Finalmente, há boas notícias: entre presidentes de câmara, vereadores e membros de assembleias municipais e de freguesia, vamos eleger 43 489 autarcas, o equivalente à população do concelho de Sesimbra, e quase o mesmo número de professores, ou de licenciados candidatos a professores que ficaram por colocar. Mais do que isso: segundo um estudo do Banco Mundial basta eliminarmos a corrupção para triplicarmos o rendimento “per capita” e colocar-nos ao nível da Finlândia. Por isso é que todos esperam o regresso de D. Sebastião Soares ou de D. Sebastião Cavaco, que o furacão Katrina não desembarque na praia da Junqueira em manhã de nevoeiro e que não volte a ser publicado nenhum estudo do “El Pais” sofre os nossos incêndios. Com efeito, em Portugal já não há maquiavelismo de salão, sindicalismo do elogio mútuo, persiganga, jagunçada e saneamentos. Porque esta gaseificada passagem do estado cardinalício para a liquefeita postura de sereno e suprapartidário presidenciável constitui a justa homenagem à eterna conspiração de avós e netos que nos continua a fazer apetecer o exílio.
Daily Archives: 30 de Agosto de 2007
Hino à glória de ter medo
Sei do abstracto bem do Estado e do preço que não tem a vida humana; sei máquinas automáticas que registam todos os passos do suspeito. Sei microfilmes, computadores, e sofisticadas torturas que o não são, sempre de acordo com os regulamentos.
Sei das regras todas, das leis, das circulares, das convenções. Sei prisões, direitos e garantias, códigos penais, processuais e as teorias todas do poder. Sei de cor os meandros do medo, notificações, contestações, concentrações. Sei sobretudo prisões sem culpa formada e legalíssimas justificações de tudo. Sei do medo e a repressão, sei tudo isto e não estou calado.
Sei e valia mais não saber, valia mais esquecer-me de quem sou e, renegando os princípios por que me querem prender, entregar-me às doces polícias do pensamento que sem proibir nos querem silenciar.
Valia mais censurar-me, arrepender-me, rasgar meus versos, não acreditar. Isto é, ter o prudente medo desse bom chefe de família que tem de ganhar a vida. Ter, em suma, a cobardia de não ser e parecer sempre do lado que convém.
Para quê defrontar o vento novo e arriscar causas perdidas, quando posso aplaudir o vencedor? Ser definitivamente da casta dos moderados, desses que tendo dito sim ao não, aparentando não dizer nada, podem, depois, muito convenientemente, demonstrar que não disseram o que calaram.
Enfim: sobreviver, deixar a política para os políticos e a pátria para os homens de sucesso.
PS: Agradeço ao meu amigo René Magritte a ajuda que me deu com “Le Chef d’Oeuvre”. Sem palavras disse todas as palavras que eram precisas.
De como apagar incêndios com a filosofia deste símbolo chamuscado, mas permanecente
Os incêndios gregos não são lá. São aqui e agora. Apenas revelam como há um vazio de política a nível da globalização e da Europa. Seria bem útil que, por cá, assumíssemos uma espécie de lição prospectiva face a uma ameaça global. Apenas recordo texto emitido há cinco anos sobre a matéria que também ciclicamente nos aflige.
O problema tem a ver com bombeiros e ministros, mas é sério demais para ser resolvido apenas com o mero lançamento de água a partir de meios aéreos. O problema é, como a imagem nos recorda, essencialmente teórico, tendo a ver com o pensamento dominante em matéria de reforma da universidade ou de não proibição dos transgénicos, exigindo o regresso à racionalidade complexa, bem simbolizada pela chamuscada imagem que reproduzimos.
Com efeito, ao contrário do Renascimento, que concebia o mundo como um ser animado, como um homem em ponto grande, quase à maneira do antropomorfismo platónico, a teoria moderna da razão incompleta, a que muitos ainda reduzem a racionalismo, vem compará-lo a uma grande máquina ou mecanismo e, como tal, decomponível. Aliás, se, no Renascimento, a ciência modelar para o estudo das coisas políticas era a medicina, eis que, com o Iluminismo, a matemática se torna o novo paradigma.
Conforme Descartes pede: dai-me a extensão e o movimento e eu construirei o universo. Eis, portanto, o sujeito todo poderoso, o homem solitário e sem freio, solto, absoluto, disposto a dominar todo o mundo através de um razoar calculista e raciocinador, o raisonner dos franceses, uma ilusão de razão que pretendia, sobretudo, fazer adições e subtracções de elementos, decompor o todo pela análise e, somando cada uma das parcelas, reconstitui-lo.
O mesmo Descartes, no Discours de la Méthode, refere que em vez da filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar se uma outra, prática, pela qual conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos as diversas profissões dos nossos artesãos, poderíamos, da mesma maneira, utilizá-los para todos os usos que lhes são próprios e, assim, tornarmo-nos senhores e possuidores da natureza (maîtres e possesseurs de la nature)…
Inicia-se, assim, o esprit geométrique, oposto ao esprit de finesse que Blaise Pascal, nos seus Pensées, de 1669, entendia como a razão metafísica. Compreende-se, pois, que Hobbes venha, mais tarde, considerar a geometria como a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Gera-se, portanto, aquela forma mentis que leva o pensamento matemático a tornar-se o ritual do pensamento, conforme a conhecida observação de Theodor Adorno.
A razão passa a ser o tal conhecimento claro e distinto de Descartes, onde apenas se conhece aquilo que pode conceber-se, tanto na sua aparência externa, como nas condições que determinam a sua origem, surgindo o método analítico e sintético. Inicia-se assim aquela modernidade, marcada pela racionalidade do sistema, a metafísica da subjectividade, a dominação planetária da técnica e o totalitarismo sócio-económico-político, para utilizarmos palavras de Martin Heidegger
Na linha de Karl Popper, também eu sou parcialmente culpado, porque não fujo de certa tradição de Kant e Voltaire que submeteram ao crivo da razão tanto a filosofia como as matemáticas ou a física.
Mas não deixo de reconhecer que, a partir desta senda cartesiana, surgiu, como assinala André Glucksmann, a empresa de matematização do universo físico que redistribui os domínios da ciência e da autoridade na viragem dos tempos modernos. E todas as universidades do Ocidente, quaisquer que sejam as suas teologias implícitas, procuram, há dois séculos, pôr em paralelo ciências físicas e ciências morais, ciências da natureza e ciências humanas:gravitam todas no campo desta revolução copernicana induzida pela entrada na órbita científica de 89. Desde esta data, dois projectos de domínio fundem-se um no outro; Descartes convida a descobrir no homem capaz de física matemática o ‘dono e senhor da natureza’. O homem capaz de revolução leva, segundo o novo saber, ao dono e senhor da sociedade: que seriam as ardentes e doutrinais querelas em ciências humanas, até mesmo as ‘posições de partido’ se não fossem as querelas de domínio e de posse?
Acrescento, outra observação, de Louis Pauwels: a tradição racionalista é metafísica e mágica: metafísica por “fazer do determinismo um absoluto”; por “projectar as próprias preferências sobre a natureza é um acto de magia. Este materialismo é um encantamento e o cepticismo indiscriminado uma superstição”.
Concluo com Benjamin Disraeli: o Homem só é verdadeiramente grande quando actua movido pelas paixões; nunca é irresistível excepto quando apela para a imaginação.
Como observa Jean Marie Domenach,”a antiga totalidade, partindo da ruptura entre o homem e a natureza, pretendia fazer da natureza uma chasse gardée do homem (é o humanismo dominador de Descartes) ou do homem um prolongamento da natureza (é o estruturalismo de Lévi Strauss) … o pensamento sistémico quer forçar este impasse mostrando que as estruturas vivas não são radicalmente estranhas às da física, que a autonomia já está incluída na organização e que é um combate ultrapassado o do reducionismo contra a complexidade,do determinismo contra a liberdade”.
Diga-se, de passagem, que algo de diferente foi o movimento da ciência portuguesa dos séculos XV e XVI, de Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro e Garcia da Orta. Refere Agostinho da Silva que estes “mantinham os direitos e as irradiações de uma ciência a que poderíamos chamar católica no sentido de que de bom grado se dissolve na comunidade e não procura ir além de uma linha geral de entendimento e de saber”. Porque “o português mantém-se fiel à grei, o que tantas vezes simboliza numa fidelidade ao soberano, e vê nas criações um motivo para louvar o Criador, isto é, descobre a grandeza universal na pluralidade do diverso, sem que a singularidade se elimine e, por outra parte, vê Deus como sendo essencialmente o artista supremo que inventou as faunas dos corais, ou a tromba marítima, ou as fantasiosas conhecenças ou o lento balanço das palmas nas tardes tropicais”.