Mar 31

Aprender a viver.

Mudar de sítio pode ser mudar de horizonte e encontrar, no acaso das estantes de uma livraria, novas janelas escritas que nos baralhem os dados e nos voltem a dar sonho. Primeiro, foi A Coroa, a Cruz e a Espada, de Eduardo Bueno, sobre lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia 1548-1558, de Setembro d 2006. Segundo, foi a tradução de Apprendre à Vivre. Traité de philosophie à l’usage des jeunes générations, de Luc Ferry, de Dezembro de 2006.

Sem querer fazer recensões a duas obras que devorei, começo por este último, nascido no mesmo ano que eu, reparando que a boa novidade que ele traz não é a vanguarda das modas que passam de moda, mas a eterna corrente dos estóicos e o humanismo liberdadeiro de Rousseau e Kant, reassumido por Husserl, nessa procura liberalmente individual do transcendente situado que sempre rejeitou os materialismos, do positivista ao marxista, bem como activismos nietzschianos, de cunho fascista, ou fidelíssimas interpretações, com nihil obstat.

 

Folgo comungar com o filósofo que ficou farto de ser político, nesse ambiente de pós-Maio 68 que não precisa de revisionismo para se manter na linha do humanismo de sempre. Porque o homem é o único animal que sabe que vai morrer, porque a democracia é mesmo o único regime que favorece o aparecimento de elites de homens livres, porque importa descobrir, mais do que conceitos, importa o exercício da sabedoria, porque há que compreender antes e criticar, superando as algemas da nostalgia passadista e o futurismo sem presente.

Embora a palavra saudade nunca apareça, também eu considero que a razão inteira não pode naufragar na fé e ainda subscrevo que a inteligência é superior à confiança, mas com humildade, sem a soberba do vanguardista e reconhecendo os sinais dos judeus e a sophia dos gregos, rejeitando que a filosofia seja serva da religião e optando por pensar por mim mesmo e não apenas por meio do outro, onde há mais disciplina do que ciência e mais pirâmides conceituais do que criatividade.

Mar 31

Lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia

O jornalista-historiador, Eduardo Bueno, vestindo-se de uma linguagem weberianamente dura, descreve, de forma realista, as grandezas e as misérias lusitanas, mas, por isso mesmo, manifesta um intenso amor às origens da sua própria pátria. E lá podemos viajar pelo tempo do senhor D. João III, Tomé de Sousa e Manuel da Nóbrega, entre letrados e guerrilheiros de Jesus, com seculares, burocratas e desterrados que saíam do Tejo à procura de um lugar onde que lhes desse vida, já que, no velho reino, eram mais os pés do que as botas. Já então a história de Portugal era a história do défice, do desperdício e da exagerada carga fiscal. Bueno mostra-nos os extremos, entre o lusitano Caramaru, um desses lançados que se transformou numa espécie de rei dos índios, e o jesuíta Manuel da Nóbrega, o fundador de São Paulo, o gago das mortificações em público, ditas exercícios espirituais. E assim continuamos a viver entre o sórdido da corrupção e o dramático da procura do mais além, enquanto alguns vícios privados, de vez em quando, se inserem no bem comum, mesmo quando misturam feudalismo e estadualismo, economia privada e serviço de el-rei, num acumular de contradições que acabou por constituir esse reprodução de cidades e do próprio reino, a que hoje chamamos Brasil. A descrição de Bueno é atraente, fazendo da história uma espécie de guião cinematograficamente colorido e tornando-se numa espécie de livro de aventuras empolgante, mesmo quando exagera no traço e caricaturiza o lado da degenerescência de uma sociedade de favoritismos, tráfico de influências, exagero de funcionários e corrupção. Porque faz, muito lusiadamente, a denúncia caseira dos nossos próprios vícios. Aliás, a crítica acerba pode ser uma forma humanista de amor, nesta viagem por umas profundas origens medievais e renascentistas, quando ainda não tinham chegado os ventos do soberanismo, do estadualismo e do próprio negocismo capitalista e se viviam as explosões da nossa mistura de heterodoxias, entre cristãos novos, fidalgos falidos, militares andantes, navegadores, arquitectos, físicos e artesãos, todos muito papeleiros e humanamente imperfeitos. Mas foi nesse caos, refugiados nas paliçadas, entre a voragem esclavagista e a antropofagia, que começámos a tal procura do paraíso que levou todos a desmatar uma terra quase virgem, construindo cidades e vilas, dotando-as de vereações pluralistas e erigindo um novo reino, sempre segundo o regimento, sempre violando o regimento, para também se vararem as linhas das Tordesilhas. Todos os povos são também as respectivas origens, essemanifesto destino que a nossa liberdade de sonhar vai construindo e desconstruindo, dia a dia vencendo a necessidade, o tal desafio das circunstâncias que vamos moldando, em nome da perfeição de um mundo melhor, nesse transcendente situado a que chamamos vida, entre a aventura e o pragmatismo.  Só depois de ler tudo, de um jacto, é que reparei fazer parte da bibliografia, como meu O Estado e as Instituições, de 1998, incluído na História de Portugalde A. H. de Oliveira Marques, no volume coordenado por João Alves Dias (século XVI), com um comentário honroso.

Mar 31

A Europa que começa a não estar connosco…

Vimos, ouvimos e lemos, mas os nossos responsáveis, políticos e académicos, continuam a ignorar, têm de ser arrastados pelo mainstream. Preferem cantar a loa daEuropa connosco, apenas conjugando o verbo nopretérito imperfeito. Entretanto, a cadeia do rolo unidimensionalizador vai-se alargando em chouriçadas decretinas, transformando as secções universitárias com menos poder de pressão em pequenos gabinetes de planeamento de “curricula” que vão tirando da “Internet”, com imenso “copy and paste”, enquanto jovens assistentes fazem noitadas, com tabelas de equivalência lançadas em papel quadriculado, longe da vida, longe do sonho e, sobretudo, longe da sabedoria. Pobres os que, depois da destruição, ficam à espera do que há-de vir, porque o que parecia ter que ser pode não vir mesmo. Entretanto, à bela maneira das passagens administrativas do PREC, alguns líderes institucionais, em processo eleitoral, prometem facilidades, onde os velhos quartos anos da licenciatura, com uma simples tese, podem transformar-se em gloriosos mestrados e ser rampa de lançamento para mais futuríveis dissertações de doutoramento. Vale-nos que os romances de cordel contam as recentes aventuras das privadas e acirram este nosso sonhar é fácil do enquanto o pau europeu vai e vem folgarem os costados do chico-esperto, sentado na encruzilhada deste potencial regime de passagens administrativas, à procura do canudo e da melhoria das estatísticas, como se, do regabofe, alguém pudesse lucrar. Julgo que a autonomia das universidades assenta naautonomia dos professores e na consequentemeritocracia, coisa que deveria ser sinónimo de democracia, de escola de cidadania e de semente de homens livres. Não esperemos que a terapêutica de um futuro ministro das universidades seja capaz substituir-se à necessária profiláctica. Por mim, serei consequente e não irei por aí. Não subscreverei esta ameaça de degradação académica, pedagógica e científica que vai germinando. Quando uma democracia passa a ser o reino da quantidade, não tardará que os inimigos e críticos da democracia a assaltem por dentro… os sinais que vislumbro no meu quintal são óbvios demais. O ensino superior continua à procura de bom senso!

Mar 30

Entre vanguardistas e derrotados políticos, sejamos bandeirantes e regeneradores

Depois da missão cumprida, foi continuar a peregrinação por esta antiga capital de Portugal, ainda saudoso do esplendor de livros e de pedra talhada do Real Gabinete, onde recordo os sinais e testemunhos deixados por Ramalho Ortigão, Joaquim Nabuco, Gago Coutinho e António José de Almeida, nesta cadeia de gerações que unem os nossos sucessivos sonhos e paraíso. Quase comparo esta visita à viagem que, outora, fiz à sinagoga portuguesa de Amsterdão. Porque são quase sempre os chamados heterodoxos que resistem na profunda tradição da lusitana antiga liberdade que sempre foi de antes quebrar do que torcer. E, no silêncio do Real Gabinete, lá conversei com meus avoengos mestres, de Herculano a Camilo, de Carlos Malheiro Dias a Jaime Cortesão, nessa constante procura de um Portugal mais do que Portugal, esse sonho que vai além da pátria física da terra dos mortos e se pode sempre elevar em navegação e bandeira, fazendo dos sertões do tempo o espaço do próprio mar-oceano. Especialmente quando a terra-mãe das origens se torna patroa e madrasta, presa nas teias dos donos do poder e de alguns dos restos dos senhores da guerra, com muitos herdeiros de inquisidores, das juntas de providência literária e das reais e republicanas mesas censórias, amarrados às vistas curtas dos conjunturais politicamente correctos, de que são sorridentes escravos, incluindo os ministerais. No templo do Real Gabinete se guardam sinais de sonhos e contemplações, prenhes de tradição e de futuro, especialmente daquele quinto império do poder dos sem poder, onde a pátria da língua portuguesa não é senão mera super-nação futura. Aliás, em plena turbulência doméstica, sempre houve cientistas que se puseram a caminho do Sul, como Gago Coutinho, com Os Lusíadasque ofereceu ao Real Gabinete, numa mão, e o sextante, na outra.  Sempre houve cultores do verbo e da autenticidade, como António José de Almeida que aqui veio em 1922, agradecer ao Brasil o ter-se tornado independente. Sempre houve António Ferro, clamando pelos Estados Unidos da Saudade, João de Barros ou Nuno Simões. Parafraseando Ramalho, assinale-se que mesmo que haja um cataclismo nos estreitos limites da Europa, não precisamos de jangadas de pedra, porque já nos reproduzimos aqui, neste Portugal maior, neste Portugal à solta, dando novos mundos ao mundo, quando nos diluímos na diferença dos outros, que não considerámos inferno. Paupérrimas questiúnculas domésticas, como as do colégio eleitoral da RTP que elegeu, a título póstumo, como os melhores portugueses de sempre, dois políticos profissionais que, nunca souberam, pelo saber de experiência feito, que, muito lusotropicalmente, o pecado não mora do lado de baixo do Equador. Esses votantes, dignos representantes de certo grupo dos portugueses que restam na Europa, têm quase todos medos do enjoo da viagem, preferindo o império dos merceeiros ou os campos de concentração em que se enregelou a utopia do D. Sebastião científico. Uma pequena nota para o jornal “Público” de hoje que relata, sem o picante da escandaleira, a sessão realizada anteontem no RGPL, mas onde assume o paradoxo de atribuir uma frase da minha autoria a quem nunca a poderia proferir, isto é, a um dos ministros derrubados pelos capitães de Abril. Fui eu, que há muito deixei de ser secretário da AICP, que disse: os regimes, em Portugal, caem de podre porque, muitas vezes, ultrapassam todos os prazos de validade que lhe garantiam autenticidade. Só que a apatia e o indiferentismo gerados pelas manobras da elite no poder, lançam o colectivo numa inércia cobarde, inversamente proporcional ao activismo dos oposicionistas, cujo vanguardismo, marginal face à opinião pública, resulta, precisamente, da frustração de não se sentirem, entre ela, como peixe na água. Repito-o num contexto diacrónico: porque temos tendência para fazer durar e durar cinzentismos decadentistas, desde o crepúsculo da monarquia liberal, desde o Ultimatum ao 5 de Outubro (20 anos), à nova república velha pós-sidonista (nove anos, desde o magnicídio do Rossio à subida de Salazar à ditadura das finanças), passando pelo velho Estado Novo (16 anos, desde as eleições de Delgado em 1958 ao contra-28 de Maio de 1974). Porque quando as crises se difundem nas consciências individuais daquelas maiorias sociológicas que preferem as delícias da servidão voluntária ao inconformismo da necessária revolta dos escravos, quase sempre tropeçamos com as degenerescências da ditadura da incompetência e da compra de poder, enquanto os sistemas entram em pilotagem automática e as elites vegetam num deserto de ideias, com pensadores feitos intelectuários, procurando os restos que caem da mesa do orçamento ou dos subsídios dos mecenas. Consolida-se assim um situacionismo bonzo, típico dos blocos centrais de interesses politiqueiros e negocistas, onde a ilusão de alternância fomenta o rotativismo das duas faces da mesma moeda, a que hoje damos o nome de PS e PSD. Acontece até que os controladores sistémicos, mais ou menos banco-burocráticos, liquidam as verdadeiras alternativas que podiam dar-nos o urgente golpe de Estado sem efusão de sangue, como Popper chamou às mudanças pela via eleitoral, ao promoverem canhotos e endireitas, para além de fomentarem o medrar da borbulhagem dos extremistas da esquerda e dos extremistas da direita, apostados em morderem nas canelas uns dos outros. Por mim, gostaria que este regime não caísse apodrecido. Não há por aí um subversivo Herculano que comece a pensar aregeneração mesmo que seja com Saldanha, Fontes e Rodrigo? Eu, que me assumo como histórico, estou disposto a filiar-me no partido de Anselmo Braamcamp e a não o abandonar mesmo depois do regicídio.

Mar 29

Um pedaço do Portugal à solta à procura do abraço armilar

Foi com emoção que, ontem, tive a honra de conferenciar num dos templos da pátria e da liberdade, no Rio de Janeiro, o Real Gabinete Português de Leitura, fundado há 170 anos por exilados liberais portugueses, agora instalado num edifício neomanuelino, inaugurado em 1887, onde se guarda uma primeira edição d “Os Lusíadas” de 1572, ou o manuscrito do “Amor de Perdição”, que o presidente António Gomes da Costa me permitiu consultar. Porque esta instituição, de matriz azul e branca, isto é, liberal e liberdadeira, ainda vive como pensa, como um pedaço de Portugal à solta, tentando cumprir a ideia maior do abraço armilar, fiel à matriz dos homens livres que a fundaram e sucessivamente recriaram (aqui deixo algumas imagens do espaço e das pinturas que nela se guardam, de Camilo a um quadro de Malhoa sobre a descoberta do Brasil). E não foi por acaso que esta instituição teve a coragem de recordar alguém que, no ano de 1980, teve o seu corpo em câmara ardente nesse local.

Tentei identificar Marcello Caetano com um certo tempo de vésperas daquele que ainda hoje nos mobiliza, e que talvez faça aquecer em valor mais altoespera, esfera e esperança o necessário abraço armilar. Tentei falar de um certo tempo português, para o qual não tem sido adequado o verso épico, mas sobre o qual também já chegou a hora de pormos fim às inverdades e aos insultos. Porque Marcello era racional-normativo em demasia para poder erguer uma nova legitimidade carismática. Maquiavélico de menos para poder instrumentalizar a legitimidade tradicional do patrimonialismo, isto é, dos donos do poder e dos senhores da guerra

 

E sempre foi paradoxalmente português: o jovem monárquico neo-integralista que se assumiu como republicano; o adolescente para-fascista da revista Ordem Nova constitucionalista que teve de manter aparelhos autoritários de repressão; o de 1926, que nos quis transformar em Estado de Legalidade; o corporativista que lançou a reforma capitalista; o professor de direito que tem de ser chefe de generais em guerra.

E foi no Real Gabinete que recordei o Brasil como permanente terra de exílios. Dos liberais expulsos pelo miguelismo. Dos miguelistas exilados depois da derrota (e lá consultei na Biblioteca um exemplar da tradução que José da Gama e Castro fez no Rio de Janeiro a “The Federalist”, em 1840, mas sem indicação do nome do autor). Dos monárquicos, com o 5 de Outubro (foi em 1920 que Sérgio aqui editou o seu primeiro volume dos Ensaios, tal como Carlos Malheiro Dias aqui foi presidente do RGPL). Dos deserdados do 28 de Maio, como Fidelino de Figueiredo, ou das vagas sucessivas de expulsos pelo salazarismo, como Jaime Cortesão, Sarmento Pimentel, Agostinho da Silva, Henrique Galvão ou Humberto Delgado e tantos outros, durante tantas décadas.

Basta detectar os sinais dessa revolta em discretos símbolos que se conservam nos átrios e tectos do Real Gabinete, homenagenado a passagem do caos à ordem e apontando os nossos Estados Unidos da Saudade, como simples semente da República Universal, onde fomos e poderemos voltar a ser bandeirantes do tal Império do Espírito Santo de que falava mestre Agostinho da Silva e que muitos continuam a não querer compreender, porque rejeitam os sistemas morais, as alegorias e os símbolos que nos dão rota humanista de libertação.

 

 

Marcello, entre a renovação e a continuidade, hesitou nas estratégias porque duvidava dos fins, desde a instauração de uma efectiva democracia à própria independência das possessões africanas. Sabia, como ninguém, analisar as questões, fazer diagnósticos, criticar. Ficou sempre titubeante quando tentou usar o bisturi da terapêutica.

Se foi sincero quando procurou liberalizar o regime, já não foi capaz de admitir que o feitiço liberalizante se poderia voltar contra o próprio feiticeiro e, quando a ala liberal propôs, para a reforma, caminhos diversos dos programados pelo Presidente do Conselho, deu-se a inevitável ruptura, com Marcello a comprimir-se entre yesmen e propagandistas menores, ao mesmo tempo que os chamados ultras, ameaçando conspirar através de Américo Tomás, transformaram o decadente cônsul num homem só, cada vez mais enredado num cepticismo pessimista. Assim se geraram as circunstâncias golpistas de 1974, com o feitiço autonómico a voltar-se contra o feiticeiro e os militares ultras a não repetirem o modelo de Santos Costa contra Botelho Moniz.

 

Marcello se, num assomo salazarista, ainda conseguiu deter autoritariamente o golpe dos militares spinolistas de 16 de Março de 1974, mostrou-se incapaz de uma medida preventiva que atalhasse os desenvolvimentos subversivos do Movimento dos Capitães. Podia ter forças militares e para-militares suficientes para conservar o poder, mas não soube ser resistente. E talvez tenha sido traído pelos que eram ou pareceram fiéis. Preferiu ser avestruz no indefensável quartel do Carmo, lavar as mãos como Pilatos e chamar pateticamente Spínola para o poder não cair na rua.

Mar 28

O que é comum não pode ser de nenhum

Vistas à distância de um oceano inteiro, as nossas notícias da política doméstica, quase reduzidas a guerrazinhas de homenzinhos e mulherzinhas, são ridicularmente minúsculas. Que influência pode ter no diálogo Norte/Sul a anunciada demissão de Maria José Nogueira Pinto do PP e da autarquia alfacinha, ou a candidatura de Luís Filipe Menezes à liderança do PSD? Ou que influências tem no combate aos processos de combate à guerrilha urbana das favelas a detenção dos donos do poder na Universidade Independente?

Essas questões de cozinha doméstica estão, aliás, em consonância com a grande conferência que Jaime Gama promoveu sobre a corrupção que quase se reduziu às fotografias tiradas a Morgado, Pinto Monteiro e Garzón em plenos Passos Perdidos, o nosso lusitano e maçónico nome para qulificarmos um “átrio” parlamentar que, em anglo-americano se diz “lobby”. Porque os principais responsáveis pelo vazio legislativo sobre a matéria apenas fizeram uma provincianista lavagem de imagem, para esquecermos que quase todos eles assentaram em longos anos de balbúrdia quanto ao financiamento partidário, apesar de terem sido lestos quanto à tipificação legal dos crimes de corrupção. Em vez de fabricararem uma imagem, os nossos deputados partidocratas deveriam dar o exemplo.

A questão política em Portugal continua a ser a de confundirmos a polis com a oikos, a respublica com adomus, não assumindo que o político foi inventado para deixarmos de ter um dono, um dominus, ou um oikos despote. O despotismo paternalista de Salazar tem esta origem. O actual processo de compra privada do poder, a chamada corrupção, assenta na mesma estaca. Tal como o clientelismo, o favoritismo, a cunha e o nepotismo derivam da devorista privatização do que deveria ser público, onde o que é comum não pode ser de nenhum, conforme o lema das nossas aldeias comunitárias.

Quando lemos que a história da Universidade Independente (UnI) confunde-se com a amizade de três famílias: Carvalho, Verde e Arouca. Lima de Carvalho levou a mulher para a gestão da UnI, Rui Verde o irmão e Luiz Arouca dois filhos, quase poderíamos aplicar a história à política partidocrática, onde genealogias de filhos, sobrinhos, primos e dependentes de inúmeros filhos de algo se perpetuam em deputados, ministros, secretários de estado, chefes de gabinete, adjuntos e assessores, bem como em toda a fileira de nomeados. Basta fazermos científicas listas de jobs for the boys, em vez de colóquios internacionais, para declararmos a dimensão da nossa pequenez.

Mar 27

Para além da venalidade, da boçalidade e da maldade

Em plena tarde do Rio, em volta dos alfarrabistas, onde costumo comprar raridades portuguesas a preço do real, recebo telefonema da RCP, procurando saber se eu ia mesmo homenagear Caetano. Disse que a verdade não era pecado e que a cerimónia de amanhã se desenrolaria numa venerando instituição que, por já ter passado por quatro regimes portugueses, ainda podia ser Real Gabinete Português de Leitura, não se confundindo com o concurso da RTP, nem com o regresso da salazarquia. Aliás, sobre Marcello, o que aqui venho dizer já o disse num artigo publicado após a sua morte, no boletim da Faculdade de Direito de Lisboa e repeti o testemunho numa cerimónia que este instituição promoveu no centenário do respectivo nascimento. E amanhã irei insistir nas teses constantes do meu publicado “Tradição e Revolução”.

Porque sempre me fascinaram aqueles actores políticos que, apesar das extraordinárias qualidades que marcam os homens de génio, acabaram vencidos pela vida, quando as ciclópicas tarefas das circunstâncias os esmagam em derrotas políticas. E mais desafiantes são quando, sendo homens de pensamento, treinados pela teoria ou pelo estudo da história, acabam por não poder responder aos desafios daquilo que considerararam a respectiva missão.

Em contraste, há outros que não chegaram antes ou depois do tempo e, apesar de marcados pela venalidade, pela boçalidade e pela maldade, conseguiram os vícios privados em virtudes públicas e ainda hoje enchem as ruas e praças do país com placas inauguratórias, mesmo quando lançam foguetes e recebem vivório pelos investimentos feitos pelos antecessores que nem direito a pé de página merecem, nas crónicas dos homens de sucesso.

Marcello, um pouco como D. João VI, faz parte da lista dos derrotados políticos, assinando a perda do último império africano, tal como o pai do Imperador do Brasil viu amputada a parcela principal do seu sonhado Reino Unido. Aliás, o último presidente do conselho do regime derrubado em 1974, que só exerceu o consulado nos últimos cinco anos e meio dos 48 anos de interrupção autoritária que nos marcaram, ficará nos anais mais como criador do estilo da sua faculdade, onde, se sempre ousou defender a respectiva herança institucional, não teve, depois, coragem, ou condições, para restaurar a lusitana antiga liberdade.

Mas não podemos esquecer que esse ideólogo do Estado Novo teve a honra de repor o seu inimigo político, Afonso Costa, no lugar de fundador da escola, tal como estudou e homenageou a personalidade de Mouzinho da Silveira. Ou como moveu diligências para que se acolhesse em Lisboa o maior jurista do século XX, Hans Kelsen, quando este fugia às perseguições hitlerianas.

Infelizmente, não admitiu a institucionalização de partidos e não ousou avançar numa paz dos bravos com os movimentos de libertação africana, mas muitas micro-histórias locais consignar-lhe-ão sinais de neofontismo e muitas páginas de guerra terão, desse tempo, heróis e até alguns mártires. Ele apenas é o espelho de um certo tempo português.

Apesar de tudo, poucos lhe poderão apontar a categoria de traidor, da mesma forma como os anais diplomáticos não lhe dedicarão páginas de desonrosa negociação, ou de portas artificialmente fechadas. Aí está o acordo de associação com a CEE, nesse hibridismo lusitano que sempre jogou em todos os tabuleiros, preparando alternativas futuras.

Não foi Pompidou, porque Salazar também não tinha sido Charles de Gaule e a guerra impedia-o de fazer o jogo de Adolfo Suárez. Já comendo o pão amargo do exílio esperado, pode ter-se zangado e polemizado, principal através de emissários e mensageiros, mas, nesta terra brasil, deixou um legado de pensamento universitário que constituirá um elemento de peregrinação obrigatória para quem mantenha uma certa perspectiva universal de Portugal.

Mas não vale a pena corrermos à cata de minúsculos sinais reformistas para o homenagearmos. Basta pensarmos no governo que poderia ter constituído no começo da década de setenta, atendendo aos colaboradores que mobilizou, em certa altura, e aos colaboradores que deveria remobilizar. O posterior sistema político ficaria sem cabeças e até a banca e a vida empresarial recentes, lá teriam deixado semente. Aqui fica a provocação:
•M. Presidência: Francisco Sá Carneiro
•M. Finanças: Manuel Jacinto Nunes
•M. Estrangeiros: Diogo Freitas do Amaral
•M. Interior: Adriano Moreira
•M. Justiça: Afonso Queiró
•M. Defesa: Francisco da Costa Gomes
•M. Ultramar: Veiga Simão
•M. Ilhas: Mota Amaral
•M. Educação: António Alçada Baptista
•M. Assuntos Sociais: M. Lurdes Pintasilgo
•M. Coordenação Económica: João Salgueiro
•M. Indústria: Rogério Martins
•M. Comércio: Xavier Pintado
•M. Agricultura: Mota Campos
•M. Saúde: Baltazar Rebelo de Sousa
•M. Comunicação Social: Francisco Pinto Balsemão

Mar 27

Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso

Com mais quatro horas de fuso, neste começo da manhã na Guanabara, depois de dar a última volta ao texto da minha conferência de amanhã, vou ceder ao impulso lírico que a travessia do oceano moreno me provoca, neste voltar à procura do paraíso, nestes sucessivos sonhos por cumpriri que me dão a espera, a esperança e a esfera do abraço armilar. Assim decidi comemorar o cinquentenário do Tratado de Roma, protestando silenciosamente com a retórica habitual dos discursos de justificação do poder, especialmente quando elas atingem as raias do propagandismo exacerbado. Felizmente que ainda não consideram crime de traição à pátria o não sufragarmos o programa de criação de uma constituição europeia, ou não elogiarmos gongoricamente o nosso comissário em Bruxelas. Atravessando a zona da turbulência, continuo a peregrinar por estes Estados Unidos da Saudade, onde bem gostaria de restaurar o Reino Unido. Porque a curiosidade do vale mais experimentá-lo do que julgá-lo me leva à constante investigação no terreno e no laboratório da história, tal como a angústia me provoca a procura de teorias, neste quase beneditino diarismo que me obriga a pensar para os outros, neste todos os dias me escrever e rescrever, também através deste blogue. Nesta terra onde Lula se pinta de Getúlio Vargas, comparo a diferença que temos, quando a RTP, para comemorar outros cinquenta anos, permitiu que Sua Excelência, o ex-Presidente do Conselho, nos voltasse a zurzir em preto e branco. Porque, até domingo, tudo isso era apenas anormal por ter sido decretado como tal pela literatura de justificação do poder estabelecido. Eu, pelo menos, fiquei feliz por Salazar entrar na moda que passa de moda e ser novo apenas porque o tínhamos esquecido. Quando o nosso politicamente correcto o passa a elogiar, sinto que tenho mais legitimidade para o zurzir, como desabrido opositor até do próprio post-mortem. Mas nada estranho desse quebrar de tabu, quanto ao reconhecimento de um estilo do homem político, dado que o actual momento psicológico da pátria, ao colocar no pódio tal personalidade, tem muitas coincidências com a vaga de fundo que elegeu o actual locatário de Belém, assim elevando a normalidade o profundo desejo de salazarismo democrático que nos enreda. E muitas culpas tem certa historiografia oficiosa dita antifascista, que, até agora, apenas eleogiava do regime defunto certos ministros que eram tios ou patrocinadores académicos dos biógrafos dominantes. É por isso que peregrino em sonho por esta terra feita por muitos portugueses à solta, livres dessa casta capitaleira que continua a controlar o estado a que chegámos. Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso.

Mar 26

Preconceitos de esquerda e fantasmas de direita, unidos, não foram vencidos

Mesmo à berinha do embarque para o Rio, noto que, nas eleições realizadas ontem, a lista de Oliveira Salazar obteve 41%, contra 19% de Cunhal, assim obtendo a quase maioria absoluta para se instalar no hospital Júlio de Matos e aí governar Portugal, numa altura em que a Europa se transforma numa facção, balizada pelos convites recebidos de Belém, onde não entram soaristas nem santanistas. Por isso é que vou, mais uma vez, pelo Atlântico a caminho do Sul, à espera de reencontrar portugueses à solta, livre de preconceitos de esquerda e de fantasmas de direita, neste “spoil system”, onde o poder, sem autoridade, continua a ser considerado uma coisa que se conquista e que se mantém. Noto que os jornais estão extremamente preocupados com a circunstância de listas ditas da extrema-direita poderem participar nas eleições universitárias. Julgo que deveriam recordar que também Salazar não deixava que listas comunistas, republicanas e monárquicas participassem na procissão das respectivas eleições. Por outras palavras, cada um tem a sua liberdade condicionada e o seu conceito específico de interesse nacional. Logo, não posso discursar sobre a Europa deles.

Mar 24

Mainstream. Politicamente correcto.

Quando, depois de um movimento de rotação em espiral, de um sorvedouro, ou de uma voragem, dita remoinho, ou redemoinho, surge uma corrente que devora as correntes secundárias, aí temos, na hidrografia da opinião pública, aquilo a que se chama mainstream, equivalente ao politicamente correcto. E ai dos vencidos, ai dos que querem ser do contra, do contra-corrente. Acontece que as bacias hidrográficas tanto podem ser no universo da blogosfera, dos corredores de um partido, dos jornais de referência ou dos semanários de fim de semana. Nem a vontade de contra os bretões marchar, em nome dos heróis do mar, onde em vez de bretões pusemos canhões, nos pode valer. Eu que sou assumidamente contra-corrente, nem por isso costumo ser inundado de mails de protesto, mas desta feita, por causa de nosso primeiro, recebi significativas cacetadas, tanto à direita como à esquerda. Pouco me importa. O meu estatuto de homem livre está nos testemunhos quotidianos que aqui deixo, mesmo quando cometo erros ou vou a tribunal assumir-me como testemunha de defesa de malditos, da mesma maneira como não me importo de defender a extrema-direita contra certos devaneios policiais ou passar a ser vítima da mesma nos processos eleitorais da minha escola ou na negação dos arrastões de Carcavelos. A verdade e justiça costumam ser da contra-corrente, porque as maiorias conjunturais, mesmo que sejam absolutas, podem ser contra a opinião da melhor parte, isto é, dos que pensam de forma racional e justa.