Dez 31

Escrevendo num teclado Ataturk, por uma Europa sem fronteiras

Estou na Rua Pera de Istambul, que tambem e Bızancıo e Constantınopla, escrevendo num cıbercafe com teclado turco, onde foi difıcil encontrar os iii e onde nao consigo ate meter acentos. Apenas noto que, neste porto que e porta do ser, vale a pena a encruzılhada que podemos viver entre o velho e o novo mundo, entre chegadas e partıdas para muitas rotas. Apenas confirmo que sera um erro hıstorico nao permitir que a bandeira das doze estrelas possa flutuar na torre de Galata, assım encerrando episodios como os das cruzadas, ou da conquısta otomana de 1453. A Europa da Uniao Europeia se nao der esperança de adesao a estas massas humanas deixa de reconhecer que foi da mıstura de Bızancıo com as escolas de filosofia arabes que surgiu o seculo XIII que fundou o chamado Ocıdente, graças a reaprendizagem que fızemos do dıreıto romano e da fılosofıa grega, bem sıntetizada na triade da força, sabedoria, beleza, os nomes todos de Deus, como podemos ler na ıgreja de Hagia Sophia que Ataturk teve a grandeza de passar de mesquita a museu. Foi neste cruzamento de poder e pensamento que se estruturaram os prıncıpaıs pılares das nossas concepçoes do mundo e da vıda. Sem esta porta aberta ao mar ınterıor que e encruzılhada de cıvılızaçoes, nao poderıa ter sido semeado o projecto de abraço armılar, sımbolızado pela porta de Lısboa. E se nao soubermos dar carınho selectıvo a estas memorıas de comunıdade de destıno no unıversal, atraves desta bela mestıçagem do complexo, nao saberemos tırar liçoes das belas experıencıas de ımperios que aquı se guardam. Aquı penso em Alexandre, em Atenas, em Roma e em todas as civilizaçoes unıversaiıs que se lıbertaram da lei do poder. Istambul, como Lısboa, tambem e uma cıdade feita por subscriçao planetarıa. E com esta Turquıa, a Europa sera maıs Europa. Porque sera maıs um pedaço da Europa que vai alem dos acidentes geografiıcos a que chamamos continentes. A Europa sera maıs Europa porque tera maiıs um pedaço da Europa que vai alem da Europa. E podera retomar a Terceira Roma ou o Quiınto Imperıo, pela diluiçao de todos os iımperıos em todos os outros, nesse projecto de republıca universal, ou de super-naçao futura. A Europa sera definitivamente uma Europa sem fronteiıras. Um bom ano!

Dez 28

Sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo Sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo

Mais um magnicídio, agora no Paquistão, na fronteira dos impérios, numa potência nuclear, no choque dito das civilizações, na luta pela democracia. Por cá, PS, PSD, CDS e outros discutem varas, não recordam cardonas, brincam a catrogas, a loureiros, a cadilhes e a pinhos, nessa barganha do Estado e dos oligopólios, com advogados dos grandes escritórios a comentarem. O estado a que chegámos são eles, as novas famílias que sucederam às anteriores famílias, dos tradicionais donos do poder. Todos atiram pedradas às vidraças dos outros e nem reparam que, quando chegam a casa, também têm as suas quebradas pelo Pedro da Silva Pereira e pelo Rui Gomes da Silva em glosas sobre a cunhocracia. O Estado não somos nós. Por isso prefiro recordar o eterno, repetindo o que escrevi há dois anos. É tempo de Natal, quando a chegada do solstício nos dá sinal da mudança do tempo, do novo ano que nos poderá trazer viragens de esperança na procura do tempo que apetece, quando efectivamente apetece olhar dentro de mim e continuar a viver assim, na felicidade de viver, diante de um tempo que devo sentir e aprisionar sem que as teias da devassa me sufoquem e angustiem. Porque sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo, sabe tão bem suster a respiração e viver o estar feliz, com tanta gente à minha beira. Assim, olhando os olhos do sol e sentindo o azul da distância, para me poder navegar em verso. Que os outros dias e outros anos possam chegar assim dentro de mim. Porque há períodos em que devo fazer uma pausa na análise comportamental da politiqueirice lusitana, quando, cumprindo o ritual de começar a escrever, de escrever por ter mesmo de escrever, por ter o prazer de escrever-me, sentir a maneira como a caneta vai levando letras ao papel, comparando-as com outras letras da mesma caneta, noutros dias sentidas e desenhadas. Que assim compreendeo porque, sendo o mesmo, através das mesmas mãos, vou variando dentro de mim, perante novas circunstâncias. Porque todos os dias procuro na palavra aquela voz interior que preciso para poder expressar quem sempre fui, diante das novas circunstâncias que os novos tempos me trazem. Porque todos os dias também os dias variam de nuvens, de sol, de calor e frio. Porque a mesma janela aberta para a mesma rua me vai trazendos momentos diferentes da mesma cidade, pedaços de um movimento que, dia a dia, se não repete. Na gente que passa, no miúdo que grita sua alegria, na música que se vai ouvindo na vizinhança, nas novas flores que a gente que passa vai trazendo em suas roupas. Até voltei a sentir o prazer de voltar a olhar, do miradouro, o rio que nos dá mar, o sabor da raia redonda, do gelado de azeite, da sopa de abóbora, da sala de almoçar no alto da colina. Sobretudo, uma cidade a que posso chamar nossa, plena de um sol seco de inverno, e de um frio que dá às casas as dimensões da imaginação vivida. Sobretudo, nesta Lisboa inteira, descendo para a distância, nesta cidade plena de calor e luz, ao fim da tarde.

Dez 24

Por uma sonora gargalhada, ao ritmo do manifesto anti-Dantas

Dizem que Vara é o novo nome de Paulo Teixeira Pinto, isto é, que o PS já substituiu o PSD, na função de aliado preferencial da direita dos interesses, isto é, nesse conúbio de oportunismo capitaleiro com o castífero “ver se te avias”. Entretanto, recebo cartas electrónicas, onde um socialista de sempre me descreve o país real: o cenário é desolador. Os cérebros estão atrofiados, a mentira é rainha reconhecida, a mediocridade tomou conta de tudo. A escuridão apoderou-se de tudo. Mesmo os que contém alguma capacidade crítica, rapidamente dela abdicam a troco de uns míseros soldos. Todos estão a funcionar por objectivos, mas são objectivos que se resumem à posse de um automóvel um pouco mais comprido, de uns fatos um pouco mais caros, ou de uma casa com mais uma assoalhada.

No fundo, todos os dominantes procuram o pé de meia, depois de se cansarem das estúpidas utopias que ora nacionalizaram os antigos patrões, ora se tornaram empregados dos novos ricos que os mesmos geraram. Porque, afinal, tudo continua como dantes, isto é, com os eternos donos do poder, dado que apenas variam os feitores, os capatazes, os regedores, os propagandistas e as homilias.

Infelizmente, a classe política a que chegámos satisfaz-se com reformas, aposentadorias e uns lugarzecos na mesa do orçamento ou da fiscalização bancária, assim se tornando patente a impotência de um poder político, fácil presa tanto do neocorporativismo das velhas ordens do partido dos funcionários, como do neofeudalismo do permanecente partido da fidalguia.

E não há pronúncia do Norte, fazedora do “agenda setting” da oposição, que, na sua metralha de criação de factos políticos, consiga disfarçar o óbvio: o triunfo do cepticismo gerado por Fontes Pereira de Melo, de que Cavaco Silva e o respectivo Bloco Central são os legítimos herdeiros, como se demonstra pela discussão sobre a cabeça que vai engalanar a Caixa Geral de Depósitos onde o CDS já colocou a sua ex-ministra da justiça. Porque se a escolha recair entre Miguel Cadilhe e Manuel Dias Loureiro, que venha o Proença de Carvalho desempatá-la, dado que Ângelo Correia tem que continuar a fazer discursos de bota abaixo.

E depois de tudo isto, nem Sócrates pode gozar de umas curtas e retemperadoras férias, sempre com esta sarna, com muitos pés de Berardo e cócegas de Menezes, quando estas coisas sempre foram resolvidas eclesiasticamente, atrás das cortinas, ou por debaixo da mesa, de maneira a que a democracia fosse salvaguardada, isto é, que o povão não percebesse quem efectivamente manda, neste mundo esotérico do grande capital, feito de muitas quintas, quintais e quintarolas, onde todos jogam à bisca lambida da canasta, sem que nos emprenhem de ouvida no telejornal.

Ingratos lusitanos, descendentes do Oliveira de Figueira, que não reparam como já escalámos o promontório dos séculos, conquistando um lugar no céu dos princípios. Hoje não há fome, peste ou injustiça, dado que o presente presépio é esta renascida “belle époque”, onde as criancinhas já não precisam de aprender o abcedário nem a tabuada, bastando-lhe as consolas da nintendo.

Neste Natal, da conspiração de avós e netos, com as televisões em transmissões tipo RTP-Memória, entre José Hermano Saraiva e Mário Soares, com intervalos de Manuel Oliveira e José Saramago, todos somos sepulcros caiados de branco, escrevendo relatos de além túmulo, na eterna conspiração de avós e netos. Por outras palavras, precisamos que um qualquer Almada venha emitir novo manifesto anti-Dantas, porque muitos já estão fartos de casacas acolchoadas, sapatinhos de verniz a ombreiras almofadadas, com o consequente conceito de pátria portuguesa.

O meu feliz Natal existiria se meia dúzia de inconformistas se juntassem, saudando o nascer de novo, nem que fosse para a emissão de uma sonora gargalhada ao ritmo do tal manifesto anti-Dantas:

Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi.

É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos!

É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!

Abaixo a geração!

Morra o Dantas, morra!

PIM!

Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!

Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!

O Dantas é um cigano!

O Dantas é meio cigano!

O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias para cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!

O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!

O Dantas é um habilidoso!

O Dantas veste-se mal!

O Dantas usa ceroulas de malha!

Não é preciso ir pró Rossio para se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!

Não é preciso disfarçar-se para se ser salteador, basta escrever como o Dantas!

Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos!

Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões!

Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos!

O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!

ODantas é um autómato que deita para fora o que a gente já sabe o que vai sair… Mas é preciso deitar dinheiro!

O Dantas é um soneto dele próprio!

O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.

Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!

O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!

O Dantas é a meta da decadência mental!

E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!

E ainda há quem lhe estenda a mão!

E quem lhe lave a roupa!

E quem tenha dó do Dantas!

E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!

E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.

E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.

Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa?

Não Mil vezes não!

Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo!

O país mais selvagem de todas as Áfricas!

O exílio dos degradados e dos indiferentes!

A África reclusa dos europeus!

O entulho das desvantagens e dos sobejos!

Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!

Morra o Dantas, morra! PIM!

José de Almada Negreiros

Poeta d’Orpheu

Futurista

E Tudo

Dez 23

Uma flagrante inconstitucionalidade, com que ninguém se rala

Já nos tempos do fim do rotativismo monárquico, havia um Crédito Predial Português, onde, na presidência do mesmo, se sucediam, também de forma rotativa, os ex-chefes do governo regeneradores e progressistas, quando já existia o mesmo sintoma banco-burocrático.

A democracia a que chegámos, entupida por esta era dos “managers”, com as transmissões enlatadas dos debates parlamentares já está com o “share” do canal esotérico, dado que o clube dos feitores dos ricos, o dos gestores e dos grandes advogados de negócios, já nem sequer tem o recato de não tornar patente esta “golden share” controladora do sistema.

Dez 21

Os Estados Unidos da Europa e as raízes liberais de um projecto, onde não basta a adesão dos governos, impondo-se o explícito voto dos cidadãos

Ontem, foi derrubado mais um muro na Europa: Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Eslovénia, os três Estados bálticos – Letónia, Lituânia e Estónia – e a ilha mediterrânica de Malta alargaram de 15 para 24 países o território europeu livre de controlos nas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas, entre si. Ontem, houve breve sessão no Grémio Lusitano, para apresentação do novo número da revista da ordem, onde se inserem comunicações do 1º Encontro Internacional de Lisboa sobre Religiões, Violência e Razão, onde se inclui uma comunicação da minha autoria, bem como um DVD com o relato integral do congresso.

Logo a seguir, foi inaugurada uma exposição sobre Sebastião Magalhães Lima. E lá viajámos pelo fundo da nossa memória demoliberal. Logo, apeteceu-me recordar que, desta geração, merece destaque Charles Lemonnier que, em 1872, publica um livro intitulado Les États Unis de l’Europe, depressa traduzido para português por Magalhães Lima, em 1874.

Lemonnier, marcado pelas ideias de Saint-Simon, de quem, em 1859, publicara umas obras escolhidas, aparece em 1867 como um dos principais fundadores da Liga Internacional da Paz e da Liberdade. Em 1869 já publica uma memória intitulada Determinar as bases de uma organização federal da Europa.

Segundo Lemmonier, a ideia de Estados Unidos da Europa aparece como a continuação da revolução, não a francesa, mas a europeia de 1789 a 1791. Ele próprio a considera como uma profecia, transformada já, em programa e em fórmula. Coloca o discurso de Victor Hugo de 17 de Julho de 1851 como o momento em que a fórmula entrou na língua política dos Estados, salientando que em três palavras Victor Hugo resumiu Kant.

Para ele, o princípio sobre o qual se baseia a fundação dos Estados Unidos da Europa é o mesmo princípio da republica o qual não é outra coisa do que a aplicação da moral. Contra as dinastias que são por natureza odientas, egoístas, desconfiadas, hostis. Mas para a realização da nossa ideia não é mister destruir as nacionalidades, nem tão pouco enfraquecer o patriotismo. A concepção de uma federação supõe, por si, uma pluralidade de nações e uma diversidade entre os Estados.

No plano prático propõe que se siga o modelo norte-americano como um governo geral europeu, ao qual seria confiada a administração dos interesses gerais e comuns da federação, com uma única organização militar e com uma perfeita união económica, social e política, com livre troca e absoluta liberdade comercial, com nada de direitos aduaneiros, a fim de se propiciar um campo vasto à oferta e à procura.

Mas contrariando a Santa Aliança dos reis que apenas pôde sustentar-se pela força e pela manha, defende que não basta a adesão dos governos. É mister que seja explícito e formal o voto dos cidadãos.

Outros marcos do nosso europeísmo, apeteceu invocar, desde a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da esperança, se procurava pensar enraizadamente do que tem sido Portugal e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado, desejando-se:

Oxalá as honradas cãs do antigo Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado de estranhos, desamparado de todos! Praza a deus que todos, de um impulso, de um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e desconjuntada pátria, – de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa! .

Mas outros portugueses da época foram também pensando a Europa. Solano Constâncio, em 1815, fala-nos do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código comum, o qual, apesar de muitas infracções parciais, formava o direito das gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os princípios salutíferos e protectores da felicidade e da independência das outra nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões .

O Major José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que, entre Maio e Junho de 1823, foi Ministro da Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias, onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso, celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força militar permanente .

E, duas décadas depois de Garrett, Vicente Ferrer de Neto Paiva (1798-1886), na sua Philosophia do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta germânica, proclamando que seria para desejar, que se organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. – a ‘paz perpetua’: o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos, com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta instituição, e que sentem a sua conveniência política .

Continuando esse belo sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa.

Década e meia volvida, chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia, de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa.

Mas, como dizia Manuel Laranjeira, em carta a Miguel de Unamuno: A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha e, sobretudo (…) sem dinheiro. Apesar disso ainda há em Portugal muita nobreza moral.

A nossa ideia de Europa não começou com as conversas de Clara Ferreira Alves com Mário Soares que, como ontem confirmou, foi maçon, mas não gosta de aventais. Antes de haver este PS já havia ideias de república, mesmo entre os monárquicos liberais, já havia ideias de liberdade, já havia propostas para os Estados Unidos da Europa. E homens livres que as professavam, entre os azuis e brancos aos verde rubros. Todos seguiam o monárquico republicano Kant, como também aconteceu com o nosso antimonárquico republicano Magalhães Lima.

Quase todos optariam pelo referendo. Como traduziu o mesmo Magalhães Lima: não basta a adesão dos governos. É mister que seja explícito e formal o voto dos cidadãos.

Dez 20

Entre os berardos e os jardins da nossa aldeia

Em tempo de festas, boas festas e fim de festa, pediram-me da TSF que elencasse o acontecimento e a personalidade do ano de 2007. Escolhi, como acontecimento, a crise do BCP, e como personalidade do ano, o madeirense Berardo. Porque o Tejo é o rio que passa na minha aldeia e continuamos o Portugal de sempre, um país castífero e capitaleiro, onde os provincianos da capital acusam os restantes de mais provincianos, neste jogo de castas, onde continuamos o tradicional ciclo de um estadão que nos quer revolucionar ou reformar, mas, onde, passada a euforia do gigante de pés de barro, fica a pós-revolução das viradeiras, onde o Portugal Velho resiste de forma neocorporativa e neofeudal ao sonho do Portugal Novo.

De vez em quando há um Marquês de Pombal, uns vintistas, uns republicanos do 5 de Outubro, uns revolucionários do PREC, mas, logo a seguir, seguem-se as festas de família, dos “gentleman’s agreement”, do “porreiro, pá”, onde continua a ilusão do condicionamento industrial e do proteccionismo. Daí a escolha da crise do BCP e do anti-herói Berardo. Para não contar a história do velho, do rapaz e do burro.

O BCP, no modelo Jardim Gonçalves, é a ordem da sacristia, dos sucessores com aquele ar de meninos bem comportados, de bons alunos, antigos governantes de Cavaco, com ar de sócios do Sporting Clube de Portugal. Berardo é o irmão-inimigo que gosta de estragar a festa no adro da Igreja, só porque não foi convidado para o recato da sacristia. E no ano de 2007, assumindo a postura de Zé do telhado e de banqueiro anarquista, tanto atacou o modelo CCB dos intelectuais à Mega Ferreira, como foi saudado pelos trabalhadores da CGTP na assembleia-geral da PT, antes de querer comprar o Sport Lisboa e Benfica e de apresentar uma denúncia contra os donos do poder do BCP na Procuradoria-Geral da República.

Assim continuamos, entre a direita e a esquerda, entre o Sporting e o Benfica, com muito Fado, Futebol e alguma Fátima. E assim chegamos a Lisboa, onde Lisboa é Portugal e o resto da província é paisagem. E de Lisboa nos vêm os banqueiros, os magistrados, os ministros, os partidos, a revolução, as reformas e a própria proibição dos referendos, porque é preciso pôr a Europa a funcionar e o povo nos carris. Mesmo quando vivemos um ano de madeirenses, entre Alberto João e Berardo, entre Ronaldo e Jardim Gonçalves. Julgo que este gigante com pés de barro apenas precisa da funda de um qualquer David que venha continuar a dizer que o rei vai nu.

Dez 20

Vou fingir que não sou professor catedrático de uma universidade pública

Vou fingir que não sou professor catedrático de uma universidade pública lusitana e clamar por uma política de transparência que nenhum governo será capaz de pôr em prática: dêem-nos a lista dos consultores escolhidos, com nome posto no “Diário da República”. Mais: entreguem imediatamente todos esses pareceres a todos os restantes órgãos de soberania e aos partidos institucionalizados da oposição, como se faz em muitos países democráticos, a começar por Espanha.
Julgo que deste modo todo o povo entenderia melhor o crescente neocorporativismo e neofeudalismo. Haveria um mínimo de “glasnot” e poderíamos pensar na “prestroika”. Até seria interessante, para se detectarem as variações de humor de alguns desses avençados que também são “opinion makers”. E o silêncio dos que são à segunda-feira são professores universitários, à terça-feira consultores de privados, à quarta de clubes desportivos, à quinta de partidos e à sexta de si mesmos. Qualquer politólogo sabe de ciência certa, sem qualquer poder absoluto, que tal tipo de actividade é eventualmente parcela de um conceito de pressão, bem próxima daquilo que outros indicam como compra de poder. Se a actividade de professor público e de exercício de saber fosse mesmo poder.
Claro que, apesar de se controlarem as acumulações de professores públicos em instituições privadas, estas formas de actividade privada nunca foram controladas nem no âmbito dos registos obrigatórios de interesses. Manda quem pode, obedece quem deve. As muitas outras consultas que tenho dado, ou são públicas, nomeadamente para a comunicação social, ou são institucionais e gratuitas, no âmbito institucional. Julgo que tal exercício intelectual, numa “res publica”, deveriam ser incluídas no âmbito da prestação de serviços à comunidade, a cargo das universidades e não sei se foram incluídas no parecer da OCDE sobre a coisa, ou objecto de uma recomendação do Conselho de Reitores. Por isso é que gostaria mesmo de ser funcionário público ou de ser trabalhador de uma fundação que transformasse essa nobre actividade numa receita própria das universidades. Aprendi isso com o meu mestre Guilherme Braga da Cruz que até o trabalho como jurisconsulto do Estado Português no Tribunal da Haia foi considerado serviço do bem comum e da função. E assim me liberto de futuros convites para membro de júris em determinadas escolas…  

Dez 20

Com saudades do “conventus publicus vicinorum”

É tempo de sol e de frio, nesta bela chegada da invernia lusitana, aqui, na esquina da cidade que ainda conserva o sentido público da vizinhança, mesmo quando rareiam os homens bons da mais recente pequeno-burguesia de rurícolas origens e quando as instituições autárquicas se vão esquecendo das suas raízes no “conventus publicus vicinorum”. Porque os conselhos são cada vez mais municípios estipendiários do império e, de tanta barganha capitaleira, acabam por perder-se nas teias da futebolíticas e da patobravice, deixando-se enredar nos meandros difusos da compra e venda do poder, com os seus avençados intelectuários e os seus sargentos verbeteiros da micropolítica partidocrática.
A própria democracia, que devia assentar na federação das nossas comunas sem carta, perdida em indiferentismo e corrupção, ameaça tornar-se num normal anormal de sucessivos indiferentismos, transformada em mero objecto do “agenda setting” de governos e oposições, perdendo o sentido dos gestos, onde o verso épico da martirologia antifascista soa a falsete, porque o principal perigo vem de termos crescido por fora sem crescermos por dentro, em civismo e autonomia individual, como sempre se exigiu a gente democraticamente bem educada.
Assim, perdidos no rolo unidimensionalizador desta apagada e vil tristeza, preferimos a mão estendida da cunha  e do subsídio ao antes quebrar que torcer dos velhos repúblicos e daaquilo que era a tradicional fibra do português de antanho, desse homem livre da finança e dos partidos que tinha vergonha de andar de mão estendida para encontrar um lugar na fila do neofeudalismo e do neocorporativismo.
E não me venham com a lenga lenga da fatalidade globalizadora, porque é um crime cedermos aos processos colonizadores das repúblicas imperiais alienígenas, negando a biodiversidade cultural. De outro modo, apenas semearemos futuras revoltas fundamentalistas dos oprimidos pela cultura plastificada, onde o “medium” substitui a “mensagem” e a forma elimina o conteúdo. Prefiro manter o nosso tradicional olhar antropológico, essa velha mas não antiquada disponibilidade para o abraço armilar.

Dez 20

Porque o Tejo é o rio que passa na minha aldeia

Porque o Tejo é o rio que passa na minha aldeia e continuamos o Portugal de sempre, um país castífero e capitaleiro, onde os provincianos da capital acusam os restantes, de mais provincianos, neste jogo de castas, onde continuamos o tradicional ciclo de um estadão que nos quer revolucionar ou reformar, mas, onde, passada a euforia do gigante com pés de barro, fica a pós-revolução das Viradeiras, onde o Portugal Velho resiste de forma neocorporativa e neofeudal ao sonho do Portugal Novo. De vez em quando há um Marquês de Pombal, uns vintistas, uns republicanos do 5 de Outubro, uns revolucionários do PREC, mas, logo a seguir, seguem-se as festas de família, dos “gentleman’s agreement”, do “porreiro, pá”, onde continua a ilusão do condicionamento industrial e do proteccionismo. De um lado, a ordem da sacristia, dos sucessores com aquele ar de meninos bem comportados, de bons alunos, com meneios de antigos governantes salazarentos. Do outro, o irmão-inimigo que gosta de estragar a festa no adro da Igreja, só porque não foi convidado para o recato da sacristia.  Assim continuamos, entre a direita e a esquerda, entre o Sporting e o Benfica, com muito Fado, Futebol e alguma Fátima. E assim chegamos a Lisboa, onde Lisboa é Portugal e o resto da província é paisagem. E da reciclagem de Lisboa nos vêm os banqueiros, os magistrados, os ministros, os partidos, a revolução, as reformas e a própria proibição dos referendos, porque é preciso pôr a Europa a funcionar e o povo nos carris. Julgo que este gigante com pés de barro apenas precisa da funda de um qualquer David que venha continuar a dizer que o rei vai nu.

Dez 19

Entrevista a Ana Clara

Prestei o seguinte depoimento a Ana Clara:

1 — Como analisa hoje as funções do Estado e a forma como as executa?

O Estado segundo os nossos actuais conceitos, não tem apenas um corpus, não é apenas um determinado conjunto geo-humano dotado de uma certa organização. Não se resume à mistura aditiva de um elemento territorial, de um elemento societário e do poder político. Para que haja um Estado, exige-se não só a exclusividade desse poder político sobre o conjunto geo-humano que o mesmo organiza, impedindo que outros poderes políticos possam ter supremo poder sobre tal conjunto, como também a racionalidade, isto é, a existência de elementos teleológicos, daquilo que normalmente se designa como os fins do Estado.

Para além de uma sociedade , de uma terra e de um governo, impõe-se um elemento espiritual capaz de dar legitimidade ao monopólio da força pública, de dar unidade ou ordenamento. Exige-se a tal exclusividade que, desde Jean Bodin , vai conseguir-se pelo recurso à magia do nome soberania .

A tal exclusividade que, surgindo de um conceito teológico secularizado, consegue ser traduzida, com o mínimo de operacionalidade lógica, através dos conceitos jurídicos, os únicos que dispõem daquela tecnicidade instrumental que permite um mínimo de universalidade comunicacional, pelo menos desde que, com as guerras civis europeias a que chamámos guerras religiosas, a linguagem jurídica sucedeu à linguagem teológica, filosófica e ética e se transformou no principal campo de conversação da racionalidade.

Falar em Estado é, pois, falar numa totalidade que vai além da mera actividade de um aparelho do poder, a cidade do comando ou os governantes, sobre um determinado conjunto geo-humano, a cidade da obediência ou os governados. O conceito de pátria, de terra dos pais, pode, nalguns casos, ser necessário, mas não é suficiente.

Do mesmo modo, também podem ser necessários, embora não suficientes, os conceitos de grupo humano de origem, a nação, ou de governação. Exige-se sempre que o aparelho de poder, ou o principado, os organize politicamente e juridicamente , tanto em nome da assunção pela comunidade de um determinado espírito de unidade, a chamada consciência nacional, como de acordo com as regras do direito.

O que só pode conseguir-se quando esse todo tem determinados fins, que agora costumam catalogar-se segundo a tríade justiça, segurança, bem estar. Isto é, o Estado exige que o político se transforme numa espécie de relação metapolítica, que os poderes se volvam naquela relação que os transfigura em Poder, a tal rede de micropoderes que se institucionaliza em algo dotado de universalidade e onde podem enquadrar-se muitas diferenças, dado que, para atingir-se tal universalidade, há uma multiplicidade de formas de mistura dos ingredientes.

2 — Em termos estruturais, as funções do Estado são hoje, em Portugal, as mais indicadas tendo em conta a situação do País? Em que sectores deve o Estado, na sua opinião, estar presente?

O Estado tem de ser perspectivado como um sistema aberto, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e que integra vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas ( input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses.

Porque o Estado, segundo Rials, é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e a latere do próprio Estado, pelo que seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano.

Por outras palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das nações, duma força unida e da decisão da vontade comum, fundamentada em leis, como diria Kant

3 — Em termos de políticas públicas a sua execução tem sido a melhor?

Os cidadãos têm beneficiado das políticas do Estado? Diremos, na senda de Daniel Bell , que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, tentamos projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos, quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos exigem desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. De qualquer maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da vontade do homem.

O poder supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores, prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade, para utilizarmos palavras de João Paulo II , não deixa de salientar que uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum .

4 — As políticas públicas constituem um dos principais resultados da acção do Estado. Na sua opinião essa acção é visível?

A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder, mas na assunção da plenitude da democracia. Em democracia, o Estado não é um c’est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c’est nous, um c’est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os seus representantes.

Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.

O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização em que 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Em que a união comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma mais-valia de sonho, de imaginação, de energia. Em suma, precisamos de política- Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade vivencial.

Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho de poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho de poder em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, pois o soberano não pode ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos.

Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho de poder tem de potenciar-se no Estado-Comunidade. Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta ( output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis. Sucede que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita .

Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos. Qualquer democracia assume-se, no plano das realidades, como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nós nos fazemos.

5 — Com um mundo cada vez mais globalizado, de que forma pode o «nosso» Estado globalizar-se e acompanhar essa evolução?

Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, o predomínio do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do príncipe sobre a república.Utilizando as categorias de Maquiavel , diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas. Mas, se utilizarmos termos paralelos, diremos que estão em crise os soberanos, mas não estão em crise as nações

Está em crise aquele modelo absolutista do político que continua o processo dos déspotas esclarecidos, como Luís XIV , Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de 1792 a 1796, constituindo um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que é continuado por Napoleão, Lenine , Mussolini , Hitler, Estaline , Mao ou Pol Pot.

Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente, considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; esse que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo. Está em crise o poder, não está em crise a liberdade.

O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt , enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas . Julgamos não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da nação que pretende resistir como polis ou da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que, a cada nação, corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.

6 — É ou não possível ao Estado, acompanhando o processo da globalização, manter a sua acção social?

Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.

Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas . Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático .

Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.

Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade. Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou jacobino, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.

Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual. Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, decretando a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos se submeterem a um mesmo ente coordenador.

7 — É ou não possível um Estado ser liberal e ao mesmo tempo social?

Julgamos que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo/liberalismo que muitos, subliminarmente, confundem com o dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado-Providência que foi um Estado de Bem-Estar e que agora é um Estado de Mal-Estar. De um Welfare State, aliás, muito à portuguesa que, sendo fundado pelo salazarismo como Estado Novo com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos.

As linhas de força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo aggiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm agora sabor algo retroactivo, muito principalmente face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.

Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo) e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.

O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a Internacional das sociedades civis .

O Estado e a Sociedade não são coisas, são antes processos que se exigem mutuamente; não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário que, enfraquecendo-os, inviabiliza a comunidade política que devem servir.

8 — Como analisa, em termos de funções do Estado, a forma como este Governo tem direccionado as políticas públicas, sobretudo em áreas decisivas como a Educação, a Saúde e a Justiça?

Tentando, agora, pensar em português para o Portugal de hoje, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Com efeito, o Estado que os portugueses instituíram e refundaram sofre de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado-Segurança, dado que se põe em causa o monopólio da força física legítima, tanto no plano da segurança interna como no plano da própria segurança externa.

A força legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d’el rei, tal como aparecia na célebre Lei Mental de D. Duarte que lançou as bases do predomínio do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.

Segue-se a crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, a crise da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça concomitante de esporádicas emanações da Lei de Lynch e, por vezes, pelo desvario de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes com que se deleita o falso nacionalismo zoológico de importação. O que leva alguns, marcados pelas sombras de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos.

Mas também não nos devemos esquecer dos muitos erros que cometemos com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós se enveredarmos pelo appeal mediático de uma qualquer telejustiça!

Ai de nós se o terceiro poder se conubiar com o chamado quarto poder! Porque então só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados…Vem, depois, a crise do Estado-Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituimos o Parlamento em 1253.

O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador, porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos assumidos com os crescentes milhões de pensionistas. Finalmente, é a crise do Estado-Burocracia, esse instrumento vital do Estado racional-normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa, se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento.

Uma crise que determinados erros de falta de pensamento agravaram, dado que falta uma Escola de Quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta pela privatização dos métodos de gestão pública, na mesma altura em que as grandes holdings privadas copiam modelos da estratégia dos governments.

Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, no qual o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. De novo, o poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, em que até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global.

É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, em que a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism.

Do mesmo modo, aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.

Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, em que a demagogia, aliada a poderes pessoais tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, ou, o que é o mesmo, para a negação do governo pelo consentimento.

Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado gestor, ao Estado confiscador ou ao Estado planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado; seria persistirmos no latrocínio. O que não deve significar cedência à teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas .

Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis. O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, no qual não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos ; são antes aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, ainda que federativamente, ou escolhendo os representantes que a proferem em nosso nome para zelar pelos nossos interesses.

Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa; em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade.

Só que mais Estado nunca poderá ser o menos Estado de um Estado empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro. Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos… mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, na qual preponderam sempre os sargentos e os censores, mesmo que com a proverbial brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.