Os incêndios gregos não são lá. São aqui e agora. Apenas revelam como há um vazio de política a nível da globalização e da Europa. Seria bem útil que, por cá, assumíssemos uma espécie de lição prospectiva face a uma ameaça global. Apenas recordo texto emitido há cinco anos sobre a matéria que também ciclicamente nos aflige. O problema tem a ver com bombeiros e ministros, mas é sério demais para ser resolvido apenas com o mero lançamento de água a partir de meios aéreos. O problema é, como a imagem nos recorda, essencialmente teórico, tendo a ver com o pensamento dominante em matéria de reforma da universidade ou de não proibição dos transgénicos, exigindo o regresso à racionalidade complexa, bem simbolizada pela chamuscada imagem que reproduzimos.
Monthly Archives: Agosto 2007
Votar sempre como deve ser na semente de sucesso que vai vencer
Quanto apetece ser como todos os outros, sem a pretensão de ser quem sonho. Ser apenas um, humanamente, entre os demais, na longa fila dos que apenas sobrevivem, sem a dor de pensar na própria vida. Ser igual ao que nunca são demais, e perdido na sonolência da multidão, esquecer-me de quem sou. Ser um cidadão qualquer, marcado pelo ganha-pão, cumprir o horário, ser bom funcionário e votar sempre como deve ser na semente de sucesso que vai vencer.
Ser obediente, sacrificado, competente e aspirar a um louvor cinzento pela vida que dediquei a quem não sei. Cumprir ordens sem pensar que posso pensar (para quê procurar o porquê do que existe para não ter porquês?). Sim, senhor mandante, senhor director-geral, vossa excelência manda, basta apenas despachar e cumprirei sem duvidar vossa omnipotência banal.
Para quê pensar o porquê do que não tem porquês? Para quê sofrer pelos meandros direitos do que torto tem que não parecer. Esta angústia da vida burocrática, dos corredores das demandas sem fim.
Vale a pena esperar, esperar pacientemente a hora de me poder aposentar. Depois, sim, oh que alegria! Poder, finalmente, cultivar as flores do meu quintal e, sentado no sofá, ler descansadamente os livros todos que deixei por ler, sem temer que me venham surpreender em flagrante de cultura marginal.
Apetecia deixar de ser o que pareço ser, fingir para os outros quem na verdade sou, sair desta fortaleza em que resisto.
Mas, de repente, pode romper de novo a alegria de estar vivo. Mesmo aqui, nesta falta de horizonte das vinte e tantas paredes, destas quatro assoalhadas, onde estou domiciliado. Mesmo aqui, neste lar de cimento armado, no labirinto das ruas deste bairro, traçado a compasso e esquadro, mesmo aqui, nesta rotina baça, em que dia a dia vou fenecendo, a correr contra o meu tempo.
Dê-me senhor notário uma escritura, um pedaço de papel azul, devidamente selado, qualquer título que me dê direito ao uso, fruto e abuso daquela terra de semeadura, onde quero implantar meu lar. Não sei quantos metros quadrados que me dêem espaço para vencer esta urbaníssima claustrofobia de só em fila poder passear.
Mesmo nesta cidade medonha, há sítios que apetecem sempre: pedras velhas, vielas tortuosas, casas, praças, cais, ruas que são aldeias (sobretudo o sol nas vidraças em tardes de verão). Não a cidade feita postal ilustrado, pedaço para turista ver, recortar, fotografar, levar… Sim à cidade viva que nos dá vida, a cidade que apetece passear e, peregrino, revisitar.
Não vou dizer mais não à cidade, especialmente a esta Lisboa branca com Tejo ao fundo, onde podemos passar sempre à outra banda e transformar cacilheiros em caravelas.
Em Lisboa também há gaivotas e brisa, barcos de proa sonhada e azulejos nas casas…
43 489 autarcas
Finalmente, há boas notícias: entre presidentes de câmara, vereadores e membros de assembleias municipais e de freguesia, vamos eleger 43 489 autarcas, o equivalente à população do concelho de Sesimbra, e quase o mesmo número de professores, ou de licenciados candidatos a professores que ficaram por colocar. Mais do que isso: segundo um estudo do Banco Mundial basta eliminarmos a corrupção para triplicarmos o rendimento “per capita” e colocar-nos ao nível da Finlândia. Por isso é que todos esperam o regresso de D. Sebastião Soares ou de D. Sebastião Cavaco, que o furacão Katrina não desembarque na praia da Junqueira em manhã de nevoeiro e que não volte a ser publicado nenhum estudo do “El Pais” sofre os nossos incêndios. Com efeito, em Portugal já não há maquiavelismo de salão, sindicalismo do elogio mútuo, persiganga, jagunçada e saneamentos. Porque esta gaseificada passagem do estado cardinalício para a liquefeita postura de sereno e suprapartidário presidenciável constitui a justa homenagem à eterna conspiração de avós e netos que nos continua a fazer apetecer o exílio.
Hino à glória de ter medo
Sei do abstracto bem do Estado e do preço que não tem a vida humana; sei máquinas automáticas que registam todos os passos do suspeito. Sei microfilmes, computadores, e sofisticadas torturas que o não são, sempre de acordo com os regulamentos.
Sei das regras todas, das leis, das circulares, das convenções. Sei prisões, direitos e garantias, códigos penais, processuais e as teorias todas do poder. Sei de cor os meandros do medo, notificações, contestações, concentrações. Sei sobretudo prisões sem culpa formada e legalíssimas justificações de tudo. Sei do medo e a repressão, sei tudo isto e não estou calado.
Sei e valia mais não saber, valia mais esquecer-me de quem sou e, renegando os princípios por que me querem prender, entregar-me às doces polícias do pensamento que sem proibir nos querem silenciar.
Valia mais censurar-me, arrepender-me, rasgar meus versos, não acreditar. Isto é, ter o prudente medo desse bom chefe de família que tem de ganhar a vida. Ter, em suma, a cobardia de não ser e parecer sempre do lado que convém.
Para quê defrontar o vento novo e arriscar causas perdidas, quando posso aplaudir o vencedor? Ser definitivamente da casta dos moderados, desses que tendo dito sim ao não, aparentando não dizer nada, podem, depois, muito convenientemente, demonstrar que não disseram o que calaram.
Enfim: sobreviver, deixar a política para os políticos e a pátria para os homens de sucesso.
PS: Agradeço ao meu amigo René Magritte a ajuda que me deu com “Le Chef d’Oeuvre”. Sem palavras disse todas as palavras que eram precisas.
De como apagar incêndios com a filosofia deste símbolo chamuscado, mas permanecente
Os incêndios gregos não são lá. São aqui e agora. Apenas revelam como há um vazio de política a nível da globalização e da Europa. Seria bem útil que, por cá, assumíssemos uma espécie de lição prospectiva face a uma ameaça global. Apenas recordo texto emitido há cinco anos sobre a matéria que também ciclicamente nos aflige.
O problema tem a ver com bombeiros e ministros, mas é sério demais para ser resolvido apenas com o mero lançamento de água a partir de meios aéreos. O problema é, como a imagem nos recorda, essencialmente teórico, tendo a ver com o pensamento dominante em matéria de reforma da universidade ou de não proibição dos transgénicos, exigindo o regresso à racionalidade complexa, bem simbolizada pela chamuscada imagem que reproduzimos.
Com efeito, ao contrário do Renascimento, que concebia o mundo como um ser animado, como um homem em ponto grande, quase à maneira do antropomorfismo platónico, a teoria moderna da razão incompleta, a que muitos ainda reduzem a racionalismo, vem compará-lo a uma grande máquina ou mecanismo e, como tal, decomponível. Aliás, se, no Renascimento, a ciência modelar para o estudo das coisas políticas era a medicina, eis que, com o Iluminismo, a matemática se torna o novo paradigma.
Conforme Descartes pede: dai-me a extensão e o movimento e eu construirei o universo. Eis, portanto, o sujeito todo poderoso, o homem solitário e sem freio, solto, absoluto, disposto a dominar todo o mundo através de um razoar calculista e raciocinador, o raisonner dos franceses, uma ilusão de razão que pretendia, sobretudo, fazer adições e subtracções de elementos, decompor o todo pela análise e, somando cada uma das parcelas, reconstitui-lo.
O mesmo Descartes, no Discours de la Méthode, refere que em vez da filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar se uma outra, prática, pela qual conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos as diversas profissões dos nossos artesãos, poderíamos, da mesma maneira, utilizá-los para todos os usos que lhes são próprios e, assim, tornarmo-nos senhores e possuidores da natureza (maîtres e possesseurs de la nature)…
Inicia-se, assim, o esprit geométrique, oposto ao esprit de finesse que Blaise Pascal, nos seus Pensées, de 1669, entendia como a razão metafísica. Compreende-se, pois, que Hobbes venha, mais tarde, considerar a geometria como a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Gera-se, portanto, aquela forma mentis que leva o pensamento matemático a tornar-se o ritual do pensamento, conforme a conhecida observação de Theodor Adorno.
A razão passa a ser o tal conhecimento claro e distinto de Descartes, onde apenas se conhece aquilo que pode conceber-se, tanto na sua aparência externa, como nas condições que determinam a sua origem, surgindo o método analítico e sintético. Inicia-se assim aquela modernidade, marcada pela racionalidade do sistema, a metafísica da subjectividade, a dominação planetária da técnica e o totalitarismo sócio-económico-político, para utilizarmos palavras de Martin Heidegger
Na linha de Karl Popper, também eu sou parcialmente culpado, porque não fujo de certa tradição de Kant e Voltaire que submeteram ao crivo da razão tanto a filosofia como as matemáticas ou a física.
Mas não deixo de reconhecer que, a partir desta senda cartesiana, surgiu, como assinala André Glucksmann, a empresa de matematização do universo físico que redistribui os domínios da ciência e da autoridade na viragem dos tempos modernos. E todas as universidades do Ocidente, quaisquer que sejam as suas teologias implícitas, procuram, há dois séculos, pôr em paralelo ciências físicas e ciências morais, ciências da natureza e ciências humanas:gravitam todas no campo desta revolução copernicana induzida pela entrada na órbita científica de 89. Desde esta data, dois projectos de domínio fundem-se um no outro; Descartes convida a descobrir no homem capaz de física matemática o ‘dono e senhor da natureza’. O homem capaz de revolução leva, segundo o novo saber, ao dono e senhor da sociedade: que seriam as ardentes e doutrinais querelas em ciências humanas, até mesmo as ‘posições de partido’ se não fossem as querelas de domínio e de posse?
Acrescento, outra observação, de Louis Pauwels: a tradição racionalista é metafísica e mágica: metafísica por “fazer do determinismo um absoluto”; por “projectar as próprias preferências sobre a natureza é um acto de magia. Este materialismo é um encantamento e o cepticismo indiscriminado uma superstição”.
Concluo com Benjamin Disraeli: o Homem só é verdadeiramente grande quando actua movido pelas paixões; nunca é irresistível excepto quando apela para a imaginação.
Como observa Jean Marie Domenach,”a antiga totalidade, partindo da ruptura entre o homem e a natureza, pretendia fazer da natureza uma chasse gardée do homem (é o humanismo dominador de Descartes) ou do homem um prolongamento da natureza (é o estruturalismo de Lévi Strauss) … o pensamento sistémico quer forçar este impasse mostrando que as estruturas vivas não são radicalmente estranhas às da física, que a autonomia já está incluída na organização e que é um combate ultrapassado o do reducionismo contra a complexidade,do determinismo contra a liberdade”.
Diga-se, de passagem, que algo de diferente foi o movimento da ciência portuguesa dos séculos XV e XVI, de Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro e Garcia da Orta. Refere Agostinho da Silva que estes “mantinham os direitos e as irradiações de uma ciência a que poderíamos chamar católica no sentido de que de bom grado se dissolve na comunidade e não procura ir além de uma linha geral de entendimento e de saber”. Porque “o português mantém-se fiel à grei, o que tantas vezes simboliza numa fidelidade ao soberano, e vê nas criações um motivo para louvar o Criador, isto é, descobre a grandeza universal na pluralidade do diverso, sem que a singularidade se elimine e, por outra parte, vê Deus como sendo essencialmente o artista supremo que inventou as faunas dos corais, ou a tromba marítima, ou as fantasiosas conhecenças ou o lento balanço das palmas nas tardes tropicais”.
Em Barcelos, entre Andrea Mantegna e Terpsichore
Depois de mais uma noite de insolente serenidade junto dos meus ascendentes e descendentes, com os pés assentes na terra dos meus mortos e os olhos postos nos sinais de sonho que estão depois da curva do caminho que devo percorrer, confirmei como não sou apenas a autonomia do “in-divisus” que resiste, mas também corrente de gerações, através da qual acontece o transcendente situado, na comunhão das coisas que se amam. Agradeço a esta rede, chamada blogosfera, a possibilidade de deparar com inesperados lugares que trilham a mesma esperança contra o bacanal dos ódios. Por isso, quando peregrinei a resposta da “odisseia de uma Lusitana Combatente, atravessando o Mar das Tormentas”, pessoa que desconheço, apenas me apeteceu transcrever o locus, ou topos. Aqui o deixo, sem comentário. E com a mesma imagem de Andrea Mantegna.
Liberdade:
Porque me tornei rebelde:
A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado contra a servidão voluntária…
Mas servidão a quem, a quê?
Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n’ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só.
Mas essa fascinação e sedução, é a maior benção: O que tem é que tornar-se Fascinação e Sedução, pelo Eterno…
Aliás, todos os que se tornaram servidores do Eterno, foram radicalmente rebeldes. Rebeldes até contra si próprios. Rebeldes, contra a prisão do príncipe deste Mundo, que é acima de tudo o príncipe da Mentira.
Ele nunca funciona pelo mal visível. No entanto gastamos nosso tempo reagindo contra esses sintomas. Ele está sempre escondido. Ele nunca assusta, ele seduz. Ele não é pavoroso. Ele aparenta ser maravilhoso. Ele não é feio. Ele aparenta ser belo. Ele não afasta. Ele atrai a si os que estão perto de realizar algo especialmente Bom, criando situações de forma genial e complexa, para que esse Bem não possa acontecer. Ele sub-repticiamente cerca e enche de obstáculos o caminho que leva à Liberdade.
É por ele que o caminho para o Monte Abiegno é tão penoso, difícil e raro. É por ele que é preciso tanto Amor para que alguns lá possam chegar…
Foi linda a festa…
Foi linda a festa, a da minha mãe, a das memórias da minha avó, a irmã, os filhos, os amigos, a terra pátria, onde estão os restos de meu pai. Voltei a ser quem sempre fui, menino de olhos vivos que subia às árvores para poder ver mais além, as unhas sujas de terra e o sabor das coisas iniciais. As tangerinas comidas no quintal, o verde rumor das ribeiras e as regas em noites de verão. Sou quem sempre fui, porque fui além de mim mesmo e fui mais do que eu.
Foram longos os anos de exílio voluntário, por causa do tal papel social que tenho de representar, do “curriculum”, do “cursus honorum”, da carreira, do posto de vencimento que dá de comer aos meus. Do tal “negotium” que condiciona o “otium” da minha liberdade e onde talvez trabalhe mais que no próprio trabalho que tenho de fazer. Mas agora não apetece recordar os sítios estranhos onde tenho de fingir viver essa falsa identidade que todos dizem ser minha.
Valeu a pena não perder meu ser, nos jogos ocasionais da fortuna e do azar. Valeu a pena esperar. Estou aqui, ainda tenho as mãos livres. Estas mãos de saudar madrugadas, a esperança semeada pela renúncia. Estou aqui, sou livre. Consegui vencer os medos e retomar a sinfonia.
Ousei a liberdade, ergui as mãos em prece e em silêncio agradeci. Ainda sou fiel ao desígnio de viver. Ainda sou quem fui e sonhei ser. Trago as mãos livres, estas mãos de sonho que outrora semearam primavera. Estas mãos de moldar fidelidade que não temem as algemas.
Nos oitenta anos de minha mãe
Cumprindo o prometido, vamos à vida que vale a pena. Neste tempo de homens lúcidos que detestam violinos, vale a pena a lucidez de ser ingénuo. Por mim, depois de ser obrigado a desistir de uma conferência que tinha aprazada em Londres, porque o meu Reitor me vai conceder audiência nessa altura, estou prestes a largar da capital e a rumar para as raízes da pátria, porque a minha mãe vai fazer oitenta anos. E apetece ser de novo menino de minha mãe, e sentado em seu colo quente viajar pela nostalgia dos dias da minha infância. Fingir quem fui sonhando quem hei-de ser. Ouvir de novo versos de embalar e nas ondas do berço adormecer um sono sonho que seja eternidade. Poder, mais uma vez, crescer e com olhos brilhantes de pureza, voltar ao meu gatinhar inicial pelas areias do desconhecido. Ter força para desvendar a curva do meu caminho. Agora, já poucos sabem dos trilhos que todos os dias nos levavam às terras da Rodas ou do Cimo do Olival, nesses carreiros feitos com pés descalços, onde todos conhecíamos as árvores, quase pelo nome, e sabíamos das curvas da ribeira, dos silvados. Na minha aldeia, também eu descobri, com a suavidade de menino que foi feliz, que há um espaço de memória, humanamente mitificada e reconstruída, onde também havia caminhos de aborígenes onde as pedras dos trilhos guardavam memórias e espíritos dos antepassados. Continuo a ser o sonho de minha avó e de minha mãe. Sempre, sempre, dentro de mim, o desejo de partir, de aventura, de poder quebrar as amarras que nos ligam à terra-mãe. Porque mesmo quando cortamos o cordão que nos liga à memória da pátria, mesmo quando dizemos que fugimos, apenas estamos a reconhecer que continuamos presos a essa pátria prometida de quem somos parte. Minha mãe nasceu no mesmo dia da minha avó e a bela fotografia que aqui deixo foi tirada por alguém a quem eu devia ter prestado a minha sentida homenagem na passada semana: o meu querido primo Fernando Cordeiro, o primo-juiz que pela lei da morte passou a ser memória e eternidade. Conseguiu viver como pensava e, ao seu exemplo de vida, devo muito de quem sou, principalmente a vontade de cursar direito. Minha mãe, minha avó, meu falecido primo, todos os caminhos de vida que me fazem cruzar com a Sardoeira, onde comecei a nascer no dia da festa de Santa Luzia, nessa genealogia de memórias, exemplos e força que sempre peregrino, em momentos de resistência individual, quando a própria solidão da autonomia me faz companheiro de quem quer servir ideias, obedecer a regras e conviver na rede das manifestações de comunhão pelas coisas que se amam. Começando em mãe, todos os que pensam, de forma racional e justa, chamaram pátria a este indefinível…
Velhos quesitos aqui publicados há anos em forma de memória viva
Sempre gostei que comigo entrassem em contradita, pelas ideias a que me dou e pelas quais me manifesto e não pelos fantasmas que alguns dizem que tenho, só porque não penso aquilo que convém, quando sinto ter o dever de pensar, mesmo quando o professo em contra-corrente. Por isso não me amedrontam os adjectivos diabolizantes dos pequenos inquisidores que caçam nas névoas dos bruxedos. Penso o que tenho o dever de pensar e cumpre-me dar disso testemunho, mesmo que corra o risco de estar em minoria. Porque ter coragem é não contabilizar a opinião quantitativa e não procurar saber de que lado sopra o vento. Pensar é resistir, é ter a coragem de sermos minoria, assumindo a atitude daquele que, para estar de acordo consigo mesmo, tem, por vezes, que estar em desacordo com todos os outros, não para “épater le bourgeois”, mas para servir a comunidade, mesmo que a comunidade o não reconheça no seu próprio tempo de vida. Pensar é, para esses seres semoventes, entoar uma espécie de música celestial que só influenciaria os habitantes da utopia. Porque, aqui e agora, o dinheiro que compra o poder e a inteligência, o dinheiro que dobra as vontades, começa a tornar-se no valor predominante. Escrever é assumir o risco de viver, de estar sempre à beira de um abismo onde, muitas vezes, não existem corrimões nem as habituais redes protectoras que nos sustenham a queda, como é habitual neste país de meias tintas, entre a esquerda menos e a direita envergonhada, onde quem é do centro, muitas vezes, não passa de um jogo de soma zero, resultante da mistura da esquerda mais com a direita menos, ou do mais direita com o menos esquerda, como sempre foi a preferência dos vários situacionismos, onde sinais contrários não conseguem disfarçar a existência da mesma substância. Nós e aquilo que temos a ilusão de criar não passamos da poeira de um caminho que nossos vindouros hão-de calcorrear. Importa ter a humilde consciência deste dever. De sermos parcela da longa corda de transmissão de um sinal de sonho. E é nesta postura de serviço que conquistaremos a eternidade, mesmo que não o registem em nota de pé de página. No intervalo, apenas seremos compreendidos pelas almas gémeas que servem connosco o mesmo objectivo desta procura colectiva. Mesmo que não surjam anónimos sinais de irmandade. Quem tem a consciência de assim estar vivo e sentir o silêncio dos que, em fidelidade, comungam connosco do mesmo ideal de vida, apesar de se poder sentir só, sabe, intimamente, que não está só e que muitas outras mãos nos querem dar as suas mãos de escrita. O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, faz-se o exacto contrário do que se vai proclamando. E agora tudo se disfarça com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato pode ser gratificante. E tudo sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parece transportar para a delícia cultural dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta. O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade. A rede de dependências e medos vai continuar enquanto não assumirmos que em situações pós-totalitárias e pós-autoritárias, mesmo depois de se eliminarem os aparelhos visíveis da repressão e da corrupção, permanecem os subsistemas de medo e de venalidade que os mesmos geraram. Pior: abundam os micro-autoritarismos sub-estatais e esses modelos de temor reverencial podem aí ser substancialmente agravados e fomentados, principalmente quando as pequenas e os pequenos chefes do bando actuam em legítima defesa, em épocas de transição ou de crepúsculo. Neste regime de pequenos feudalismos em que se enreda o oportunismo lusitano, o longo prazo do combate por ideias nunca conseguirá ter qualquer espaço de comunicação com o frenesim do mediático. Os candidatos com mais sucesso, silenciando irreverentes, souberam criar uma espécie de sociedade de Corte, tecendo uma rede de fidelidades e simpatias, tal como ilustres gestores do presente aparelho de Estado subiram ao poder gerindo adequadamente o saco azul, vermelho, preto ou amarelo dos pareceres e avenças. Por outras palavras, o quintal português da feira das vaidades é estreito demais tanto para a autonomia da sociedade civil como até para efectiva expressão da liberdade de pensamento. Os grandes controleiros deste pequeno “big brother” devem ser, aliás, os primeiros que se riem com os habituais invocadores da chamada teoria da conspiração. E isto porque a estreiteza do nosso espírito capitaleiro produziu uma lógica de campanário na nossa principal aldeia, a que damos o nome de Lisboa. Quando a política de campanário nos vai fragmentando em facciosismos e pequenas zangas de comadres e compadres, onde não faltam os potentados dos pequenos e velhos padrinhozinhos. Quando o futuro se confunde com cinematográficos regressos ao passado e quase todos se diluem na procissão carneiral dos colectivismos morais, importa reparar que à míngua de pátria é o povo comum que começa a perder a vontade de sorrir. Quando é a esperança colectiva que vai definhando, face à falta de sentido cívico e ao vazio de justiça, começamos a notar que surge uma sociedade de ouriços cacheiros, onde em vez do individualismo da criatividade pessoal e das boas sociedades de egoístas, começa a marcar ritmo de desespero o “vê se te avias” e a moral do sapateiro de Braga, onde tanto não há moralidade como ninguém come nada. O próprio discurso sobre o bem comum foi esfacelado e usurpado por vendedores de banha da cobra que o encomendaram aos assessores honestos que recrutaram no mercado do proletariado intelectual. Os tais para quem a moral é uma lei que eles impõem aos outros, mas de que se pensam dispensados pela graça do poder, esquecendo-se que não podem invocar tais normas de autonomia os que são exemplos de falta de autenticidade. E não nos parece que os anunciados candidatos à reflexão presidencial tenham suficientes saudades de futuro para provocarem o urgente acordar deste nebuloso letargo em que nos vamos enrodilhando. Este profundo estado depressivo em que nos deglutimos nada tem a ver com as tensões do tudo e do seu nada de anteriores crises colectivas, quando a alma colectiva ainda não era pequena e nos entusiasmavam os sonhadores activos. Agora, vive-se uma espécie de definhamento com barriga cheia e luxo à farta, com que vamos alimentando a ilusão de ainda sermos uma comunidade nacional. A mentalidade típica de certos donos do poder está em que entre a teoria e a prática tudo é teoricamente prático e tudo é praticamente teórico, porque, na prática a teoria é outra. Mas, como pela boca morre o peixe e estamos na terra do sapateiro de Braga e de Frei Tomás, se uns logo observam que ou há moralidade ou comem todos, muitos outros logo reconhecem que bem pregas Frei Tomás. Enquanto estes pálidos e pretensos taumaturgos continuarem nos pedestais do seu ministerial despotismo, não são possíveis gestos com sentido. Eles prostituíram a palavra e profanaram os símbolos. Pujantes em seu efémero julgam-se donos da eternidade. E se alguns dos que vivem como pensam podem volver-se em agnósticos, muitos outros ainda continuam a semear a esperança dos desesperados. O proibicionismo caceteiro e a persiganga, só porque assentam nos donos do subsidiável e do inspeccionável e que nem sequer têm que registar interesses e acumulações, podem continuar a inspirar muitas transpirações serôdias, inumeráveis cortes de salamaleques, lisonjas e engraxamentos, mas acabam por contribuir para o nosso fenecer sem honra nem humildade. O decretino e o mediático podem ter, no curto prazo, a razão da eficácia, mas nem por isso se livram de poderem ser um clamoroso erro no médio prazo e até uma estupidez destrutiva no longo prazo. De boas intenções está o inferno do pseudo-reformismo cheio. Não há meio de compreenderem que a história, mais do que o produto da intenção de certos homens que dizem deter o monopólio das boas intenções, é, sobretudo, o produto da acção dos homens livres. A história é sempre uma co-criação de homens livres e raramente é detida pelo caixilho teórico dos que apenas pensam que pensam. O dominador sempre conseguiu controlar as esperanças e domar as ilusões, através do magistral uso do chicote e da cenoura, usando apenas o primeiro de forma selectiva, de maneira a liquidar as cabeças que se assumem como alternativas oposicionistas. A cultura imperial-otomana que nas amarfanha, pintando-se de bom pai tirano, sempre soube manipular de forma magistral o pão e o circo, desde a jantarada à custa do dinheiro do contribuinte, às sucessivas farras e guitarradas, para que a rapaziada se embebede e não cuide da chefia da cidade. E neste ambiente de acrítico louvaminheirismo continua a ser pecado produzirmos simples farpas que ousem sair da mediania estupidocrática dos produtores de hossanas nas alturas aos contadores de histórias que ocupam as chefias. Porque ninguém ousa dizer em voz alta, mesmo sem berros, o que todos vão comentando pelo sussurro, sobre a total inutilidade de instituições que, sem ideias, apenas servem de corrimão para gentes viciadas em protagonismos balofos de falso mediatismo, apesar de as cortes se emprenharem em ilusionismos activistas Ainda há instituições que continuam a ser espaços infradomésticos de falso paternalismo, porque ingloriamente dependentes de certos capatazes e dos respectivos fiéis. E nesse universo de cinzentismo pós-totalitário, quem se assume da oposição quase parece que comete um pecado, porque os donos e senhores da coisa logo dizem que monopolizam o conceito de bem institucional, considerando os divergentes como dissidentes a abater. E assim podem sobreviver, para além do prazo de validade, sistemas imperiais de gestão, marcados pela arendtiana categoria do governo dos espertos, onde se manipula a legalidade, conforme o uso que dela podem fazer os espiões da Razão de Estado. Os quais nem sequer alguma vez compreederam o mínimo denominador comum da civilização do Estado de Direito. A cultura da dependência, gerada pela estreiteza de vistas do paroquialismo balofo e pelo charlatanismo dos piratas com chapéu de coco, que confundem a palavra com a demagogia, apenas afina o delírio de um carreirismo cobarde. *As trinta citações que faço são retiradas deste blogue. Têm todas cerca de três anos de emissão. Qualquer coincidência deste passado-presente com a falta de saudades de futuro é para quem quiser enfiar a carapuça.
A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado contra a servidão voluntária
Para os devidos efeitos, junto parcela do discurso que proferi na minha escola em 20 de Novembro de 2006, na inauguração da exposição comemorativa dos 30 anos de Constituição, na presença do Presidente da Assembleia da República e do comissário da mesma mostra, Professor Doutor António Reis. Muitos auditores disseram então que tinha sido muito esotérico. Julgo que só juntei um pouco de lume de profecia ao lume da razão:
Interessa homenagear “aquela ideia de Estado de Direito, onde acima da lei está o direito e acima do direito está a justiça. Porque, como recordava Fernando Pessoa, se o Estado está acima do cidadão, o homem está a cima do Estado.
Interessa também salientar que, muitas vezes, temos conseguido espremer, uma a uma, as gotas de micro-autoritarismos que ainda nos poluem, esses restos de subsistema de medo que marcam os pós-autoritaritarismos e os pós-totalitarismos, esses atavismos absolutistas que dizem que L’Etat c’est moi e que quod princeps dixit, legis habet vigorem, porque princeps a legibus solutus.
Infelizmente, mesmo a nível da universidade, continuam muitos segmentos do regime des décrets que, segundo Hannah Arendt, coincide com o governo da burocracia, essa mera administração que aplica decretos, existente nos Estados imperiais, como o czarismo russo e a monarquia austro-húngara, bem como em certos impérios coloniais.
Os burocratas destes regimes que administram territórios extensos com populações heterogéneas, pretendem suprimir as autonomias locais e centralizar o poder, mas apenas exercem uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos contemporâneos. É uma espécie de domínio perpétuo do acaso e de governo dos espertos onde o burocrata tem a ilusão da acção permanente e onde, por trás dos decretos, nem sequer há princípios gerais de direito.
Não sei se vou ter tempo para clamar o regresso do patriotismo científico, numa centenária escola universitária pública que já serviu quatro regimes e que certo revisionismo histórico e alguma literatura de justificação confundem com uma escola de certo regime, esquecendo-se dos pais-fundadores da monarquia liberal de da primeira república, do inspirador, Luciano Cordeiro, a um dos primeiros graduados, Álvaro de Castro.
Porque, no começo deste novo século da escola, não podem continuar apagadas as profundas memórias que nos ligaram aos próprios factores democráticos da formação do Portugal contemporâneo, para parafrasear Jaime Cortesão.
Importa recuperarmos fontes históricas adormecidas pelo autoritarismo salazarista, onde está por inventariar o esforço de subversão criadora de um Sarmento Rodrigues, o ministro que, tardiamente, nos tentou fazer regressar ao conceito do universalismo lusíada que havia sido lançado por Paiva Couceiro e Norton de Matos, especialmente na sua ligação a Gilberto Freyre, ou o simbólico papel que aqui teve o nosso docente Agostinho da Silva. Tal como importa assumirmos certos pecados no afastamento de professores como Vitorino Magalhães Godinho ou, mais recentemente, com a recusa de contratação de Luís de Sá.
Comemorarmos os trinta anos de constituição tem de ser assumirmos a bela ideia de luta pela Constituição, com verdade e autenticidade, espremendo gota a gota o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio.
Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n’ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só”.
PS1: Parece que certo delírio de estadão, entre notas oficiosas, cartas insultuosas e outras técnicas de intimidação, acaba de fazer acompanhar o processo de “delete” de um dissidente com o lançamento de um anónimo blogue, onde basta um mínimo de conhecimento de análise de conteúdo para se confirmarem as coincidências de sapientíssima origem neopidesca. As anunciadas bufarias serão naturalmente recompensadas. Por mim, não alimentarei estas cenas de ódio. A causa pela qual me mobilizei publicamente venceu. Outros que tirem as conclusões sobre a falta de ar livre que ainda amarfanha alguns segmentos dos nossos quintais universitários. A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado.