Ago 29

Em Barcelos, entre Andrea Mantegna e Terpsichore

Depois de mais uma noite de insolente serenidade junto dos meus ascendentes e descendentes, com os pés assentes na terra dos meus mortos e os olhos postos nos sinais de sonho que estão depois da curva do caminho que devo percorrer, confirmei como não sou apenas a autonomia do “in-divisus” que resiste, mas também corrente de gerações, através da qual acontece o transcendente situado, na comunhão das coisas que se amam. Agradeço a esta rede, chamada blogosfera, a possibilidade de deparar com inesperados lugares que trilham a mesma esperança contra o bacanal dos ódios. Por isso, quando peregrinei a resposta da “odisseia de uma Lusitana Combatente, atravessando o Mar das Tormentas”, pessoa que desconheço, apenas me apeteceu transcrever o locus, ou topos. Aqui o deixo, sem comentário. E com a mesma imagem de Andrea Mantegna.

Liberdade:

Porque me tornei rebelde:

A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado contra a servidão voluntária…

Mas servidão a quem, a quê?

Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n’ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só.

Mas essa fascinação e sedução, é a maior benção: O que tem é que tornar-se Fascinação e Sedução, pelo Eterno…

Aliás, todos os que se tornaram servidores do Eterno, foram radicalmente rebeldes. Rebeldes até contra si próprios. Rebeldes, contra a prisão do príncipe deste Mundo, que é acima de tudo o príncipe da Mentira.

Ele nunca funciona pelo mal visível. No entanto gastamos nosso tempo reagindo contra esses sintomas. Ele está sempre escondido. Ele nunca assusta, ele seduz. Ele não é pavoroso. Ele aparenta ser maravilhoso. Ele não é feio. Ele aparenta ser belo. Ele não afasta. Ele atrai a si os que estão perto de realizar algo especialmente Bom, criando situações de forma genial e complexa, para que esse Bem não possa acontecer. Ele sub-repticiamente cerca e enche de obstáculos o caminho que leva à Liberdade.

É por ele que o caminho para o Monte Abiegno é tão penoso, difícil e raro. É por ele que é preciso tanto Amor para que alguns lá possam chegar…

Ago 29

Foi linda a festa…

Foi linda a festa, a da minha mãe, a das memórias da minha avó, a irmã, os filhos, os amigos, a terra pátria, onde estão os restos de meu pai. Voltei a ser quem sempre fui, menino de olhos vivos que subia às árvores para poder ver mais além, as unhas sujas de terra e o sabor das coisas iniciais. As tangerinas comidas no quintal, o verde rumor das ribeiras e as regas em noites de verão. Sou quem sempre fui, porque fui além de mim mesmo e fui mais do que eu.

Foram longos os anos de exílio voluntário, por causa do tal papel social que tenho de representar, do “curriculum”, do “cursus honorum”, da carreira, do posto de vencimento que dá de comer aos meus. Do tal “negotium” que condiciona o “otium” da minha liberdade e onde talvez trabalhe mais que no próprio trabalho que tenho de fazer. Mas agora não apetece recordar os sítios estranhos onde tenho de fingir viver essa falsa identidade que todos dizem ser minha.

Valeu a pena não perder meu ser, nos jogos ocasionais da fortuna e do azar. Valeu a pena esperar. Estou aqui, ainda tenho as mãos livres. Estas mãos de saudar madrugadas, a esperança semeada pela renúncia. Estou aqui, sou livre. Consegui vencer os medos e retomar a sinfonia.

Ousei a liberdade, ergui as mãos em prece e em silêncio agradeci. Ainda sou fiel ao desígnio de viver. Ainda sou quem fui e sonhei ser. Trago as mãos livres, estas mãos de sonho que outrora semearam primavera. Estas mãos de moldar fidelidade que não temem as algemas.