado dos próprios monarcómanos. Porque considera que só a qualificação do tirano é que não pode ser arbitrária, exigindo-se notoriedade ou prévia decisão da colectividade.O facto de ter dado como exemplo de justo tiranicidio, o assassinato do rei de França Henrique III, ocorrido em 1589, levou a que o livro fosse queimado publicamente em Paris, em 1610, na sequência do assassinato de um novo rei, Henrique IV.

(Imagem de António Granjo)

Dez 30

O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES. SEM COMENTÁRIOS.

Dès aujourd’hui le Portugal est à la tête de l’Europe. Vous n’avez pas cessé d’être, vous portugais, des navigateurs intrépidesVous allez en avant, autrefois dans l’océan, aujourd’hui dans la vérité. Proclamer des principes, c’est plus beau encore que de découvrir des mondes

(Vítor Hugo, em carta dirigida ao maçon Brito Aranha, saudando a abolição da pena de morte, em 15 de Julho de 1867, a qual já tinha sido eliminada para os crimes políticos em 1852)

Dez 28

Entre receios e desejos para o ano que vem

Resposta dada ao Semanário “O Diabo” sobre o que mais receio e o que mais desejo para 2007:
Entre receios e desejos, bem apeteceria responder como homem comum, e dizer de forma democrática e pluralista, tanto o “saúde e fraternidade” da I Republica, como o slogan de Fernando Pessoa, a gozar com um dos primeiros lemas do Estado Novo “tudo pela Humanidade, nada contra a Nação”. Por isso temo que o socratismo nos continue a Salazar izar, em nome de uma Europa de merceeiros mentais, que o PSD não lidere a oposição ao Bloco Central de interesses e que a autonomia da sociedade civil não assente nos homens livres da finança e dos partidos. No plano internacional, porque acredito que a Europa das liberdades nacionais e da autonomia das pessoas pode voltar a caminhar do Atlântico aos Urais, receio que não se siga a lição de Kant de 1795 e que continue esta anarquia ordenada e esta falta de ordem universal, marcada pela confusão que a república imperial que resta continua a fazer entre os sonhos da humanidade e o respectivo interesse nacional. 
Desejava mesmo que D. Sebastião não tivesse morrido, para podermos ter o verdadeiro poder dos sem poder, sem apocalipses nem teorias da conspiração. Para tanto, seria conveniente restaurarmos a “res publica”, a fim de cercarmos a coroa aberta desse império sem imperador com instituições de cidadania. Por nós, bastaria que entrássemos em verdadeira organização do trabalho nacional, partindo do respeito pela palavra dada por aqueles que têm o mérito de viverem como pensam, porque neste tempo de homens lúcidos convém ter a lucidez de continuar ingénuo. Daí exigir o regresso da justiça que sempre foi o de cada um conforme as suas possibilidades, para podermos dar a cada um conforme as suas necessidades, misturando a honra do “antes quebrar que torcer”, com a inteligência dos que não têm medo e não cedem à cobardia dos que dizem que tem razão quem vence, embora saibam que, por cá, continuam a vencer os que não têm razão.

Dez 27

Alguns votos de boas festas…

Depois de breve incursão naquele Portugal profundo que é a barresiana pátria, a terra sagrada pelos meus mortos, volto ao circuito capitaleiro, das grandes novas do Estado a que chegámos e do universo televisivo, feito à imagem e semelhança de um país bem pequenino: o dos valores dos colégios pretensamente finos do capitaleirismo que formaram esta geração que pretende controlar a nossa opinião pública, onde os heróis cívicos têm que ser ex-MRPPs como foi a mamã, nos velhos tempos do PREC, quando falava em libertação, só porque tinha no quarto um poster do “make love, not war”. Reparo que os discursos dos políticos continuam perdidos no inferno das boas intenções, onde continua a ter razão quem vence e onde, há muito, não vence quem tem razão.

Reparo que continuamos a ter medo de sermos quem devemos ser, esta mistura de pragmatismo e aventura que nos levou a dar novos mundos ao mundo, mas que hoje se vai diluindo nesta mesquinha procura do antes torcer que quebrar, com cedência aos neofeudalismos e neocorporativismos, especialmente quando a cidadania se esgota no indiferentismo. Porque continuamos dominados por aquela falta de organização do trabalho nacional que raramente consegue praticar a urgente avaliação do mérito.

Temo que continue esta falta de autenticidade dos políticos profissionais que tivemos de eleger e que se acentue o fosso entre as expectativas geradas e a constante falta de respeito pela palavra dada, levando a que se torne regra este processo segundo o qual, na prática, a teoria é outra. Bem gostaria que a honra voltasse a casar-se com a inteligência, que a moral voltasse a guiar os homens livres e que a economia não subvertesse a política.
Ouço que Saddam vai ser enforcado nos próximos trinta dias, temo que a guerra internacional contra o terrorismo assente na falsa ideia do conflito de civilizações e que a república imperial que resta não volta a ser luzeiro das liberdades e da justiça.
Reparo que Sócrates e os socialistas que nos governamentalizam correm o risco de nos continuar a Salazar izar, em nome de uma Europa de merceiros e contabilistas, enquanto a sociedade civil continua a rimar com Pinto da Costa e o PSD não consegue ser oposição ao Bloco Central, ao memso tempo que o CDS não consegue sair da sacristia e todos se diluem num ritmo de “agenda setting” fiel ao conceito dos mecenas bancários.
Bem apetecia que a União Europeia caminhasse do Atlântico para os Urais e integrasse Bizâncio, para que a igrejinha de Mértola voltasse a ser templo, sinagoga, mesquita e capela do monte. Para que os socialistas fossem mais liberais por dentro, para que os comunistas se convertessem ao pluralismo e os direitistas se tornassem menos reacionários. Para que também desaparecesse este refúgio de um centro mole e difuso e surgisse o necessário centro excêntrico, onde muitos pudessem radicalmente militar, sem necessidade de serem queimados como extravagantes, só porque não querem descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado

Dez 24

Instaurar a república, para restaurar o reino e sonhar o V Império

Bom Natal neste Solstício, à esquerda e à direita, na cidade e nas serras, na terra, no mar e no ar, para católicos e maçons. Para católicos que não são maçons e para maçons que não são católicos, para que a religião não seja Maçonaria e para que a Maçonaria não seja religião. Para que a direita e a esquerda sejam direitas e esquerdas, para que as cidades não sejam capitaleiras e as aldeias, vilas e lugares se não desertifiquem. Para que no princípio volte a ser o verbo e mais um deus seja o deus menino. Sobretudo para que, depois de lerem este extracto de um “logos” maior, não me venham alguns irracionais, que se dizem ortodoxos, mesmo do centro, em nome do dogma e do falso catecismo das vulgatas, considerá-lo uma heresia, só porque embrulham a tolerância com o antiquado verniz do inquisitorialismo sebenteiro e caceteiro. Porque até os monárquicos têm que ser republicanos, dado que, para vivermos em melhor regime, onde as nações têm de ser semente do Estado de Direito universal, só poderemos restaurar o reino e sonhar com o Quinto Império do poder dos sem poder, se antes instaurarmos a república, se antes recuperarmos a autenticidade dos sucessivos círculos instauradores da polis.
Primeiro, a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, a moral, a ciência da autonomia, que guia os actos do homem como indivíduo. Em segundo lugar, a autonomia da casa e da ciência dos actos do homem enquanto membro de uma “oikos”, a economia. Só depois vem a “polis”, quando saímos dos sucessivos espaços imperfeitos da sociabilidade que nos podem dar as ordens normativas da moral, da religião, dos costumes e da economia, entrando na cidadania da democracia, onde, para além da racionalidade técnica do bem estar e da segurança, acedemos, através de uma conversão interior, à racionalidade ética, que sempre foi sintetizada no valor justiça. E tudo isto num tempo em que passámos de urbe para orbe e a polis já pode assumir-se como cosmopolis. Com os pés na terra dos homens de boa vontade, mas olhando as estrelas do deus menino e de outros deus maiores e menores. Com paz na terra e paz pelo direito.

Dez 22

Primeiro, a aula. Só depois, o capítulo

Nunca acreditei no modelo, até agora dominante, dos que querem conservar o que está, até porque nunca demonstraram querer conservar o que deve ser. Assistirei, com todo o zelo de homem livre, ao desenrolar de um processo onde a minha cidadania académica não foi, nem será, chamada a participar, mas a que responderei com lealdade aos valores e nas funções de professor catedrático e senador da minha universidade.  Sugiro apenas que não queiram descobrir o que já está descoberto nem inventar o que já está inventado: a ideia de universidade e os modelos de sucesso. Já agora acrescentem-lhe a experimentação de séculos de serviço público em Portugal, nacionalizando as excelentes ideias importadas pelos relatórios da OCDE e de outras agências globalizadoras, sem as traduzirem em calão. Os oligarcas da universidade a que chegámos preferiram a ditadura do “statu quo”, outros começam a pensar no leilão e, enquanto o pau vai e vem, haverá sempre alguns primitivos actuais que aproveitarão para rapar os últimos restos do tacho, pintando-se de falsos dom-sebastiões, quando não passam de tigres de papel, repetindo o herético “dominus vobisque” de outras eras. A história há-de registar em notas-pé-de-página este livro de estilo charlatão, onde todos vão ralhar porque falta o pão orçamental, o posto de vencimento e o diabo a quatro. Alguns até serão ousados e tentarão transformar as respectivas instituições em subdelegações das delegações asiáticas de certas potências universitárias do primeiro mundo, à espera dos futuros despedimentos da deslocalização globalizadora. Outros, percebendo que são fortes grupos de pressão corporativos, continuarão a assobiar para o lado, porque se consideram, e são, “praeter decretum”, dos decretinos ocupantes do aparelho de Estado. Os restantes, perante tanta geometria variável, correrão para o acaso da encomendação feudal. Por mim, sorrio, embora saiba que sofrerei no lombo a chicotada que deveria caber aos pecadores. Mas continuarei seguindo o lema de Hernâni Cidade: “primeiro, a aula, só depois o capítulo”. O ensino superior continua à procura do bom senso, mesmo que ele seja Gago, mas não Coutinho. Falta-lhe um corrector de rumos colectivo a que na navegação se chamou sextante

Dez 22

OS GRANDES PORTUGUESES…E A AUSÊNCIA DE MULHERES

Em tempos friorentos, nada melhor para aquecer a alma do que uma boa gargalhada, especialmente quando os pretensos comandantes das instituições seguem a máxima daquele que dizia que um quarto de hora antes de morrer ainda estava vivo. Por isso, notei como, entre os grandes portugueses do programa de Maria Elisa passaram a entrar Salazar e Cunhal, mas não qualquer mulher, nem a Amália. Julgo que tudo seria diferente se, em vez de figuras humanas individualizadas, pudessem participar entidades metafísicas. Porque, neste caso, sempre poderiam entrar na lista uma Maria da Fonte ou então quem inevitavelmente venceria o sufrágio divino e humano, a portuguesíssima Nossa Senhora de Fátima. Como me contaram, até houve, noutras épocas, um lusitano sacerdote da Califórnia que, ao abrir uma escola de língua portuguesa, utilizou o “slogan”: venha aprender

Dez 22

CONTINUA O REGIME DO ANTES TORCER QUE QUEBRAR…

Jugo que o melhor comentário ao debate de ontem sobre o ensino superior vem chapado nos jornais: o confronto parlamentar revelou-se estéril. Jaime Gama ainda brindou a Oposição e Governo com mais hora e meia de debate, mas o tempo não foi minimamente aproveitado. O primeiro-ministro foi acusado de enumerar ao Parlamento orientações genéricas de uma reforma que só será apresentada daqui a seis meses e que, por isso, só serviu “para marcar calendário”. Durante quatro horas, Sócrates repetiu que a Oposição não fez propostas porque quer tudo na mesma.

Foi pena. Aliás, quando temos um Presidente da República e um Primeiro-Ministro oriundos daquilo que hoje se qualifica como “Politécnicos” e um líder da oposição que foi supremo-mandador de uma universidade privada, por nomeação de uma entidade pública, uma entidade municipal onde era presidente do respectivo órgão parlamentar, muito teríamos a ganhar. Vale-nos que, depois do jogo do Benfica e antes da telenovela, tivemos uma grande entrevista com um ilustre catedrático que veio dizer que já não lê jornais e que nunca dirá nunca se os convites do poder lhe baterem à porta.

Ambos os episódios são bem reveladores do processo de desertificação de ideias em vigor, onde a cobardia passou a chamar-se gestão de silêncios, quando as circunstâncias continuam propícias para a inevitável colonização cultural que se aproxima. Juntando a isto a questão dos chamados voos da CIA, apenas confirmo que, mais uma vez, a classe política no activo, incluindo a jubilada, a aposentada e a reformada, apenas quer ser emérita, dado que parece ter perdido a vontade de ser independente, tanto na autonomia pessoal e institucional, como na própria autonomia nacional.

Apenas acrescento o que há dias comentei para a revista “Visão” e que veio parcialmente transposto no número de ontem: a pós-revolução que instalou este regime, e quando digo regime não digo constituição nem programas de governos e partidos, mas a mistura dos discursos de boas intenções do Estado-aparelho de poder, com as práticas quotidianas da comunidade, daquilo que é a res publica e a que outros chamam sociedade civil, vivia num politicamente correcto que estava fora do tempo do ambiente internacional em que nos integrávamos, o da União Europeia pós-guerra fria e o da globalização. Agora, o que estamos a viver é a falta de autenticidade ao retardador, dado que é um governo socialista a ter que desmantelar o socialismo herdado, não por convicções assumidas, mas por exigências do défice orçamental, externamente policiadas, sem a possibilidade de recurso aos habituais magos da engenharia macromonetária, como foi a do cavaquismo governamental.


Julgo que estes “encerramentos” apenas reflectem que o chamado poder de governação do país é apenas uma espécie de governança sem governo, onde a maioria dos factores de poder já não são intranacionais, mas mera gestão de dependências e de interdependências, onde funciona uma espécie de piloto automático onde o “software” foi desenhado por outros, que não os cidadãos da República dos Portugueses. Julgo que outros encerramentos bem mais dramáticos se aproximarão, como o encerramento das universidades ou do próprio conceito de administração pública clássica, transformando a a constituição em mero objecto de dissertações de mestrado, doutoramento ou de reflexões públicas de constitucionalistas em telejornal, caso não voltarmos às virtudes plurisseculares da vontade de sermos independentes.

Com efeito, esta dissolução de Portugal no contexto da “balança da Europa”, para utilizar o título de uma obra de Almeida Garrett, está a precisar daquilo que os homens de 1820 qualificaram como “regeneração”, quando concluíram que, depois das invasões napoleónicas foi mau caminho ficarmos sob a tutela dos amigos protectores.


Apenas digo, em termos metafóricos, glosando um dito de Mounier, que os problemas económico-financeiros apenas se resolvem com medidas económico-financeiras, mas não apenas com medidas económico-financeiras. Apenas se resolvem quando as medidas económico-financeiras forem parcelas de um mais amplo conjunto de medidas políticas.

O que falta a Portugal é política que é coisa séria demais para continuar a ser monopólio dos políticos que temos, numa época em que o indiferentismo generalizado corrompeu a cidadania participativa e quando o aparelho de Estado está sitiado por esse tradicional processo de compra do poder, a que desde sempre se deu o nome de corrupção.


Logo, concluirei que estes encerramentos são apenas a parte visível de um “iceberg”, os epifenómenos de um fenómeno que não tem sido pensado: está em crise “o Estado a que chegámos”, para utilizar o dito de Salgueiro Maia sobre o 24 de Abril que ele derrubou.

Dez 22

Primeiro, a aula. Só depois, o capítulo

Nunca acreditei no modelo, até agora dominante, dos que querem conservar o que está, até porque nunca demonstraram querer conservar o que deve ser. Assistirei, com todo o zelo de homem livre, ao desenrolar de um processo onde a minha cidadania académica não foi, nem será, chamada a participar, mas a que responderei com lealdade aos valores e nas funções de professor catedrático e senador da minha universidade.  Sugiro apenas que não queiram descobrir o que já está descoberto nem inventar o que já está inventado: a ideia de universidade e os modelos de sucesso. Já agora acrescentem-lhe a experimentação de séculos de serviço público em Portugal, nacionalizando as excelentes ideias importadas pelos relatórios da OCDE e de outras agências globalizadoras, sem as traduzirem em calão. Os oligarcas da universidade a que chegámos preferiram a ditadura do “statu quo”, outros começam a pensar no leilão e, enquanto o pau vai e vem, haverá sempre alguns primitivos actuais que aproveitarão para rapar os últimos restos do tacho, pintando-se de falsos dom-sebastiões, quando não passam de tigres de papel, repetindo o herético “dominus vobisque” de outras eras. A história há-de registar em notas-pé-de-página este livro de estilo charlatão, onde todos vão ralhar porque falta o pão orçamental, o posto de vencimento e o diabo a quatro. Alguns até serão ousados e tentarão transformar as respectivas instituições em subdelegações das delegações asiáticas de certas potências universitárias do primeiro mundo, à espera dos futuros despedimentos da deslocalização globalizadora. Outros, percebendo que são fortes grupos de pressão corporativos, continuarão a assobiar para o lado, porque se consideram, e são, “praeter decretum”, dos decretinos ocupantes do aparelho de Estado. Os restantes, perante tanta geometria variável, correrão para o acaso da encomendação feudal. Por mim, sorrio, embora saiba que sofrerei no lombo a chicotada que deveria caber aos pecadores. Mas continuarei seguindo o lema de Hernâni Cidade: “primeiro, a aula, só depois o capítulo”. O ensino superior continua à procura do bom senso, mesmo que ele seja Gago, mas não Coutinho. Falta-lhe um corrector de rumos colectivo a que na navegação se chamou sextante

Dez 20

O PAÍS DOS AVENÇADOS. MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM DEVE. OU O PODER DO SABER COMPRADO…

Vou transcrever uma notícia curiosa e pouco politicamente correcta : O Governo de José Sócrates prevê gastar no próximo ano mais de 95,4 milhões de euros em estudos, pareceres, projectos e consultadorias. Este ano só os gabinetes dos ministros dispunham de uma verba de 4,4 milhões de euros para esta rubrica. O gabinete do ministro da Administração Interna, António Costa, é mesmo um dos mais gastadores com um montante de 628 652 euros. Já no próximo ano, segundo o Orçamento de Estado para 2007, o Ministério da Administração Interna conta com uma verba superior a 3,7 milhões de euros para a realização de estudos e pareceres. Mas no ‘ranking’ dos Ministérios mais gastadores, o primeiro lugar é ocupado pelo Ambiente, com uma verba de mais de 25 milhões de euros, seguido da Ciência com mais de 17,5 milhões de euros.

As Obras Públicas ocupam o terceiro lugar com um montante superior a 14,6 milhões de euros, seguido da Justiça com 8,2 milhões e da Economia com 6,2 milhões. Já as Finanças soma uma verba de 4,4 milhões de euros e a Segurança Social de 4,2 milhões. Com valores abaixo dos da Administração Interna ficam assim a Saúde (3 milhões de euros), a Agricultura (2,6 milhões), os Negócios Estrangeiros (1,9 milhões), a Cultura (1,7 milhões) e Educação (1,1 milhões). O Ministério da Defesa ocupa o último lugar da tabela, com 675 384 mil euros. 

No total, a verba do Governo para estudos e pareceres em 2007 é superior a 95,4 milhões de euros.

Vou fingir que não sou professor catedrático de uma universidade pública lusitana e clamar por uma política de transparência que nenhum governo será capaz de pôr em prática: dêem-nos a lista dos consultores escolhidos, com nome posto no “Diário da República”. Mais: entreguem imediatamente todos esses pareceres a todos os restantes órgãos de soberania e aos partidos institucionalizados da oposição, como se faz em muitos países democráticos, a começar por Espanha.

Julgo que deste modo todo o povo entenderia melhor o crescente neocorporativismo e neofeudalismo. Haveria um mínimo de “glasnot” e poderíamos pensar na “prestroika”. Até seria interessante, para se detectarem as variações de humor de alguns desses avençados que também são “opinion makers”. E o silêncio dos que são à segunda-feira são professores universitários, à terça-feira consultores de privados, à quarta de clubes desportivos, à quinta de partidos e à sexta de si mesmos. Qualquer politólogo sabe de ciência certa, sem qualquer poder absoluto, que tal tipo de actividade é eventualmente parcela de um conceito de pressão, bem próxima daquilo que outros indicam como compra do poder. Se a actividade de professor público e de exercício de saber fosse mesmo poder.

Claro que, apesar de se controlarem as acumulações de professores públicos em instituições privadas, estas formas de actividade privada nunca foram controladas nem no âmbito dos registos obrigatórios de interesses. Manda quem pode, obedece quem deve.

Por mim, confesso que sempre rejeitei a actividade, apesar de algumas vezes convidado. Fiz duas análises políticas para o gabinete do ministro Marques Mendes no tempo do cavaquismo e não quis receber nada nem continuar na coisa. E rejeitei dar parecer sobre planos da água e reforma das prisões com governos socialistas. As muitas outras consultas que tenho dado, ou são públicas, nomeadamente para a comunicação social, ou são institucionais e gratuitas, no âmbito institucional. Julgo que tal exercício intelectual, numa “res publica”, deveriam ser incluídas no âmbito da prestação de serviços à comunidade, a cargo das universidades e não sei se foram incluídas no parecer da OCDE sobre a coisa, ou objecto de uma recomendação do Conselho de Reitores. Por isso é que gostaria mesmo de ser funcionário público ou de ser trabalhador de uma fundação que transformasse essa nobre actividade numa receita própria das universidades. Aprendi isso com o meu mestre Guilherme Braga da Cruz que até o trabalho como jurisconsulto do Estado Português no Tribunal da Haia foi considerado serviço do bem comum e da função. E assim me liberto de futuros convites para membro de júris em determinadas escolas…