Out 09

São Keynes, São Cavaco, São Soares, São Vasco Gonçalves, São Oliveira Salazar, São Afonso Costa, São Fontes Pereira de Melo e São Sebastião José

Dizem que ontem, em pleno Parlamento, foi anunciado o regresso do Estado, que é essa coisa com três elementos, um povo, um território e um governo, visando três fins, a justiça, a segurança e o bem estar, um senhor abstracto cujo nome de baptismo lhe foi dado por Maquiavel, para, cerca de meio século depois, Bodin lhe atribuir o conceito criador de soberania. Os políticos, socialistas, sociais-democratas, esquerdistas, ou direitistas não liberais, invocando São Keynes, São Cavaco, São Soares, São Vasco Gonçalves, São Oliveira Salazar, São Afonso Costa, São Fontes Pereira de Melo e São Sebastião José de Carvalho e Melo, percebem que a dita coisa é uma espécie de jangada empedrada que lhes vai dar a descoberta do caminho marítimo para o mais do mesmo da garantia dos depósitos bancários.

 

Ontem, também por acaso, encontrei-me várias vezes com o dito senhor Estado, aqui na esquina da Rua da Junqueira, enquanto esperava o carteiro e um aviso de recepção com floreados envolvendo a armilar e as quinas da batalha de Ourique, por causa da multa de uma qualquer EMEL. Reparei, da varanda, que o Palácio de Belém já não está aberto ao público. A Joana Vasconcelos transformou a bandeira em rendinhas e, nos acasos da continuidade, o senhor Estado vestiu-se daquilo que sempre foi: o intendente. O tal Pina da Silva Pais Manique que se passou do pombalismo para a viradeira, da viradeira para o vintismo, do vintismo para o miguelismo, do miguelismo para o devorismo, do devorismo para o cabralismo, do cabralismo para a canalhocracia, da canalhocracia para o rotativismo, do rotativismo para o bonzismo das formigas, etc…

 

O intendente, celebrizado pelo massacre do povo da Trafaria, onde ganhou medalha de estadão antes de fundar a Casa dita Pia, continua a confundir o serviço também dito público com o espectáculo dos autos de fé, mesmo quando os transformou no palanque de execução dos Távoras e do chão salgado do secretariado da propaganda já não nacional. A inquisição poderá ter acabado, mas os inquisidores e bufos foram reciclados, nacionalizados, nossos, transformados à pressa em agentes gnósticos do reformismo da cunha. Por outras palavras, são os mesmos de sempre que fazem que o Estado seja um eles-que-não-nós, porque todos os animais são iguais, embora haja alguns que são filhos e outros que são de pai incógnito.

 

Como continuo liberalmente rebelde, acho que este modelo de Estado nunca conseguirá rimar com a Razão, por mais que se esforcem os constitucionalistas, os conselheiros e os frequentadores dos seminários estaduais do laicismo da juricidade. Aquele Estado a que chegámos, pequeno demais para os grandes problemas do nosso tempo e grande demais para esmagar a solidão individual de um simples cidadão, tem muita banha e pouca massa muscular, ossos descalcificados e quase nenhuma massa encefálica. Os nervos estão esfrangalhados e os olhos estrábicos. Por outras palavras, nem sequer é um monstro. Não passa de um molusco sem espinha, embaciado pelo vinhedo do pós-devoriosmo, com uma cabecinha de réptil, enliguada em barbichas de mandarim, que rimam e até são verdade.

 

 

Há décadas que o coloquei como meu objecto de estudo. Ele foi o tema da minha dissertação de doutoramento, nos finais dos anos oitenta do século passado, e até chamei, ao estudo, “ensaio sobre o problema do Estado”, onde fui tentando enumerar os subsolos de ideias que iam da “razão de Estado” ao “Estado Razão”, entre a realidade da “aldeia” e o sonho da “república universal”. Há, pelo menos, uma realidade que detectei: hoje e aqui, sobre cada cidadão, já não há apenas a pedra bruta de um Estado, mas vários calhaus estadualmente não polidos nem civilizados, mesmo que alguns não tenham esse nome. E todos, e cada um dos indivíduos, vivem nas teias, eventualmente libertadoras, dessa pluralidade de pertenças. O Estado a que chegámos na República dita Portuguesa é, talvez, o menos eficaz de todos esses variados Estados que actuam neste território já sem fronteiras e sobre este povo de emigrantes e imigrantes, sobre os quais várias governanças sem governo se vão chocando, entre cavacos, sócrates, barrosos, trichets e bushes. Mestre Kant deu-nos o rumo. Só uma efectiva ideia de república universal, isto é, um global Estado de Direito, pode salvar as pátrias, sobretudo as pequenas, partindo pedras, polindo e civilizando, em nome da boa razão que nunca pode ser lei.

 

É esta a regulação iluminadora que falta, para nos livramos da selva de Estados, Estadões e Estadinhos feitos lobos de um Leviathan globalizador e clandestino. É por isso que continuo a ser fiel ao movimento liberal de sempre, o tal que teve a ousadia de transformar a coisa de Maquiavel nesse “rule of law”, onde “law” não é lei, mas direito, e onde “rule” não é império, mas norma, régua e esquadro, a tal linha recta que apenas tentamos desenhar numa folha branca de sonhos, mas que a nossa imperfeição humana faz sempre torta. Que dos tortos não reze a História.

Out 08

Está a chover, só posso dizer que está a chover, que muitas cousas ausentes se fizeram tão presentes como se nunca passaram

Hoje choveu e o dia ficou mais cinzento, mesmo depois de vir sol. Continua a chover. E fica a metáfora, à boa maneira de tempos que não passaram. O sol pode não nascer de novo. Mas há luz cá dentro. Resisto. Leio Luís Vaz. Estou condenado a desfazer a mochila e talvez ainda possa transcrever parte do poema. Acredito que a poesia é mais verdadeira do que a história, conforme me ensinou outro mestre, o que acreditava na ideia de Atenas, mesmo depois de Atenas decretar que sabia mais do que aquele que só sabia que nada sabia.

 

Sôbolos rios que vão

por Babilónia m’achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado:

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.

 

Ali, lembranças contentes

n’alma se representaram,

e minhas cousas ausentes

se fizeram tão presentes

como se nunca passaram.

Ali, depois de acordado,

co rosto banhado em água,

deste sonho imaginado,

vi que todo o bem passado

não é gosto, mas é mágoa.

 

E vi que todos os danos

se causavam das mudanças,

e as mudanças dos anos;

onde vi quantos enganos

faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem

quão pouco espaço que dura,

o mal quão depressa vem,

e quão triste estado tem

quem se fia da ventura.

 

Vi aquilo que mais val

que então se entende milhor

quando mais perdido for;

vi o bem suceder mal,

e o mal muito pior.

E vi com muito trabalho

comprar arrependimento;

vi nenhum contentamento;

e vejo-me a mim, que espalho

tristes palavras ao vento.

Out 07

Estes partidos de Estado, privatizados pelo financiamento partidário, são o espelho do Estado a que chegámos

Continuo preparando a mochila de peregrino, esquecendo as desventuras que a condicionaram e mergulhando nos pormenores de fichas e números que me marcam como cidadão e funcionário público. Ainda assim, aceitei repto do Rádio Clube Português, para comentar os números da militância partidária em Portugal, repetindo a minha perspectiva desta partidocracia, instituída, de cima para baixo, a partir dos lugares do governo provisório e do Conselho de Estado de 1974. Apenas confirmo que somos o sistema partidário mais rígido da Europa Ocidental, com um partido-sistema, rotativo, onde entram o PS e o PSD, os quais reforçaram o seu predomínio com a integração europeia, dado que as duas faces do Bloco Central também se assumem como secções domésticas das duas principais multinacionais partidárias da Europa.

 

Ambos são partidos catch all, assumindo com eficácia a respectiva feição de federações de grupos de interesses e de grupos de pressão, com a consequente função de grandes angariadores de cunhas e colocações preferenciais na mesa do orçamento, ao mesmo tempo que se modernizaram pelas técnicas da grande engenharia subsidiocrática, naquela plataforma de um centrão que consegue misturar a esquerda moderna com o negocismo da direita dos interesses. O PSD é maioritário, confirmando-se que federa cerca de metade dos filiados nacionais em partidos e assumindo-se, cada vez mais, como um arquipélago feito de muitas militâncias localizadas, onde são mais dinâmicos os influentes locais e regionais, a que, normalmente, damos o nome castelhano de caciques, pelo que aparece, em muitos casos, um PSD especializado, do partido da Madeira, ao partido de Gaia, agora que os de Gondomar e Oeiras estão em hibernação.

 

Já o PS é menos um partido de militantes, como no tempo de Soares, com as suas peixeiras e pescadores da Nazaré ou de Buarcos. Adquiriu a dinâmica guterrista dos estados gerais, revista pelas novas fronteiras de Sócrates, onde surgem cerimónias de recrutamento de independentes e métodos de reciclagem de ex-comunistas e radicais de esquerda que costumam entrar no PS pela via governamental. Quanto ao PCP, herdeiro da tradição de ordem religioso-militar, como o definia Agostinho da Silva, tem uma dimensão metapartidária, com os seus mártires, a sua cultura e até a sua moral, bem como o pragmatismo das correias de transmisão, dos sindicais aos verdes.

 

A única novidade que alterou a herança do governo provisório tem a ver com a integração no sistema da esquerda revolucionária, crítica do defunto sovietismo, a que se dá o nome de Bloco de Esquerda, agora reconhecido até pelo PCP, para uma eventual futura aliança. Finalmente, o CDS, tão catch all quanto o PS e o PSD, apenas diverge pela fraca dimensão eleitoral, mas não pela natureza. Daí que se assuma como charneira e muleta, desde os governos de Freitas com Soares, de Freitas com Sá Carneiro e de Portas com Barroso e com Santana. Aliás, Freitas sem CDS foi ministro de Sócrates e Portas pode ser futuro coligado do próximo PS, ou do próximo PSD. Isto é, pode ter futuro.

 

Por outras palavras, estes partidos de Estado, privatizados pelo financiamento partidário, são o espelho do Estado a que chegámos. Precisavam de um valentíssima e reverendíssima reforma, para não se confundir a partidocracia com a democracia. Só que, desconfio que eles se queiram auto-reformar. Durante alguns meses, vou, felizmente, vê-los de bem longe…

Out 06

De mal com os jacobinos, por amor do rei, de mal com os neomonárquicos, por amor da república…

Pediram-me que fosse ao programa da Paula Moura Pinheiro, analisar, com serenidade, o comemorativismo do cinco de Outubro. Não se tratava de um comício de neomonárquicos contra neojacobinos, utilizando dezasseis anos de sofrimento histórico, para literatura de justificação de posições políticas que tomamos, quase cem anos depois, mas de um exercício académico, onde o Fernando Rosas não era o deputado do Bloco de Esquerda e eu, um seu adversário. E dialogámos, porque, para haver diálogo, há que ter lugares comuns. E encontrámo-los. E ainda bem. Logo, antes de o fazer já o sabia. Iria ficar de mal com os jacobinos por ser manuelino e, de mal com os neomonárquicos, por ser um republicano monárquico, adepto do regime misto.

 

Quando acentuei o patriotismo, como marca estruturante da república, apenas traduzi aquilo que é fundacional na minha concepção do mundo e da vida: o nacionalismo místico, o tal que vai de Pascoaes a Pessoa e chega a Agostinho da Silva. Porque há subsolos filosóficos que vão para além de hemiplegias, do tipo monárquico contra republicano, ou de direita contra a esquerda. Por mim, filho da Renascença Portuguesa, apenas teria que ser justo, pensando até na autenticidade daqueles republicanos das campanhas de África e da Flandres que se ofereceram como voluntários, largando altos lugares de deputado ou de professor, assim mostrando como viviam de acordo com um pensamento. Estou, por exemplo, a pensar em Jaime Cortesão.

 

Penso também no esforço de homens como Norton de Matos, herdeiro das concepções africanistas de Paiva Couceiro, o paladino, um dos primeiros exilados do salazarismo, nessa frustrada procura de um Novo Portugal. E não poderia deixar de reconhecer que, contra o crime que foi o Acto Colonial do salazarismo, houve sucessivas gerações de monárquicos e republicanos que se coligaram contra o autoritarismo, em nome da restauração da democracia semeada pela revolução monárquica de 1820. Não estranho que possam vir, dos neomonárquicos dos dias que passam, as habituais diatribes. São parecidas às que sofreram os convictos defensores do regime derrubado em 5 de Outubro de 1910 quando a corrente dominante entre os monárquicos dos anos vinte passou a denegrir a tradição regeneradora, vintista e cartista…

Out 06

Para a semana, do Oriente, terei a luz do nascer do sol…

Telefonaram há bocado. Já tenho guia de marcha. Para a semana, do Oriente, terei a luz do nascer do sol. Porque Deus quis, porque o homem sonha, porque a obra pode nascer. A procura do direito à felicidade obriga ao nascer de novo, todos os dias. No bornal, já coloquei as impressões de viagem, postas em rimas, de mestre Luís, morto em 10 de Junho, de há quatro séculos e um quarto, o tal que bem conheceu os Jaus…

Out 03

A celestial mobilização dos amanhãs que cantam e dos portáteis a pataco

Hoje, há boas notícias para a governança socrática. A Microsoft vai fazer um programa especial para o “Magallanes” e as sondagens dão o PSD a descer e o PS a ter novo vislumbre de maioria absoluta, dado que diminuíram as preferências pelos comunistas e pelos herdeiros da esquerda revolucionária. O partido Linux que se lixe, com esta ajuda do Chávez ao Bill Gaitas! A própria crise financeira internacional, desde que devidamente embrulhada na propaganda, pode servir às mil maravilhas para uma sopa de pedra discursiva que transforme Sócrates num oásis ideológico e num grande homem do leme no “tablet” comunicativo dos PDA, que, com Maria de Lurdes Rodrigues, à direita, e Mariano Gago, à esquerda, entoe a celestial mobilização dos amanhãs que cantam e dos portáteis a pataco. Aliás, basta repararmos como está a ser driblado o processo da legalização do casamento dos homossexuais, desde a desastrada primeira entrevista de Manuela Ferreira Leite sobre a matéria, a que Sócrates logo respondeu com farpas progressistas de bastante mau gosto, para que, agora, Sócrates imponha disciplina de voto aos seus deputados, colocando-se ao lado de Manuela que, pelo contrário, dá liberdade de voto aos respectivos parlamentares.

 

Por estas e por outras é que milhares de portugueses continuarão no ostracismo jurídico e sem adequada protecção, ao contrário do que acontece noutros países europeus, da França ao Reino Unido. Por cá,  não são apenas os homossexuais que ficam sem direito a um adequado contrato que não não deveria ter o nome do matrimónio do direito romano e do direito canónico, nem daquilo que o lóbi LGT exige. A realidade das actuais relações interpessoais e familiares  impõe algo mais do que a presente cobertura jurídica das uniões de facto, exigindo a consequente pluralidade de modelos. E o mal talvez esteja no actual regime de transcrição dos casamentos católicos, herdado do salazarismo, dado que esta última instituição, dotada de um ordenamento jurídico próprio, secularmente consolidado, não depende, de maneira nenhuma, das actuais discussões dos parlamentares portugueses. Porque não está acima nem abaixo do Estado português, está ao lado, tendo resolvido o problema com a nossa república através de um tratado internacional, a que damos o nome de concordata. Seria ingénuo pensarmos que a Igreja Católica treme com o sentido de voto do PS e do PSD ou que um qualquer grupo de pressão de minorias sociais a consegue derrubar. Por mim, preferiria que os católicos, como povo de Deus, fossem respeitados na sua autonomia, ao mesmo tempo que, eliminada a confusão, não impusessem a suas concepções num espaço público que pode, perfeitamente, viver em regime de pluralidade de pertenças. Seria quase a mesma coisa do que pôr a assembleia da república a alterar as regras de fora de jogo no futebol…

 

Se as grandes religiões universais têm capacidade negocial desta monta, seria útil que todas as outras relações sociais do género e entre géneros, incluindo as e os minoritários, pudessem receber cobertura estadual, transformando-as em relações jurídicas. Mas nunca pela uniformização de regimes, através de um unidimensional casamento civil, imposto pelo rolo compressor da lei estadual. Só o reconhecimento do pluralismo contratual consegue superar o impasse, desde que seja consagrada a multiplicidade de designações e de regimes internos. Nunca um casamento entre homossexuais entra no conceito romano ou canónico de casamento, da mesma forma como também seria difícil de integrar no mesmo conceito a poligamia, admitida por grandes religiões. Mas, se esta última tem, entre nós, e bem, uma cláusula de ordem pública proibitiva, não me parece que os actuais valores dominantes atribuam a mesma sanha relativamente às variadas formas de união entre homossexuais. Logo, como liberal, sou plenamente a favor de, nestes domínios, haver mais sociedade e menos Estado, para que o direito não se afaste da vida.

 

É evidente que a posição de Sócrates e de Manuela sobre o casamento dos homossexuais é bem reveladora de um jogo eleitoralista. O chefe do partido do governo, que afrontou a hierarquia católica na questão da interrupção voluntária da gravidez e não lhe cedeu no caso do divórcio, não avança no terceiro confronto, à semelhança de Zapatero, para não dar um trunfo importante ao PSD, até porque as sondagens revelam que a preferência de vinte por cento dos portugueses pelo PCP e pelo BE já não é o que era. Por outras palavras, o PS, por estes dias, pode respirar de alívio e tentar receber um novo fôlego, assim a ilusão de oásis continue, o preço do petróleo baixe e as medidas norte-americanas contenham os estilhaços. O partido dos bonzos, um quarto de hora antes do 28 de Maio de 1926, também conseguiu vencer as eleições aos endireitas e canhotos que eram feitos do mesmo material não regenerado. Aliás, os homossexuais são uma minoria sociológica que não ganha eleições e sempre podem ser driblados com a promessa de que para a próxima é que vai ser…

 

Apenas esperamos que a experiência da procura da partícula de Deus volte a dar novo alento ao nosso catedrático de física das partículas, o tal que nos comanda as universidades e a investigação científica, embora muitos outros preferissem que ele largasse o governo e, seguindo o exemplo de Durão, Guterres e Sampaio, assumisse a direcção do CERN, dado que não parece ter títulos para ir comandar a oficina matosinhense onde se fabricam os “magallanes”, os tais que, mesmo quando atirados ao chão pelo Hugo Chávez, não quebram nem dobram…

 

PS: A imagem supra não foi obtida pelos nossos caixeiros viajantes do Magalhães. O portátil do guerrilheiro é bem mais sofisticado, embora não chegue aos calcanhares daquele que usam os fanáticos do Bin Laden. Estes mercados estão trancados …

Out 02

Viajando pelas brumas da memória

Passo os olhos pelas parangonas jornalísticas, no silêncio da madrugada, antes de continuar meu beneditino trabalho que, em breve, será lançado na net, para uso dos estudantes e do público em geral, sem qualquer subsídio público ou de escola, dado que as despesas do domínio saem do meu próprio bolso, para não ter que entrar no leilão das dependências feudais e noutras garras eventualmente condicionadoras e até proibitivas da liberdade de pensamento, enquanto espero na espera dos dilatórios, para poder cumprir o que julgo minha missão ao serviço de uma ideia de obra. Reparo que a Drª Manuela foi a Belém consultar Cavaco sobre o Kosovo, quando lhe bastava ouvir um dos portugueses que mais sabe sobre matérias de relações internacionais ao vivo, o deputado do PSD Mário David. Também noto que outro deputado, internacionalmente actualizadíssimo, o PS João Soares, em vez de ser requisitado sobre a matéria, tem que diluir-se na questão das ricas casinhas para pobrezinhos lisboetas, quando podia proclamar que tem o mesmo senhorio que eu próprio, assim assumindo a honrosa posição de arrendatário de privadíssimas companhias da velha Lisboa, desmentindo, pela prática, o preconceito dos que, podendo partir e repartir, costumam ficar com a melhor parte. Aliás, o modelo de vida do João leva-me a não ter qualquer dúvida sobre as respectivas palavras, quando, agora, confessa que não entrou no leilão da repartição feudal. Mas outra é a revolta que me surge, especialmente quando alguns, mesmo que não tenham ficado com nada, a usaram para prosseguir o método de Guizot, fomentando o devorismo dos colaboradores e usando dos bens públicos para a compra do colaboracionismo de adversários e dissidentes.

 

Entretanto, vou mentalmente preparando a minha gravação, mais logo, no programa de Paula Moura Pinheiro sobre o Cinco de Outubro, para o qual tive a honra de ser convidado, quando noto que, sobre a I República, continuamos a viver segundo o retroactivo ritmo da guerra civil fria de ideologias enlatadas, que fingem inserir-se em disputas historiográficas. Por mim, que já escrevi quase todas as frases que tenho disponíveis sobre a matéria, apenas me apetece respeitar os meus egrégios avós, onde havia, como em quase todos os que têm memória, um que era monárquico e outro que era era republicano e onde o republicano tentava voltar a ser vintista e setembrista, mas acabando por fragmentar-se em facciosismos, sem conseguir o objectivo da regeneração, a tal emergência não alcançada desde 1820 e que deveria  evitar que a honra da tradição escapasse às teias da reacção, e que alguma inteligência da revolução fugisse da estupidez das pós-revoluções, dos adesivos e dos viracasaquistas.

 

Por isso, em vez de reler pormenores da micropolítica das frustrações, prefiro assumir, por dentro, em compreensão, os testemunhos de vida de um Teixeira de Pascoaes, de um Jaime Cortesão ou de um António José de Almeida, esses vencidos da vida que nos deram alento para a religião secular da pátria. E aqui fica uma esquecida chapa de homenagem ao soldado desconhecido no mosteiro da Batalha, onde o ilustre presidente de Portugal aparece ao lado do senhor bispo de Leiria, respeitando o soldado e o discurso fundador da democracia que remonta a Péricles… Ah! Usei a imagem do arquivo fotográfico da autarquia lisbonense, disponível na net, também para homenagear o vereador da cultura que, quase silenciosamente, lhe deu o impulso de obra feita: o João Soares.

Out 01

Entre a fome das assoalhadas e a manutenção da canalhocracia

A grande crise aí está, ainda de contornos indefinidos, porque pode rebentar em qualquer dos cantinhos desta rede de participações invisíveis e já é não passível de detecção pelas habituais teorias da conspiração. Nem sequer pode ser contida pela exportação de magallanes para a Venezuela, embora acabe por ser ofuscada por esta discussão sobre o sexo dos anjos quanto à lista de famosos que está entre as 3 200 casas para pobrezinhos que os grandes autarcas lisbonenses ofereceram a companheiros de partido, à direita, ao centro e à esquerda. Julgo que não vale a pena fazermos comentários, dado que os muitíssimos portugueses que são servos da gleba hipotecária, só porque gastam mais de um terço do respectivo vencimento no tal empréstimo que fizeram para a compra da casita, viram assim, bem reforçado, o seu nível de confiança nos políticos, nos autarcas e nos partidos que serviram de intermediários para tal moralidade do sapateiro de Braga. Porque só comeram alguns e perdemos todos. Aliás, só ao ler o JN de hoje é que percebi certos apoios a certas movimentações políticas de falecidos políticos quanto a certos congressos partidários bem anteriores à queda do muro de Berlim, quando já se compravam opositores, com aquilo que os comprados qualificam como a minha rica casinha.

 

A falta de autenticidade do poder, isto é, a distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica, atingiu assim o nível da tragicomédia, confirmando a hipocrisia de um sistema pantanoso que ocupou o regime democrático. A nenhuma vergonha poderia continuar a desfilar face a manifestos casos de persiganga que, por enquanto, sou obrigado a ocultar, onde tão culpados são os protagonistas da vindicta, detentores do poder, como os acompanhantes da procissão que os não denunciam, para poderem obter um qualquer naco que escorra da mesma mesa do orçamento.

 

Ao menos, na Primeira República, tudo se fazia em evidente legalidade, dado que a lista dos beneficiários, ditos revolucionários, era publicada no “Diário do Governo”, saindo a última já depois do 28 de Maio de 1926, quando era chefe de governo Mendes Cabeçadas. Também a monarquia liberal, na fase de presúria, em pleno devorismo, utilizava a técnica denunciada por Garrett sobre o “foge, cão, que te fazem barão… mas para onde, se me fazem visconde?”. Mas, logo em Setembro de 1836, com Passos Manuel, Sá da Bandeira e Vieira de Castro, a moralidade fez um golpe de Estado sem efusão de sangue, para poder cumprir-se a Regeneração. E quando a pouca vergonha se instalou com o cabralismo, até se recorreu à guerra civil, à maria da fonte, à patuleia e à carbonária. Nem sequer faltou um rei, como D. Pedro V, que demitiu o governo que ele qualificou da “canalhocracia”.

 

O mesmo atavismo canalhocrático permanece. Chamou-se adesivismo depois do 5 de Outubro. Chamou-se viracasaquismo depois do 28 de Maio. É isto depois do 25 de Abril. E só algumas décadas depois é que os contornos do devorismo começam a ser revelados, assim se confirmando como grande parte dos actuais problemas políticos tem a ver com a fome das assoalhadas. Outros contornos poderão ser revelados dentro de alguns meses, quando a base de dados das vindictas atingir a mesa dos jornalistas de investigação. Porque há histórias de grande recorte humanístico que poderão enlamear pretensas figuras morais da pátria que, apesar de parecerem gigantes, têm pés de barro feitos por gaioleiros, viúvas e campos de futebol, com trocas e baldrocas de vereadores, silêncios e legalíssimas decisões, onde se poderão compreender súbitas viragens da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda, confirmadas pela secção de rendimentos vindas do público e confirmadas pelos registos do IRS.

 

Aliás, julgo que uma das medidas da chamada “glasnot” poderia passar pela afixação das declarações de IRS emitidas pelos serviços públicos nos mesmos serviços públicos onde certas personalidades são dirigentes. Para que eles não fiquem apenas sob vigilância do chefe de repartição e das bocas que o mesmo emite no bar. Outra forma seria copiarmos as grandes campanhas eleitorais norte-americanas com a edição “on line” dos donativos. O nosso atavismo devorista e canalhocrático, que caiu nas teias da fome de assoalhadas e nas manobras dos gaioleiros e dos patos bravos, bem precisava de uma Revolução de Setembro para a remoção do devorismo, a fim de evitarmos a eventual Patuleia. Resta saber se quando o partido regenerador colaborar no processo, pela criação, tal como em 1848, da própria carbonária, ainda haverá pedaços do corpo da pátria para salvar. Porque a democracia pode cair teias da canalhocracia, do devorismo, do adesivismo, do viracaquismo e o consequente latrocínio pode transformá-la numa bandocracia.

 

PS: Ainda ontem, num júri da Universidade de Coimbra, um desses grandes catedráticos que ainda é um paradigma de catedrático, invocava o tempo perdido das escolas como detentoras de uma certa moral. É evidente que logo confirmou que falava no pretérito. Quando ainda havia catedráticos como ele, que, pelo exemplo, emitiam máximas universais e quando havia colegas irmanados no mesmo imperativo categórico e quando havia escolas que tinham ideias de obra, regras de processo consensualizadas e manifestações de comunhão entre os seus membros, conforme a definição de instituição consagrada por Maurice Hauriou. Sorri por dentro, sem testemunhar os serôdios mecanismos de destruição das ideias de obra, da comunhão pelas coisas que se amam e pelas regras do mínimo jurídico, as que põem a justiça acima do direito, o direito acima da lei, a lei acima do regulamento e o regulamento acima do despacho. Mesmo depois de morto, quero que digam, de mim, que vivi como pensei.