É confortável podermos ter acolhimento no seio de um qualquer sistema ideológico capaz de dar sentido ao mundo. Assim foi e continua a ser a vulgata do chamado cristianismo. Assim chegou a ser o marxismo-leninismo até 1989. Assim tentam ser certos neoliberais de importação. Mas o mundo, mesmo o português, de aqui e agora, é demais e muitas zonas da realidade acabam por não se moldar à rigidez do caixilho ideológico com que pretendemos retratar e emoldurar as circunstâncias e os eus. É assim difícil classificar este sub-Bloco Central onde muitos se vão perpetuando em roubalheiras, clientelismos e favoritismos, nesta grande paródia da chamada política à portuguesa, onde é marcante a degenerada feira das vaidades, neste refúgio de interesseirismos onde todos correm para o efémero de um título de semanário de fim de semana, ou com a procura de uma dessas artificiais excitações político-jornalísticas que costumam marcar a chamada “rentrée”. Por mim, não sei bem quem sou e onde estou. Não tenho candidato presidencial, seja Soares, Cavaco, Louçã ou Jerónimo. Apesar de ser monárquico, se hoje houvesse um referendo votava pela república. Continuo a sentir que estou na esquerda da direita, nunca votaria na Zezinha e estou farto dos restos de Partido Popular que por aí ainda gorgulham. Aliás, quando diante de um papel tento olhar dentro de mim, sou palavras de Camões a escrever um Livro do Desassossego, ao ritmo das trovas breves que me transportam para a Praça da Canção. E nestes silêncios da solidão, há sempre a música de Carlos Paredes ou a beleza de um cântico colectivo a movimentar os patuleias que ainda não cederam à Convenção do Gramido e à Quádrupla Aliança, onde nos querem arrebanhar. Gosto de ser um homem livre de mãos livres. Resisto. E sempre que recebo um desses papéis dos impostos, sinto-me desses profundos campónios que, por odiar o Estado, vai logo a uma caixa multibanco para se livrar da coisa e não ter que aturar a papelada que me liga ao monstro. Odeio o aparelho de Estado com todas as forças emotivas da minha alma, mantendo a raiva do velho anarquismo místico e desejando que a nação possa assumir-se comunitariamente sem o recurso aos constitucionalistas e aos aparelhos repressivos desse abstraccionismo piramidal, desse plurissecular despotismo do Leviathan. O problema é que conheço o bicho. Fui licenciado em Direito. Alto burocrata em gabinetes ministeriais e direcções-gerais, sempre classificado como muito bom. Fui professor titulado em direito. Etc. Mas sei cientificamente o que é o poder e pagam-me para o estudar. Por isso me sinto bem longe desse mundo da gestão tecnocrática da coisa pública cá da capital, bem como das excrescências que o mesmo tem produzido com a corrupção autárquica e o caciquismo consequente. Porque são essas alimárias subtecnocráticas que servem de trampolim para o acesso ao poder de perdulários e bandoleiros, para gáudio de patriarcas e padrinhos que vão manejando os cordelinhos do chamado sistema, todos esses maquiavéis de cordel que nos fazem cadáver. Esses donos de tácticas sem estratégia e de discursos sem ideias que conseguem, pela flexibilidade do molusco instrumentalizar a imoralidade neste oportunismo da barganha. E assim nos vamos sucessivamente empobrecendo, sem que passemos a efectiva sociedade aberta, com mais liberdade e mais liberais, em sentido liberdadeiro e tolerante. O que não se consegue com discursos, mas apenas com um efectivo culto de um humanismo activista.