Quando todos e cada um dos portugueses são obrigados a tomar partido nas grandes candidaturas presidenciais que se anunciam, declaro que não alinho nesta estúpida bipolarização que tende a mobilizar a cidadania, não entre o povo de esquerda e o povo de direita, mas de acordo estilos psicológicos, entre os que gostam das bochechas bonacheironas e soarentas e a impertigada pescoceira cavaquense. Se certa esquerda ainda vai fingir que mexe, com os “radical chic” de uma utopia que não gosta dos gaiteiros da festa da Quinta da Atalaia, muitos há que, oriundos de tais costelas , preferem a racionalidade analítica à persistência quase miguelista dos que não superam a ideia de paraíso terráqueo. Mas pior talvez seja a lógica de terra queimada da chamada não-esquerda, que é coisa que a direita envegonhada costuma chamar a si mesma. Infelizmente quem, como eu, não finge sair da tribo de direita, resta manter-se nesta heterodoxa rebeldia que, sem ser diletante, apenas continua a ser intimamente legitimista, porque continua a ser capaz de perder tudo aquilo que conquistou na cidade, só para ter a ilusão de salvar a própria alma. Por outras palavras, não estarei ao lado de muitos meus amigos e companheiros de luta, no lançamento das candidaturas presidenciais. Prefiro continuar a viver naquela paz que equivale à estóica tentativa de estar de acordo comigo mesmo, ainda fique em decacordo com muitos outros que prezo. Não alinho na aceitação resignada do mal menor. E não serei de direita se se identificar a direita com a procissão cavaquista.
Monthly Archives: Agosto 2005
A limpeza coerciva das matas e os dragões de papel do socialês
Portugal pode ser hoje objecto dos comentários jocosos de um célebre jornalista alemão que, muito cruamente, nos caracterizou pelos dez estádios para o Euro 2004, pelos saldos, pelas férias e pelos incêndios, mas não pode esquecer que somos a floresta mais minifundiária do mundo, com cerca de meio milhão de proprietários florestais, onde quem quer que saiba fazer contas pode calcular quantos orçamentos de Estado nos custaria limpar a mata privada. Por isso são curiosos alguns discursos de certo subconsciente do socialismo utópico que bem gostaria de nacionalizar essa mancha oriunda da pesada herança dos nosso proprietarismo liberal, quando entoa discursos típicos dos que podem prometer mas não conseguem cumprir. Assim, o Presidente Sampaio, salientando o facto de actualmente 90 por cento da floresta ser privada, havendo «uma enorme percentagem que não é limpa», defendeu, a título pessoal, que «está a chegar o momento de equacionar» a aplicação do princípio da obra coerciva à limpeza das florestas, «tal como acontece com os prédios nos aglomerados urbanos». Mais acrescentou que, face aos danos que os fogos «projectam na comunidade» nacional, esta é uma questão que «não pode ser compatível com a ausência da capacidade de intervenção junto daqueles que são proprietários e que não cuidam da floresta que têm a seu cargo». Ainda no começo do Inverno passado, o então ministro da Agricultura proclamava que o problema crónico dos incêndios em Portugal tem uma causa bem definida «o abandono sistemático da terra e a consequente acumulação de resíduos nas florestas. O modo ancestral como os portugueses se relacionaram com a terra e a floresta e que permitia uma limpeza e vigilância constantes sobre o território pertence ao passado». Também acrescentava que se não limparmos o que durante trinta anos se sujou, tudo continuará na mesma, «o maior esforço continuará a ser feito apenas no combate e a floresta vai continuar a arder». «Só a partir deste trabalho inicial poderemos pensar em gestão eficiente da floresta, em prevenção efectiva dos incêndios e em valorização económica dum património nacional que é, no meu entender, um factor crítico para o sucesso de Portugal.» Basta fazermos contas: o território português tem 9,2 milhões de hectares dos quais 3,3 milhões são floresta representativos de 3,2 do PIB nacional e responsáveis pelos postos de trabalho de cerca de 3% da população activa. Logo, só poderemos resolver um problema económico com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Portanto, saibamos quantos orçamentos de Estado pode custar aquilo que era a necessária limpeza coerciva das matas e entendamo-nos: os proprietários florestais só limparão a coisa quando ela voltar a ser economicamente compensadora e a nossa agricultura deixar de ser uma simples subsidiária de uma PAC feita para certas parcelas da Europa, onde há enxurradas nos meses de Verão. Ninguém consegue fazer economia contra as condições edafoclimáticas, tal como ninguém devia fazer florestação exótica. Os responsáveis por esta ideologia pseudo-desenvolvimentista, consagrada pelo cavaquismo, cometeram um verdadeiro crime de lesa-majestade que não pode ser punido, invocando-se o subconsciente nacionalizador de certos dragões do socialês!…
Nesta casa onde ainda há pão, todos os dias se agrava o circo
Por mais bombeiros, aviões, ministros e autarcas que se mobilizem, a nossa impotência perante a voracidade do vento, da resina e do fogo não consegue remediar o que as nossas ideias de planeamento, de política, de desenvolvimento e de ciência não conseguiram prevenir. Não há vigilância, combate ou rescaldo que consigam colmatar o descalabro da nossa falta de organização de trabalho nacional, ainda marcado pelo improviso do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Por isso, não culpo ninguém. Apenas reconheço que este país ficou sem defesa. As imagens diárias que nos chegam dos telejornais, ou que se avistam de qualquer viagem, talvez esqueçam antes das próximas autárquicas. De certeza que ninguém delas se lembrará antes das próximas presidenciais. É inevitável que todos as queiram esquecer antes das inevitáveis legislativas. Por outras palavras, o bem comum continua a ser posto entre parêntesis pelos políticos profissionais, empregados ou desempregados, incluindo os que agora denunciam o umbiguismo. Nesta casa onde ainda há pão, todos os dias se agrava o circo e tudo continuará como dantes, mesmo sem quartel ardido em Abrantes. Não quero culpar ninguém e muito menos duvido do sentido de missão dos directos comandantes a quem cabe dar combate a este desastre. Só não admito que o anormal se torne normal, sem que surja a necessária mobilização nacional. Apenas temo que o país urbano que vai passeando pelos campos e serras apenas sinta a dor dos incêndios quando as cinzas se derramem sobre os locais de lazer onde vão espraiando. Neste país invertebrado, os donos da madeira queimada, entre muitas festas de “jet set”, lá vão calando. Guardam-se para alinharem na comitiva de uma qualquer candidatura presidencial. Prefeririam que, dos dois mais fortes, um deles desistisse, para poderem assinar o livro de honra do vencendor. Entre a direita que convém à esquerda e a esquerda que convém à direita, o bem comum continua a ser treta que se cantarola a toque de discurso politiqueiro.
Do fogo na minha cidade-mãe ao que vai ardendo sem se ver
Com o fogo a entrar na minha cidade natal, direi que os portugueses continuam a viver em regime de desesperança, provocado pela quebra íntima das expectativas e onde só se espera o mal menor de não haver alternativa ao que se vai impondo pela ditadura do estado a que chegámos. Este inevitável de quem perdeu o sonho e o sentido. Assim, diluídos nas ondas da moda, somos meros elementos fungíveis de uma caldeirada da Europa das potências secundárias, à espera de uma decisão que venha a ser tomada pela locomotiva do processo. De uma Europa que se vai fragmentando por várias velocidades variáveis e gerando uma hierarquia de desenvolvimentos separados. Apenas precisávamos de um tempo de pausa e que os polícias do universo não vivessem neste ritmo de frenesim fundamentalista. Logo, somos amargura. Principalmente quando olhamos a política com um sentido ético. Coisa que não acontece neste decadentismo da pós-revolução, onde a procura do tempo perdido é a ilusão do regresso aos pais-fundadores. Ainda há um ano, estávamos embasbacados face ao politiqueiros que não passavam de meros episódios, já esquecidos nas notas de pé-de-página de uma história de pormenores. Desses que atingiram o efémero daquela glória familiar cujo brasão já os pode inscrever como ministros nos anais das banalidades genealógicas da vaidade. Foram breves e fúteis, apesar de entoarem pátria com voz grossa, mas sem o humilde sentido de serviço. O tempo passou, a fama fugiu. Mas um Portugal desvertebrado tornou-se presa dos que conseguiram sobressair na encruzilhada. Foram os ilusórios “vícios privados, virtudes públicas” do jogo suicida em que se envolveu o capitalismo à portuguesa, onde há licenciosidade, mas falta liberdade, onde há libertinagem sem regulação, sanção e fiscalização. Onde depois da casa roubada pomos trancas nas portas. Quem pode atirar pedradas sem ter telhados de vidro? Neste forrobódó em que se transformou o nosso feudal-capitalismo que continua a denegrir a ideia de mercado? Portugal lestifica-se neste pós-autoritarismo que, por vezes, se confunde com mera via de transição para a bandocracia e a cleptocracia que uma classe política incompetente continua a permitir. PS e PSD, punindo-se reciprocamente, são os principais responsáveis pela decadência. E assim se vão suicidando. Até instituições como as universidades vivem amarguradamente, com gentes de segunda apanha que vão ocupando os interstícios da continuidade. Eles, os escavacadores de obra feita, os gestores coca-bichinhos, especialistas na casca de árvore que jamais conseguem vislumbrar o todo da floresta. Ei-los, impantes, bem sentadinhos nas nádegas do cavalito do poder, lançando serpentinas ao passivo povo que parece obrigado a assistir ao carnaval. Os portugueses continuam a considerar que a política é um clube fechado de oligarcas, voltados sobre si mesmos, e olhando, cada um deles, para o próprio umbigo. E cada um que queira notoriedade carreirista tem de alinhar na carneirada da seita, do lóbi, da lojeca ou da facção, sob pena de não existir. Porque os estreitos canais de acesso ao poder estão aramadilhados por um labirinto de dependências. Por outras palavras, as condições que promoveram o concentracionarismo, o autoritarismo e o corporativismo mantêm-se incólumes. Quem não meter a pata nesses círculos falsamente iniciáticos é considerado um perigoso marginal, um mal-amado que, se tenta interferir no circuito da dominação, ao denunciá-lo, até pode ser vítima dos habituais assassinatos de carácter que os pretensos patriarcas da padrinhagem desenvolve. A única solução que resta para tornar inofensivos esses farsantes é elevá-los a ministros. Implodem.
Fogo, seca, desertificação, futebolês e candidaturas, ou a cavalhada do nosso desencanto
Há pausas forçadas de muitas esperas sem porquê, quando fazemos viagens por dentro de nós mesmos, antes de nos lançarmos em novas viagens que apeteçam. E nessas pausas da espera, vamos peregrinando a nossa própria espera, assim dedilhando palavras, escrevendo por termos de escrever, envergonhados, especialmente quando tememos que reparem nos muitos cadernos de diários adolescentes, onde duvidosamente nos doem os pequenos nadas que revolvem as angústias. …e sinais de que a mesma recebeu a visita de Gilberto Freyre Vale-me que, inesperadamente, recebo um telefonema de uma velha amiga de oitenta e nove anos, lá do interior do planalto beirão, onde confirmo que ela continua a lutar, acreditando, e que, ao ler alguns dos meus escritos, me dá força para continuar. Por isso me revoltam os florentinos de outro tempo que, cedendo, nos querem obrigar a esta mediocracia de escravos, colocando-nos na longa fila dos tolerados. Talvez valha a pena dizer que não podemos chamar vida a esta decadência, à predominância cinzentona dos valores da cobardia, onde as circunstâncias levam a que se recrutem seres molusculares para os comandos da vida da cidade. Porque não me apetece alinhar na longa fila dos elogiadores dos peganhentos que têm a ilusão de vencer na história, essas invertebradas criaturas que ocupam os interstícios de um poder que não entende o profundo significado do belo conceito romano de autoridade. Não há políticos, autarcas ou administradores da CGD que consigam mobilizar estes restos de resistência que ainda tem saudades de futuro. Entretanto, persiste a rotina desta gente que passa em seu ingresso, ou seu regresso, da canseira do lar para a canseira do trabalho, homenageando a rotina que regressa depois das férias, com muitos gestos de quem perdeu o sentido dos gestos, neste faz porque faz, onde já nem a procura do que não há os mobiliza. Porque há que pagar a hipoteca, o colégio dos miúdos, a despesa do médico, a receita da farmácia, a dívida por causa de umas férias passadas no Sul de Espanha, que no Algarve era mais caro e havia fumo. Passo os olhos pelas parangonas matinais e reparo que Jerónimo de Sousa se vai recandidatar, para, depois, dançar em torno do candidato que vai defrontar o fantasma da direita, cuja candidatura, dizem que já está em marcha, para ocupar aquilo que foi o Passeio Público, sem Campanha Alegre e muitas Farpas. Mais adiante, reparamos que Ricardo voltou a dar frangos, que Miguel se foi de vez, para descanso da discoteca Luanda, enquanto nos vamos habituando à nova obsessão do linguajar, onde há verbos como circunscrever, lavrar, arder, cercar e substantivos como ocorrência, rescaldo, aldeia, vento, resina e nova frente, fazendo arder ainda mais este Verão de cinza e amargura. Vale-nos que se houvesse solidariedade e coesão na Grande Europa, sempre poderíamos pedir um pouco da chuva que vai alagando a Europa Central e do Leste. Por cá, apenas temos tido os meios que são possíveis, paisagem desoladora, forte vento no Vale do Nabão, que aqui apenas dizemos: isto não há palavras, é comovente…nós nascemos aqui, somos filhos da terra. Que isto é um horror, um pandemónio, um inferno. E a fuga foi a única maneira de não ficarmos encurralados pelas chamas. Tudo é horrível, até o cemitério ardeu. Porque há muita coisa aqui para apagar e resta-nos esperar que o fogo chegue à estrada para o atacarmos de vez. Até porque a Associação de Criadores de Ovinos do Sul (ACOS) está a recolher diariamente uma média de 120 cadáveres de ovinos e caprinos nos distritos localizados a sul do Tejo (Portalegre, Évora, Setúbal, Beja e Faro).
A ilusão retórica de reformar o sistema político
E assim nos esquizofrenamos todos
Fico sempre com raiva quando usurpam a nação, com muitas fardas, clarins, desfiles militares e oficiais discursos, para ministro ou presidente, antes de se condecorarem bandas de música. Dano-me quando os enfastios da burocracia metem a pata por cima da povo, ou quando o patriotismo espectacular me obriga a pôr bandeiras à janela, para as mesmas debotarem. Por isso, dizer qualquer coisa de patrioticamente profundo chateia à brava. Até porque se fôssemos patriotas, hoje, ainda voltaríamos a ser alcunha dos de miguelistas e de fascistas, que é coisa que só podem dizer os génios que têm blogue para não deixarem de ter blogue, a quem convém dizer que têm blogue, para ninguém poder dizer que só tinham blogue para se passarem acima e além dos blogues, mas continuando a reinar na blogazarra. Porque no Portublogal, onde surfam alimárias do parece bem para as tias, é politicamente correcto parecer politicamente incorrecto, como os correctos inquisidores dominantes dizem que se deve ser correctamente incorrecto, a fim de podermos ser correctamente citados pelos colegas dos jornais que nos pagam para neles nos escrevermos. E assim nos esquizofrenamos todos, juntamente com outros vómitos do mesmo jaez, sem os quais o país poderia não ser tão divertido, mas era, de certeza, bem menos poluído.
Neste regime de pequenos feudalismos
Neste regime de pequenos feudalismos em que se enreda o oportunismo lusitano, o longo prazo do combate por ideias nunca conseguirá ter qualquer espaço de comunicação com o frenesim do mediático. Basta notar como foram sendo fabricadas as potenciais candidaturas presidenciais, com décadas de investimento no controlo da imagem e de manipulação das angústias dos intelectuários, não faltando sequer o choradinho dos elogios dos articulistas e colunáveis. Os candidatos com mais sucesso, silenciando irreverentes, souberam criar uma espécie de sociedade de Corte, tecendo uma rede de fidelidades e simpatias, tal como ilustres gestores do presente aparelho de Estado subiram ao poder gerindo adequadamente o saco azul, vermelho, preto ou amarelo dos pareceres e avenças. Por outras palavras, o quintal português da feira das vaidades é estreito demais tanto para a autonomia da sociedade civil como até para efectiva expressão da liberdade de pensamento. Os grandes controleiros deste pequeno “big brother” devem ser, aliás, os primeiros que se riem com os habituais invocadores da chamada teoria da conspiração. E isto porque a estreiteza do nosso espírito capitaleiro produziu uma lógica de campanário na nossa principal aldeia, a que damos o nome de Lisboa. Mais do que a Maçonaria, o Opus Dei, a hidra fascista ou as correias de transmissão do PCP, somos dominados pelo espírito de seita, pelas federações da amiguice, de colégio, de vizinhança ou de bar. Juntem dois ou três jornalistas desempregados num serão com políticos desiludidos e intelectuais frustrados e verificarão como se enumeram estórias e estórias de aventuras de pequenino quotidiano em que entram grandes figuras da república, à imagem e semelhança dos dramalhões à moda do Minho ou da Beira que afectam as recentes candidaturas autárquicas. Estar bem informado é saber com quem dorme o ministro A, o líder da oposição B, ou quando o secretário de Estado X aderiu ao grupo dos homossexuais, apesar de casadinho e pai de filhos, tal como quem é, entre os candidatos a vereadores, o líder do mesmo grupo de hábitos sexuais diferentes. De qualquer maneira, ninguém será intelectual de sucesso se não tiver uma rede federadora que lhe permita uma adequada rampa de lançamento, recensão assegurada pelo primo do amigo a quem pagou um copo num bar do Bairro Baixo ou a necessária citação mútua do irmão em frustração.
Do saudosismo salazarento e do neocorporativismo, negocista ou banco-burocrático
Nesta computacional vivência de, com muitos, me encontrar todos os dias, neste dar e receber sinais de estarmos vivos, de estarmos fartos de não sermos, assim cansados de tudo parecer o que não sonhamos, há dias em que a net nos irrita, especialmente quando o nosso pensamento corre mais ligeiro e vai mais longe do que as teclas, ou quando a nossa memória viva não aguenta que os fios cruzados do computados, marcados pela lentidão de um erro de sistema. E tudo pode explodir quando sentimos que faltam ermos e secos montes onde possamos colher as flores da espera, sinais que nos dêem espaço de procura. Reconheço que os mais ácidos dos analistas são os autores daquelas farpas que vão ao fundo das causas e conseguem descobrir que é por dentro das coisas que as coisas realmente são. Os que não confundem a árvore com a floresta, o ramo com a árvore e afolha com o ramo. Os que não esquecem que a parte não é o todo e que não são apenas umbigo. Porque o superior não deve estar ao serviço do inferior. Mas há os que aqui estão como podiam estar em qualquer outro lado, esses portadores do bilhete de identidade de cidadão nacional que também poderiam ser apátridas ou compradores de um qualquer passaporte, num qualquer supermercado da falsificação. Tudo isto para notar que, para muitos, dizer pátria soa a falsete, porque esse discurso comunitariamente mobilizador foi usurpado pelos detentores do aparelho de Estado e pelo dicionário de um politiquês cada vez mais inautêntico. Atingimos, aliás, as raias do ridículo e da própria falta de sentido estético a nível do simbólico, onde não faltam coreografias organizadas por agências de comunicação, ao serviço de certos figurões ministeriais. Não faltam até aqueles que se pensam patriotas só porque traduzem em calão certo patriotismo estranho e estrangeiro. Desses, cujo principal orgasmo intelectual se reduz à glosa de uma qualquer revista de outras paragens, só porque pensam que, dela, são os únicos assinantes cá da aldeia. Tais inteligentes, esotericamente exóticos, que elogiam uma abstracção chamada Portugal, mas odeiam os concretos portugueses que somos e temos, são quase todos oriundos de uma esquerda dos anos sessenta e setenta do século XX, quando a dita pensava ter o monopólio da inteligência. São os mesmos que vão apaparicando uma certa direita que lhes é conveniente e que pensa ser flor única nesse universo de terra queimada. Poucos reparam que a estadualização e partidarização da ideia nacional, depois de quatro décadas de autoritarismo, onde, segundo Almada Negreiros, foi substituído Portugal pelo nacionalismo, acabam por enredar-nos em traumáticas memórias de que nos devíamos livrar. Sem que se devolva esse valor transcendente ao espaço comum que dá identidade à esquerda e à direita todos definharemos e estupidificaremos. Ora, quando a esquerda dominante começou a determinar quais as vozes que poderiam refundar a direita pós-revolucionária, alguma gente de direita não percebeu que essas vedetas da tal direita que convinha à esquerda apenas tinham sido artificialmente fabricadas para impedirem a efectiva refundação de uma não-esquerda que se libertasse do saudosismo salazarento e do neocorporativismo, negocista ou banco-burocrático. Apelo aos que continuam a ser vítimas desse neo-inquisitorialismo, promovido pelas pretensas vedetas em causa, sejam jornaleiros, televiseiros, politiqueiros ou banqueiros, para investirem na solidão de quem não tem medo de ir para o exílio interno, não para ser abstencionista, mas para poder resistir. É por dentro das coisas que as coisas realmente são.
Reportagens íntimas
Confessso que às vezes me apetece dizer basta a este crescente pessimismo que vai invadindo as reportagens íntimas destas minhas crónicas sobre o tempo que passa. Até gostaria de poder destacar alguns sinais de esperança colectiva sem o tremendismo vocabular que esta nostalgia pelo bem, com que se identifica a clássica procura do melhor regime, me provoca. Infelizmente, quanto mais procuro o prazer de pensar a política, mais acabo por ter que denunciar os sinais de corrupção e de indiferentismo em que vamos definhando. Com efeito, gostaria de ter as ingénuas ou lúcidas energias que movem os políticos profissionais quando estes estão no poder, ou quando, passados à oposição, logo têm um programa de salvação do mundo, esquecidos que ainda há poucos meses eram os mais panglóssicos defensores do mesmo situacionismo. Por mim, ainda sou capaz de reconhecer que, apesar de tudo, este governo, apesar de ser péssimo, é bem menos péssimo do que o respectivo antecessor, embora muitas estrelas que o marcam continuem a empalidecer por cansaço pessoal. Entristecem-nos particularmente as cenas que revelam a permanência daquela mentalidade do Bloco Central de interesses, assente no neocorporativismo e no despudor da casta banco-burocrática. Compreendemos o drama do défice, mas não propomos que se privatizem blocos do domínio público marítimo para a constituição de praias de luxo. Notamos o encarquilhamento estratégico que marca a presente indecisão europeia. Sabemos que a nossa independência apenas passa pela gestão de dependências. Mas consideramos terrível que não seja possível debelar esta doença pós-totalitária com que nos vamos lestizando e terceiromundizando. Não me conformo com esta oportunidade de perdida e não quero que me voltem a alcunha r como a turquia ocidental. O sistema político não parece conseguir sair da rotina decadentista de umas regras do jogo que nos conduziram e conduzirão sempre à meia derrota do conformismo rotativo, tipo administração da Caixa Geral de Depósitos. O modelo dos partidos políticos que o marca não parece capaz de produzir um “New Deal” onde, baralhando e dando de novo, pudessem chegar as necessárias reformas estruturais que nos permitissem viver com aquilo que produzimos, bem como as mais profundas regenerações morais e culturais que, dando autonomia às pessoas, adensassem o comunitarismo e permitissem que largássemos as amarras da inércia. Precisávamos de partir para uma nova aventura colectiva onde o movimento não fosse a ilusão de virarmos a barca para a esquerda e para a direita, mas sem sairmos do mesmo círculo vicioso, onde só andamos quando os outros nos dão bolina. Não é a conversa mole do oportunismo das presidenciais que pode produzir o necessário abalo regenerador. A inevitável procissão de notáveis vaidades que as candidaturas desencadearão se podem propiciar brilhantes análises de “jet set” serão bastante pouco para o muito que se exige de todos e para todos. A solução talvez esteja em quem venha apresentar o ovo de Colombo daquilo que muitos dão o nome de bom senso. Porque não tardará que todos comecem a visualizar como alternativa o mero fim do regime, mesmo aqueles que, como eu, preferiam a chegada de um Charles de Gaulle, com história de resistência e sentido de futuro.