a poesia é mais verdadeira do que a história

Por mais livros sobre pretéritos imperfeitos, mais confirmo que a poesia é mais verdadeira do que a história. Do ano de todos os fins dos princípios e de todos os princípios dos fins, entre a guerra dita fria, a revolução em Lisboa e os desembarques Timorenses (um, nove, sete, cinco), já foram escritas todas as frases sobre atribuição e passa culpas, já foram preenchidas todas as fichas da chamada teoria da conspiração, e já foram contabilizados os duzentos mil mortos resultantes de erradas teorias de relações internacionais. Todos conhecemos os tristes meandros de uma ditadura, de uma revolução e de uma ocupação, permitidas e fomentadas pelas higiénicas teses do pretenso realismo político e do seu irmão-inimigo da utopia. Todos sabemos como se disfarçam os maquiavélicos defensores da liberdade, bem como os assassinos que lavam o sangue com os amanhãs que cantam. Até já vi alguns que chefiaram a PIDE teorizarem sobre o humanismo, só porque libertaram da morte e da prisão alguns que os seus lacaios para tal enfileiraram… Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  Importa mais notar que tanto Timorenses como portugueses, neste virar do milénio, procuraram expiar as suas culpas, provocadas por potências que nos fizeram agentes de guerras por procuração. Por isso, vou pesquisando a política da ilha do jacaré, notando como ela aqui é condenada a ter várias dimensões. Não apenas a da face visível do poder, como a que Geertz estudou na teatrocracia de Bali. Não apenas a da face invisível do mesmo poder, para uso de militares e adidos de segurança, sentados nos sofás do Hotel Timor, antes de partirem para os seus “briefings” nos “compounds” do ar condicionado, com metralhadora à ilharga, por causa das ajudas de custo. Mas, sobretudo, a de outras dimensões, mais fora do que é captável, como as que Ruy Cinatti nos ensinou. Como a que os bons padres e bons irmãos semeiam. Como aquela que está mais próxima da realidade. Como aquela que implica crescer para cima e crescer por dentro. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  Limpemo-nos da hiperinformação  com que nos tentam emprenhar de ouvida os muitos fazedores de literatura de justificação e de memorialismo. Desde os revolucionários frustrados, aos colonizadores que fugiram. Bem como dos agentes dos poderes estabelecidos que fomentam teses situacionistas ou oposicionistas. Aqui e aí, em qualquer lado. Como português à solta, de mal com os poderes estabelecidos por amor da liberdade, apenas me orgulho de as nossas presenças, nestas bandas, terem sido sempre extremamente ténues, na maior parte das vezes, como subdelegação de poderes vindos de Malaca, de Goa ou e de Macau. Mesmo o governador só aqui chegou no século XVIII, permitindo que os abstractos representantes do Estado fossem dominicanos, de vez em quando acirrados e importunados com a rivalidade dos jesuítas. Por mim, não quero balbuciar nomes como lemos pires, jónatas, barrento, mota, maggiolo, porque todos eles estavam no momento inoportuno no lugar errado e seria estúpido culpar almeida santos, soares ou costa gomes. Em Timorense, todos estes nomes se escrevem com minúsculas. E só passaram a ter maiúsculas os que se superaram diante das circunstâncias de tragédia que os elevaram a heróis. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.   Prefiro dizer que plenitude de uma racionalidade importada, de matriz estadual, conforme as normas do manual do cidadão, da organização política e administrativa da nação ou dos manuais de direito constitucional, revistos e anotados, apenas começou a estender as suas sombras nos finais do século XIX, com o governador Celestino e as suas campanhas ditas de soberania, quase iguais às de certos “consultings” jus-magistrais aqui aterrados. Aliás, os governadores republicanos são tão famosos que quase apenas se chamaram Filomeno da Câmara e, depois, Teófilo Duarte, valendo-nos a circunstância de um acaso procurado, a deportação, nos anos trinta, de anti-salazaristas, a qual, posteriormente, nos vai permitir alguns momentos de romântica luta de libertação, face à ocupação japonesa, depois da ocupação australiana, onde os mais dos mortos foram principalmente Timores e não malaes. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  Julgo que quanto mais dias por aqui passo, espreitando o corpo da terra desta ilha, ou desvelando a alma das gentes, mais chego à conclusão que só sei que nada sei e que, por isso mesmo, começo a saber alguma coisa.  Há por aqui uma natureza que, na alma destas gentes, é assumida como o objecto perfeito, entre a terra, o ar, a água e o fogo. Karma, panteísmo, Cristo, Maomé, ou Buda, todos são mais propícios para esse acesso ao multidimensional desta complexidade, para aquilo a que damos o nome de Deus. Daí que prefira a síntese de tal transcendente situado, a que chamam poesia e que nos permite manejar o mistério, o amor e algo do infinito. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  E depois de tantos livros de memórias e de história, de tantos ódios e de tantas estórias, regresso ao que deve-ser, e ao cancioneiro, com que Cinatti, que até era engenheiro, mas agrónomo, tentou aproximar a ilha do trovadorismo medieval donde nascemos, para se concluir que todas civilizações são mesmo poeticamente contemporâneas e não apenas na filosofia. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu.  Por mais livros que leia sobre os pretéritos imperfeitos, sobretudo os da descolonização e da ocupação, mais me refugio nas memórias do cancioneiro de Cinatti e assim confirmo como a poesia é mais verdadeira do que a história. Como o Ele, o amigo Timorense, disse ao Eu: quando chegámos a Timor içámos os barcos para a montanha, virámos-lhes a quilha para o ar e servimo-nos deles como se fossem casas. O mito manteve-se mas o rito, o treino, perdeu-se, a memória esqueceu-se… Timor foi para nós o fim do mundo… No cimo, erguemos a casa sagrada, tal como a Acrópole dos Gregos. E renovámos o culto da serpente, esquecido durante as longas viagens marítimas, quando as filhas da Terra nos foram oferecidas,  pelos primeiros habitantes de Timor em troca de uma paz desejada por vencedores e vencidos. A serpente ficou soberana da Terra, ainda que sob outros nomes, mas o seu poder diminuiu. Já não abarca o Céu, como outrora, senão quando a tromba d’água desaparece nas nuvens ou o arco -íris lhe oferece seguro percurso. Ouve-se, então, a serprente chorar, como nas fontes a água. O Sol, porém, consagrou-a, como esposa. Quando morremos, nem todos nós descemos às entranhas da Terra… Os que foram designados filhos do Sol ascendem ao Quarto Céu do mundo superior e ali ressuscitam iguais ao que eram em vida. Não te surpreendas se te disser que o Quarto Céu é muito parecido com a terra de onde vieram os nossos antepassados. Por isso, temos sempre saudades da Terra, mesmo quando estamos no Céu. A saudade é tão grande que não são poucos os Timorenses vivos a receber a visita apaixonada das filhas do Céu….

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