Mar 27

Para além da venalidade, da boçalidade e da maldade

Em plena tarde do Rio, em volta dos alfarrabistas, onde costumo comprar raridades portuguesas a preço do real, recebo telefonema da RCP, procurando saber se eu ia mesmo homenagear Caetano. Disse que a verdade não era pecado e que a cerimónia de amanhã se desenrolaria numa venerando instituição que, por já ter passado por quatro regimes portugueses, ainda podia ser Real Gabinete Português de Leitura, não se confundindo com o concurso da RTP, nem com o regresso da salazarquia. Aliás, sobre Marcello, o que aqui venho dizer já o disse num artigo publicado após a sua morte, no boletim da Faculdade de Direito de Lisboa e repeti o testemunho numa cerimónia que este instituição promoveu no centenário do respectivo nascimento. E amanhã irei insistir nas teses constantes do meu publicado “Tradição e Revolução”.

Porque sempre me fascinaram aqueles actores políticos que, apesar das extraordinárias qualidades que marcam os homens de génio, acabaram vencidos pela vida, quando as ciclópicas tarefas das circunstâncias os esmagam em derrotas políticas. E mais desafiantes são quando, sendo homens de pensamento, treinados pela teoria ou pelo estudo da história, acabam por não poder responder aos desafios daquilo que considerararam a respectiva missão.

Em contraste, há outros que não chegaram antes ou depois do tempo e, apesar de marcados pela venalidade, pela boçalidade e pela maldade, conseguiram os vícios privados em virtudes públicas e ainda hoje enchem as ruas e praças do país com placas inauguratórias, mesmo quando lançam foguetes e recebem vivório pelos investimentos feitos pelos antecessores que nem direito a pé de página merecem, nas crónicas dos homens de sucesso.

Marcello, um pouco como D. João VI, faz parte da lista dos derrotados políticos, assinando a perda do último império africano, tal como o pai do Imperador do Brasil viu amputada a parcela principal do seu sonhado Reino Unido. Aliás, o último presidente do conselho do regime derrubado em 1974, que só exerceu o consulado nos últimos cinco anos e meio dos 48 anos de interrupção autoritária que nos marcaram, ficará nos anais mais como criador do estilo da sua faculdade, onde, se sempre ousou defender a respectiva herança institucional, não teve, depois, coragem, ou condições, para restaurar a lusitana antiga liberdade.

Mas não podemos esquecer que esse ideólogo do Estado Novo teve a honra de repor o seu inimigo político, Afonso Costa, no lugar de fundador da escola, tal como estudou e homenageou a personalidade de Mouzinho da Silveira. Ou como moveu diligências para que se acolhesse em Lisboa o maior jurista do século XX, Hans Kelsen, quando este fugia às perseguições hitlerianas.

Infelizmente, não admitiu a institucionalização de partidos e não ousou avançar numa paz dos bravos com os movimentos de libertação africana, mas muitas micro-histórias locais consignar-lhe-ão sinais de neofontismo e muitas páginas de guerra terão, desse tempo, heróis e até alguns mártires. Ele apenas é o espelho de um certo tempo português.

Apesar de tudo, poucos lhe poderão apontar a categoria de traidor, da mesma forma como os anais diplomáticos não lhe dedicarão páginas de desonrosa negociação, ou de portas artificialmente fechadas. Aí está o acordo de associação com a CEE, nesse hibridismo lusitano que sempre jogou em todos os tabuleiros, preparando alternativas futuras.

Não foi Pompidou, porque Salazar também não tinha sido Charles de Gaule e a guerra impedia-o de fazer o jogo de Adolfo Suárez. Já comendo o pão amargo do exílio esperado, pode ter-se zangado e polemizado, principal através de emissários e mensageiros, mas, nesta terra brasil, deixou um legado de pensamento universitário que constituirá um elemento de peregrinação obrigatória para quem mantenha uma certa perspectiva universal de Portugal.

Mas não vale a pena corrermos à cata de minúsculos sinais reformistas para o homenagearmos. Basta pensarmos no governo que poderia ter constituído no começo da década de setenta, atendendo aos colaboradores que mobilizou, em certa altura, e aos colaboradores que deveria remobilizar. O posterior sistema político ficaria sem cabeças e até a banca e a vida empresarial recentes, lá teriam deixado semente. Aqui fica a provocação:
•M. Presidência: Francisco Sá Carneiro
•M. Finanças: Manuel Jacinto Nunes
•M. Estrangeiros: Diogo Freitas do Amaral
•M. Interior: Adriano Moreira
•M. Justiça: Afonso Queiró
•M. Defesa: Francisco da Costa Gomes
•M. Ultramar: Veiga Simão
•M. Ilhas: Mota Amaral
•M. Educação: António Alçada Baptista
•M. Assuntos Sociais: M. Lurdes Pintasilgo
•M. Coordenação Económica: João Salgueiro
•M. Indústria: Rogério Martins
•M. Comércio: Xavier Pintado
•M. Agricultura: Mota Campos
•M. Saúde: Baltazar Rebelo de Sousa
•M. Comunicação Social: Francisco Pinto Balsemão

Mar 27

Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso

Com mais quatro horas de fuso, neste começo da manhã na Guanabara, depois de dar a última volta ao texto da minha conferência de amanhã, vou ceder ao impulso lírico que a travessia do oceano moreno me provoca, neste voltar à procura do paraíso, nestes sucessivos sonhos por cumpriri que me dão a espera, a esperança e a esfera do abraço armilar. Assim decidi comemorar o cinquentenário do Tratado de Roma, protestando silenciosamente com a retórica habitual dos discursos de justificação do poder, especialmente quando elas atingem as raias do propagandismo exacerbado. Felizmente que ainda não consideram crime de traição à pátria o não sufragarmos o programa de criação de uma constituição europeia, ou não elogiarmos gongoricamente o nosso comissário em Bruxelas. Atravessando a zona da turbulência, continuo a peregrinar por estes Estados Unidos da Saudade, onde bem gostaria de restaurar o Reino Unido. Porque a curiosidade do vale mais experimentá-lo do que julgá-lo me leva à constante investigação no terreno e no laboratório da história, tal como a angústia me provoca a procura de teorias, neste quase beneditino diarismo que me obriga a pensar para os outros, neste todos os dias me escrever e rescrever, também através deste blogue. Nesta terra onde Lula se pinta de Getúlio Vargas, comparo a diferença que temos, quando a RTP, para comemorar outros cinquenta anos, permitiu que Sua Excelência, o ex-Presidente do Conselho, nos voltasse a zurzir em preto e branco. Porque, até domingo, tudo isso era apenas anormal por ter sido decretado como tal pela literatura de justificação do poder estabelecido. Eu, pelo menos, fiquei feliz por Salazar entrar na moda que passa de moda e ser novo apenas porque o tínhamos esquecido. Quando o nosso politicamente correcto o passa a elogiar, sinto que tenho mais legitimidade para o zurzir, como desabrido opositor até do próprio post-mortem. Mas nada estranho desse quebrar de tabu, quanto ao reconhecimento de um estilo do homem político, dado que o actual momento psicológico da pátria, ao colocar no pódio tal personalidade, tem muitas coincidências com a vaga de fundo que elegeu o actual locatário de Belém, assim elevando a normalidade o profundo desejo de salazarismo democrático que nos enreda. E muitas culpas tem certa historiografia oficiosa dita antifascista, que, até agora, apenas eleogiava do regime defunto certos ministros que eram tios ou patrocinadores académicos dos biógrafos dominantes. É por isso que peregrino em sonho por esta terra feita por muitos portugueses à solta, livres dessa casta capitaleira que continua a controlar o estado a que chegámos. Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso.