Pedem-me que, em cerca três mil caracteres, observe os três anos do governo de Sócrates, em sistema de maioria absoluta. Apesar de ser o primeiro dos governos do PS que reveste essa natureza, seria mais correcto notarmos que este gabinete só agora é que começa a perder o viço do estado de graça, dado que, por duas vezes teve um recomeço. Primeiro, com a eleição presidencial de Cavaco Silva; segundo, com a presidência do “porreiro pá” e o consequente Tratado do Mar da Palha.
Daí que, por estes dias, tenhamos assistido a manifestações de curiosa esquizofrenia colectiva. Desde os cem mil professores na rua, à resposta da curiosa festa-comício do situacionismo no Porto, essa manifestação de massas das elites apoiantes da governança, com ministros, adjuntos, assessores, directores-gerais, gestores da consultadoria e do “outsourcing” e camionetas de velhotes, em trajo de fim de semana, batendo palmas a si mesmos, mas se notarmos bem, até em termos quantitativos, o evento mobilizou menos gente do que os integrantes da esquadra que levou a corte para o Brasil, em 1807-1808.
Só por estes dias é que, na prática, a teoria passou a ser outra, com a inevitável travessia, não do deserto, mas do ingrato Rubicão da oposição da sociedade civil, quando todos os tacticistas apoiantes do gabinete diziam que, com esta oposição de direita, entre Menezes e Portas, e com esta oposição interna, à Manuel Alegre, potencial presidente da Assembleia da República, ninguém poderia apresentar alternativas.
Por outras palavras, tudo apontaria para que o regime ficasse condenado a Sócrates que, assim, passaria a correr o risco de poder ser uma espécie de coveiro do sistema, um pouco à imagem e semelhança de António Maria da Silva para a Primeira República, e com a vantagem de já ser impossível, em termos técnicos, um qualquer golpe de Estado, vindo da cavalariça e protegido pela sacristia.
Até porque Jerónimo quer manter intacto o museu do neo-realismo. De outra forma, a UNESCO, em nome da defesa da ecologia, tinha que declarar o PCP como património da humanidade. O cunhalismo ortodoxo e as festas do Avante são como o fado, as peregrinações a Fátima ou as marchas populares de Lisboa. Destruí-los seria atentar contra a nossa identidade profunda. E os comunistas portugueses até agradecem a queda do muro e a implosão da URSS. Agora podem ser mesmo comunistas de sonho e voltar a desempenhar as tarefas de voz tribunícia de certas contestações sociais, rivalizando com D. José Policarpo, enquanto Cavaco Silva não fizer o tradicional discurso do 25 de Abril.
Mas pode acontecer um desses normais anormais de uma crise social importada e o belo castelo de cartas da subsidiocracia acabar por não conseguir conter a inevitável época das vacas magras. Se isso não acontecer, a decadência vai continuar por mais anos, dado que os cadáveres adiados sempre conseguiram ir de vitória eleitoral em vitória governamental, até a uma inesperada derrota final.
Sócrates corre o risco de ser uma espécie de coveiro do sistema, dado que se tem vindo a confundir o sistema com o regime, criando-se um modelo onde só há alternância dentro do bloqueio central da partidocracia, não havendo as alternativas necessárias, nomeadamente a alteração dos partidos, como fizerem, na última década, todos os nossos imediatos vizinhos territoriais e económicos da Europa Ocidental.
Podemos vir a ter uma espécie de democracia sem povo, dado que todos os militantes activos de todos os partidos nem metade dos professores manifestantes conseguiriam mobilizar. Não assumem que vivem um situacionismo de bonzos, canhotos e endireitas com sinais inequívocos de amplas zonas de ditadura da incompetência, como se dizia no crepúsculo da Primeira República, mas onde também já não há a saída da mudança de regime. Estamos entupidos, sem saídas para as colónias, como aconteceu nos tempos do regicídio ou do 5 de Outubro, ou com novo encontro com o D. Sebastião da integração europeia, como sucedeu depois de 1974.
Isto é, temos de viver com aquilo que temos e não sabemos organizar o trabalho nacional pela meritocracia e pela justiça de tratar o desigual, desigualmente. E Sócrates, Menezes e Portas não são causas. São meras consequências que deveriam ser tratados como sintomas para a urgente regeneração de uma política, onde a maioria dos factores de poder já nem são nacionais.