Out 23

Contra esse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira

A verdadeira mãe da república do sol nascente é a Justiça. Porque foi pelo Direito que os timorenses conseguiram vencer a força. Por outras palavras, a independência conquistada é o resultado da aplicação dos princípios do Estado de Direito universal, tal como delineado por Kant em 1795, no seu folheto dito sobre a paz perpétua e que alguns ainda não conseguem vislumbrar como projecto de protecção dos mais fracos contra a violência dos mais fortes que querem ser potências. Por outras palavras, só pelo Direito podemos enfrentar a lei da selva dos Estados-Lobos-dos-Estados e evitar que, neste oceano da globalização, os peixes grandes comam os pequenos.

 

Não diremos, como alguns nostálgicos do socialismo estatista, que a presente crise exige mais regulação leviatânica. Diremos, como liberal que continuamos a ser, que a crise desta anarquia predadora precisa de um Estado de Direito universal, que ela precisa não de uma federação de potências estatizantes, com o consequente facto da hierarquia das forças, mas de uma república universal, que, segundo Kant e Arendt, sempre foi o exacto contrário do Estado universal. Só assim nos livraremos da presente “animal farm”, onde os Estados são todos iguais, mas há alguns desses animais que são mais iguais do que outros, promovendo um neofeudalismo nesta anarquia ordenada, com a consequente governança sem governo de uma pilotagem automática a que chamam globalização.

 

Mesmo as boas intenções onusianas de governança global podem cair na teia de uma intrincada burocracia, desse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira, e assumir a imagem de uma vasta rede de aparelhos que se instala, como fortaleza exterior, num qualquer território, com as suas tendas de ar condicionado semeando, pelos pretensos desertos do vazio de política, a cartilha do “nation building” e do “state building”. Porque se não atenderem às raízes das identidades dos vários povos, tais aparelhos podem assumir uma feição neocolonialista, mesmo que assumam a bandeira do anticolonialismo. Já conheci alguns destes agentes lá pelas Lisboas, sempre em turismo de comissão em comissão, vendendo um qualquer subproduto ianque de exportação, e, por cá, apenas posso fazer as observações permitidas pelas cláusulas do meu contrato de agente de cooperação do Estado português, coisa que não me impede a liberdade académica, o universalismo e até um mínimo de patriotismo científico.

 

Apenas assinalo que, por cá há muitos amadores desse ensaísmo de certos conceitos abstractos, assentes nos tais “compounds” e que raramente ousam colocar os pés no tal caminho que se faz caminhando e onde é preciso dar tempo ao tempo. Não há boa ideia de república universal que resista a sacristães, sargentos e cipaios verbeteiros. Colonialismo não é apenas o chicote de capataz, mas também o engraxar das botarras do feitor, com alguns intelectuais caindo da tripeça, numa qualquer escola de passarinhos, que se julgam importantes só porque têm mobília de pau preto e secretários a quem ditam actas que ninguém vai ler. Há pesos mortos de atavismos plurisseculares, marcados pelo regime dos irmãos inimigos que continuam a asfixiar muitos sonhos.

 

Por mim, prefiro ir além do saber do fazer e do próprio saber-agir e continuar a procurar o saber pelo saber da velha Sofia, com muita Prudência e imensa Arte, ou Técnica. Há sempre o “consenso dos que pensam de forma racional e justa”. Porque o homem tende para o infinito sempre que se descobre finito e sabe que a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza. Por isso, ontem mesmo, lancei o primeiro blogue de turma, aqui na UNTL, dito “pensar direito”.

Out 23

O gnosticismo desenvolvimentista, a concepção ferroviária da história, o pronto-a-vestir e de como as caricaturas de Descartes enjoam em Timor

Por estas ruas, praças, corredores e salões, muitas vezes me recordo das teses de Clifford Geertz (1926-2006), o autor de Peddlers and Princes, de 1963, e de Negara. The Theatre State in Nineteenth Century Bali, de 1980, onde criticou alguns exagerados ideologismos provindos da concepção weberiana de Estado, os tais que reduzem o político ao monopólio da violência legítima e consideram a dimensão simbólica da política como mero aspecto lateral. Ora acontece que a política é sempre um trabalho simbólico, onde são fundamentais as teatralizações, as cerimónias e os rituais, pelo que existe uma concepção política oculta que marca o centro político de qualquer sociedade organizada de forma complexa. Porque há, sucessivamente, uma elite na governança e um conjunto de formas simbólicas que exprimem o facto de ser aquela que na verdade governa, através de inúmeros sinais de ostentação de poder que marcam o centro. Porque a política é a arena onde se manifestam de forma mais clara as estruturas da cultura, isto é, o conjunto das estruturas de significação pelas quais os homens dão uma forma à sua experiência.

 

Infelizmente, não me parece que, com tanto enviados pela governação global para estes territórios, tenha havido o cuidado em prepará-los em matérias de antropologia básica, ou até de simples cultura geral. O gnosticismo desenvolvimentista da concepção ferroviária da história continua a querer obrigar muitos povos a um percurso tipo pronto-a-vestir, decretando-os como não desenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, e condenando-os a percorrer as mesmas linhas e as mesmas estações que outros já abandonaram. Talvez para lhes poderem vender equipamentos mentais obsoletos ou muito pessoal em via de inetegração no quadro de excedentes.

 

 

 

 

 

 

 

Aqui, onde há fortes afectos de identidade nacional e radicadas sementes comunitárias, o modelo de “state building”, que a super-estrutura da governação global está a disseminar sem ordenamento, tem muitos segmentos de traduções em calão de manuais de aparelhos de poder, importados dos grandes centros comerciais da consultadoria internacional. É por isso que me sinto feliz por não ser um desses peritos de grande-hotel em missões de “copy and paste”, tal como já não tenho idade para voltar a ser assistente universitário à procura de primitivos actuais para uma tese de mestrado ou de doutoramento. Por isso compreendo bem como alguns bispos cá da ilha, em tom metafórico, trataram de denunciar certas caricaturas de Descartes que querem modernizar Timor à força de abstracções. E admiro cada vez mais o Professor José Mattoso. Que não veio para cá em videoconferência…

 

 

 

Bastava que todos estes agentes da governação global atendessem a pequenos estudos sobre a simbólica da política, da religião e do direito, que assumissem a humildade de largar certo capacete neocolonial, usado por tantos pretensos benfeitores internacionais à procura de ficha curricular. Acredito que os timorenses não vão enfiar algumas destas carapuças, porque o verniz estaladiço quebraria no “day after” ao do embarque desses profissionais dos reformismos tecnocráticos. Por mim, apenas me sinto feliz por aqui estar a ensinar e aprender coisas filosofantes das “artes bona”, pouco mensuráveis pelas lupas que apenas procuram utilidades.