Porque vou tentar resistir aos cheiros do esgoto, aqui vai o postal que tentei editar. Pela manhã de sábado, tinha intenção de homenagear Ubirantan Borges de Macedo, um velho amigo do pensamento, brasileiro e liberal, recentemente falecido, utilizando o pretexto de recordar os laços familiares que o ligavam a Fidelino de Figueiredo. Porque não gosto desta sociedade funerária e comemorativa, decidi dar conta de uma colectânea de ensaios que este último mestre editou quando eu nasci, “O Medo da História” e que, graças aos acasos dos alfarrabistas, me veio parar à posse. Por isso, prefiro viver o pensamento e reencontrar algumas das mais herculianas páginas que a cultura lusída produziu na primeira metade do século XX. Lá encontrei uma clássica citação de Chateaubriand sobre a degenerescências das aristocracias que, começando por ser de serviços, passam depois para os privilégios (os fidalgos, os filhos de algo que já são nobreza), acabando por chafurdar na fase crepuscular das vaidades. Daí ter encontrado em Fidelino uma certa distinção que merece ser meditada pelos nossos neoliberais de tradução em calão, alguns dos quais não admitem que o liberalismo nunca se confundiu com o capitalismo, nem com o negocismo, mas antes com “a vida da Europa do século XIX” que se “tornou um ideal para todas as populações da terra” (p. 67). Porque o liberalismo sempre foi a “tolerância cavalheiresca”, fundada “na presunção de relatividade para todas as orientações políticas” (p. 87). Porque é “o melhoramento individual pela libertação” (p. 83), marcado pela ideia de dialéctica, ou de desenvolvimento, expressa por Croce: “que mercê da diversidade e oposição das forças espirituais, amplia e nobilita continuamente a vida e lhe confere seu único e inteiro sentido” (p. 81). Por outras palavras, o liberalismo é “uma concepção metapolítica” que “transcende a teoria formal da política”. É “uma infinita tolerância, portanto a coexistência pacífica de todas as ideias e todas as orientações do espírito” (p. 73). Fidelino reconhece que “há uma pequena legião de leitores desconhecida que são como antenas ocultas a recolher as vibrações destes eremitas do pensamento” (prefácio). Porque “uma verdade nova tem de esperar a sua hora de converter-se em valor de cultura geral, em ideia ou atitude de moda, em técnica industrial e exploração económica” (p. 35). Porque “o pensador quer entender e saber e prever; o político só quer chegar ao poder, conservá-lo e alargá-lo… a mente política procura dominar o relativo e ocasional, como o navegante à vela, perito em ventos e suas surpresas caprichosas, ao passo que a inteligência pura em tudo busca o absoluto” (p. 36). Até sabe que “a imprensa deixou-se dominar por forças menores que a dela, como o gigante Gulliver pelos humúnculos liliputianos” (p. 42). Fidelino, o militante sidonista e do 28 de Maio, exilado pela Ditadura, compreendeu pelo magistério professor as agruras desses navegantes à vela. Preferiu a amizade de Manuel Bandeira e ir para a distância do português à solta, levando, do breve exílio espanhol, as lições pedagógicas da krausista Institución Libre de Enseñanza. Por isso aconselho a leitura do belo artigo de Ricardo Vélez Rodríguez sobre o autor, onde se relata a atribulada entrada de Fidelino na Academia Brasileira de Letras, onde tinha como concorrente um certo professor da entidade que antecedeu a minha escola e que acabou por não vencer, porque foi então recordado que, dois anos antes, tinha sido o autor científico de belas análises racistas, quando se insurgia contra os perigos das “intimidades” da mestiçagem, das quais, “não raro provinham, em famílias ilustres, comprometedoras nódoas pigmentares, estranhos cabelos encrespados, que, em vez de atavismos remotos da raça, denunciavam cruelmente inquinações recentes de respeitáveis estirpes fidalgas”. Porque “o mestiçamento é uma lotaria germinal que tanto pode dar bons como maus resultados” e que seria “intuitivo que, quanto mais intenso e variado for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa, mais rápida e fortemente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multissecular, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa”. Essa pesada herança, que ainda nos polui, pode ainda estar viva se não a denunciarmos, mesmo sem lhe darmos nome. Por acaso, as denúncias que fiz nos postais anteriores surgiram quando, ao ir à Google, procurar o nome Fidelino, deparei com uma ficha da minha autoria, no tal CEPP, a que não consegui ter acesso por causa do limpamento, o tal que aguarda cumprimento da ordem do “big brother”, para ser apagado o apagão. O liberalismo continua a sonhar direito, apesar dos “links” tortos de certas memórias vérmicas que já não são da nobreza nem dos fidalgos, mas das vaidades.
Daily Archives: 19 de Agosto de 2007
Dificuldades na visualização deste blogue…
Juro que não acredito em bruxas nem que as haja, mas já admito a existência de “hackers” e, sobretudo, de erros próprios de formatação. Por isso, quando alguns dos meus leitores estranharam o branco que ontem atacou, nalguns computadores, este sítio, fiquei admirado, porque sempre o fui conseguindo abrir, em visualização normal, no meu computador. Julgo que o erro poderá ter sido meu e, para tanto, eliminei parte de um texto de anexos que tinha entrado desmarginalizado. Espero que a preocupação seja apenas essa, embora admita que terei de mudar a senha, até porque as entradas no meu “gmail” podem ser objecto de espionite, quando o faço no computador da universidade. Tudo isto para pedir, a quem não receba em boas condições este blogue, para mo comunicar para o meu “mail” (está na coluna da esquerda). Caso a coisa continue torta, terei de eliminar provisoriamente os últimos postais, mas espero recuperá-los “a posteriori”. O meu habitual consultor destas coisas, o meu filhote, está de férias.
posted by JAM | 8/19/2007 07:54:00 PM
“Há uma pequena legião de leitores desconhecida que são como antenas ocultas a recolher as vibrações destes eremitas do pensamento”…
Porque vou tentar resistir aos cheiros do esgoto, aqui vai o postal que tentei editar. Pela manhã de sábado, tinha intenção de homenagear Ubirantan Borges de Macedo, um velho amigo do pensamento, brasileiro e liberal, recentemente falecido, utilizando o pretexto de recordar os laços familiares que o ligavam a Fidelino de Figueiredo. Porque não gosto desta sociedade funerária e comemorativa, decidi dar conta de uma colectânea de ensaios que este último mestre editou quando eu nasci, “O Medo da História” e que, graças aos acasos dos alfarrabistas, me veio parar à posse. Por isso, prefiro viver o pensamento e reencontrar algumas das mais herculianas páginas que a cultura lusída produziu na primeira metade do século XX.
Lá encontrei uma clássica citação de Chateaubriand sobre a degenerescências das aristocracias que, começando por ser de serviços, passam depois para os privilégios (os fidalgos, os filhos de algo que já são nobreza), acabando por chafurdar na fase crepuscular das vaidades. Daí ter encontrado em Fidelino uma certa distinção que merece ser meditada pelos nossos neoliberais de tradução em calão, alguns dos quais não admitem que o liberalismo nunca se confundiu com o capitalismo, nem com o negocismo, mas antes com “a vida da Europa do século XIX” que se “tornou um ideal para todas as populações da terra” (p. 67).
Porque o liberalismo sempre foi a “tolerância cavalheiresca”, fundada “na presunção de relatividade para todas as orientações políticas” (p. 87). Porque é “o melhoramento individual pela libertação” (p. 83), marcado pela ideia de dialéctica, ou de desenvolvimento, expressa por Croce: “que mercê da diversidade e oposição das forças espirituais, amplia e nobilita continuamente a vida e lhe confere seu único e inteiro sentido” (p. 81).
Por outras palavras, o liberalismo é “uma concepção metapolítica” que “transcende a teoria formal da política”. É “uma infinita tolerância, portanto a coexistência pacífica de todas as ideias e todas as orientações do espírito” (p. 73).
Fidelino reconhece que “há uma pequena legião de leitores desconhecida que são como antenas ocultas a recolher as vibrações destes eremitas do pensamento” (prefácio). Porque “uma verdade nova tem de esperar a sua hora de converter-se em valor de cultura geral, em ideia ou atitude de moda, em técnica industrial e exploração económica” (p. 35). Porque “o pensador quer entender e saber e prever; o político só quer chegar ao poder, conservá-lo e alargá-lo… a mente política procura dominar o relativo e ocasional, como o navegante à vela, perito em ventos e suas surpresas caprichosas, ao passo que a inteligência pura em tudo busca o absoluto” (p. 36).
Até sabe que “a imprensa deixou-se dominar por forças menores que a dela, como o gigante Gulliver pelos humúnculos liliputianos” (p. 42).
Fidelino, o militante sidonista e do 28 de Maio, exilado pela Ditadura, compreendeu pelo magistério professor as agruras desses navegantes à vela. Preferiu a amizade de Manuel Bandeira e ir para a distância do português à solta, levando, do breve exílio espanhol, as lições pedagógicas da krausista Institución Libre de Enseñanza.
Por isso aconselho a leitura do belo artigo de Ricardo Vélez Rodríguez sobre o autor, onde se relata a atribulada entrada de Fidelino na Academia Brasileira de Letras, onde tinha como concorrente um certo professor da entidade que antecedeu a minha escola e que acabou por não vencer, porque foi então recordado que, dois anos antes, tinha sido o autor científico de belas análises racistas, quando se insurgia contra os perigos das “intimidades” da mestiçagem, das quais, “não raro provinham, em famílias ilustres, comprometedoras nódoas pigmentares, estranhos cabelos encrespados, que, em vez de atavismos remotos da raça, denunciavam cruelmente inquinações recentes de respeitáveis estirpes fidalgas”.
Porque “o mestiçamento é uma lotaria germinal que tanto pode dar bons como maus resultados” e que seria “intuitivo que, quanto mais intenso e variado for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa, mais rápida e fortemente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multissecular, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa”.
Essa pesada herança, que ainda nos polui, pode ainda estar viva se não a denunciarmos, mesmo sem lhe darmos nome. Por acaso, as denúncias que fiz nos postais anteriores surgiram quando, ao ir à Google, procurar o nome Fidelino, deparei com uma ficha da minha autoria, no tal CEPP, a que não consegui ter acesso por causa do limpamento, o tal que aguarda cumprimento da ordem do “big brother”, para ser apagado o apagão. O liberalismo continua a sonhar direito, apesar dos “links” tortos de certas memórias vérmicas que já não são da nobreza nem dos fidalgos, mas das vaidades.
O “big brother” disse que era a mudança da modernidade e anuncia que foi tudo mera quebra de “links” onde a culpa vai morrer solteira… Toma!
Entre a madrugada de ontem e os começos desta manhã de domingo, o grito de revolta que aqui lancei demonstram como a resistência e a revolta das palavras são necessárias. Agradeço o militante apoio que temos recebido da blogosfera: do João Gonçalves, do Luís Bonifácio, do Miguel Castelo Branco, do Pedro Guedes, de A Origem das Espécies, de Magude, do Anarca Constipado, do Ao Encontro do Tempo, de A Ilha dos Amores, do Macroscópio, para referir os que me chegam apenas pelo registo das primeiras consultas ao “site meter”. Não posso divulgar os “mails” e “sms”, até porque grande parte deles é de quem teme pela carreira, pelo subsídio de viagem científica e pelas prebendas que os burocratas do estadão vigente na universidade distribuem pelos não rebeldes.
Cumpre-me sublinhar que a primeira manifestação de solidariedade veio de um simples aluno que teve o privilégio de poder ir estudar para o estrangeiro e livrar-se do “big brother” concentracionário que nos continua a proibir o “português à solta”. Outros citaram Orwell e propuseram Talião. Colegas sugeriram mera guerra de papéis. Juristas eminentes, o recurso aos meandros da justicite. Apenas apetecia transcrever os apelos que me foram dirigidos pelos dois jovens colaboradores de então, hoje mais amadurecidos pelos exílios internos e externos, mas não gosto de auto-elogios.
Apenas digo que, hoje, o “big brother” emitiu há pouco o seguinte decreto: como já anteriormente dito, muito se agradece todas as contribuições, visando o apuramento do novo site do ISCSP – como a carta infra, cuja parte relevante já foi encaminhada, para se repor o link perdido na mudança. Por outras palavras, o limpamento ordenado foi qualificado como avaria técnica dos pretensos saltos tecnológicos e a defesa dos direitos da memória foi reencaminhada para outro braço anónimo do mesmo “big brother”, uma coisa que tanto pode ser uma oficina de vão de escada que recebe ordens do chefe de repartição, como um qualquer recibo verde que pode deixar de ser pago caso não se obedeça ao adjunto do subchefe do chefe, ao melhor estilo daquilo que Hannah Arendt qualificou como “governo dos espertos”, em aliança com o “domínio perpétuo do acaso” e do senhor “ninguém”.
Entretanto, o “big brother” vai dizendo: eu sou Portugal, eu sou a República, eu sou o Estado, eu sou a Universidade, eu sou a Escola, eu sou a mudança e as quebras de “links” são negligência e não dolo, nem sequer eventual. Logo, mesmo que a negligência gere cessantes homicídios culturais, a culpa continua solteira. E nada melhor esperar que a justiça lentamente mate mesmo a liberdade.
Por isso, continuarei a resistir. A liberdade não tem férias nem fins de semana. Obrigado, blogosfera! Viva a república universal das pessoas livres e da consequente sociedade civil internacional, enquanto não eliminarem os “links” e o espaço nos servidores, ao serviço de um pretenso pensamento único. Reparo, contudo, que sou um privilegiado: professor catedrático, subdecano da instituição, com alguma voz. E que conheço os meandros dos pré-totalitarismos, com algumas provas prestadas.
O que está a acontecer não é mera vingança. É meticulosa repetição da velha estratégia do maquiavelismo clássico. Se eles até decapitam quem não se submete à corte, todos os outros se moldarão sem necessidade de repressão, gerando-se uma maioria de cobardes, sobre a qual será mais fácil o exercício do unidimensional rolo compressor. Daí a táctica do salame e das correias de transmissão, para que o rebelde ou o dissidente possa ser qualificado como doidinho pelo pelourinho da paz dos cemitérios.
Um desses aliados dos novos donos do poder, ainda há semanas me confessava, no silêncio do gabinete que não tinha dúvidas em mandar-me fuzilar se a revolução dele triunfasse, apesar de continuar meu amigo. Como eu o conheço desde a adolescência, apenas me lembro que, ainda no tempo dos seus amigos pides, o respectivo directório condenou um puto de dezasseis anos a abandonar um acampamento parapolítico a quinhentos quilómetros de casa e a ver sem dinheiro nem transportes nem dinheiro, à boleia, só porque recusei queimar uma bandeira estrangeira e saudar a nossa com uma certa postura. O puto era eu e ainda sou rebelde. Os novos aliados do dito são aqueles que ele chamava inimigos e que, afinal, não passam de irmãos-inimigos.
Como professor, não é a minha pessoa que está em causa. É o exemplo que devo dar. Aliás, ainda há dois anos, o “big brother” ainda me ofereceu o poder de carregar no botãozinho da campainha com que se liquidam mandarins no exótico ou na vizinhança. Recusei. Não lhe reconheci autoridade para me dar poderes que não são dele. Eu sei resistir. Não sei se as instituições que eles capturaram já o podem fazer sem o exílio dos homens livres.