Out 28

Sapo Notícias on line

SAPO Notícias: Que diferenças encontra entre o discurso de 2005 e o discurso de ontem?

 

Interessa-me menos o texto e mais o estilo. Menos a racionalidade das palavras e mais a emoção que ele transmite. Sempre foi assim. Cavaco teve três maiorias, duas das quais absolutas, uma vitória esmagadora numas presidenciais, sempre com o mesmo estilo. O estilo “subir a coqueiros”, enérgico, e depois o estilo dramático. O que ele quer transmitir é ser um referencial que segurança e estabilidade.

 

SAPO Notícias: Ainda assim, no discurso de 2006 Cavaco Silva exaltou a cooperação estratégica e ontem deixou alguns recados ao Governo.

 

Estamos numa recandidatura e ele falou “de trono”, porque no fundo os portugueses porque no fundo os portugueses querem um sucedâneo de monarquia. Era muita mais republicano só haver um mandato, 7, 8 anos. Desconfiamos sempre dos primeiros mandatos dos presidentes, porque estão sempre a fazer o jogo para ser reeleitos. Só nesse segundo mandato é que revelam a sua verdadeira face. Veja-se no caso concreto de Mário Soares, quando começou a atacar o governo de Cavaco, antes disso  foi apoiado pelo próprio PSD de Cavaco. Os presidentes que se recandidatam dizem “O meu partido é Portugal”, se estão lá em cima não precisam de outdoor.

 

[Comentário de Nuno ]

Foi um discurso de quem já se considera o próximo Presidente?

 

De quem vai fazer uma campanha acumulando as funções de Presidente. Ele passa a ser Fernando Pessoa, tem um heterónimo candidato e outro Presidente na plenitude até Março. Não pode apagar essa outra parte. Foi um discurso do máximo situacinismo,  nunca houve um candidato tão situacinista como este na República. 10 anos como Primeiro-Ministro, 5 anos como Presidente. Somos a geração Cavaco.

 

[Comentário de Sérgio Oliveira ]

Um grande abraço ao Prof Maltez, um dos melhores professores que tive no ISCSP. O que fica de decisivo e inovador no primeiro mandato de Cavaco Silva?

 

 

Cooperação estratégica do chamado rotativismo. Isto teria começado com o máximo de desejo do Cavaco se o Eduardo Catroga tivesse chegado a acordo com o Teixeira dos Santos em relação ao Orçamento. Por ironia do destino, porque foi Cavaco Silva que ascendeu a líder do PSD acabando com o Bloco Central e é Cavaco quem vai provavelmente restaurar o Bloco Central 25 anos depois.

 

SAPO Notícias: Falou da “geração Cavaco”. Para quem falou ontem Cavaco Silva?

 

 

A política em Portugal é a coisa mais simples do Mundo. Há um milhão de eleitores que não é de esquerda, nem de direita, nem do centro, que ora vota PS ora vota PSD. Esses é que o podem ser reeleito imediatamente. Ele falou para esses. Falou um bocadinho também para aquilo que sempre o levou a ter êxito, para a sociologia de esquerda. Há uma fatia que sempre votou nele. Na anterior candidatura ele passeou-se com um ministro do Partido Comunista, Veiga de Oliveira. Era um ministro do PC nos governos provisórios. Um pouco à semelhança de Mário Soares, que tinha como chefe da casa Militar um monárquico, Carlos Azeredo. Os Portugueses não são de direita nem de esquerda. Veja o João Lobo Antunes, apoiava Jorge Sampaio. Por que é que o Cavaco está nesta posição? Porque o Dr. Jorge Sampaio não se quis candidatar. O Sampaio é respeitado institucionalmente por Cavaco e sente-se no dever moral de respeitar um Presidente que o tratou bem. Não há uma alternatica a Cavaco Silva porque Jorge Sampaio não quer.

 

 Não há nenhum candidato então que possa “fazer frente” a Cavaco Silva?

 

Até agora não houve Manuel Alegre. Está a jogar com os apoios partidários e quase não tem voz. Ele teve o azar de ter uma conjuntura política e económica que, se a tivesse previsto, teria sido outro estilo. Se continuasse a ser o candidato anti-sistema e galgasse o descontentamento, como foi na primeira candidatura, ser o “rebelde”, tinha mais sucessso do que com algumas inutilidades discursivas que anda a badalar. Mas pode renascer e isto pode ser mais interessante.

 

[Comentário de Nuno ]

Qual será a verdadeira face de Cavaco, e que poderá mostrar no segundo mandato?

 

 

Ele quer uma conciliação e um acordo entre os principais partidos. Até porque, mesmo em relação ao PSD, Manuela Ferreira Leite era um “cavaco de saias”. A nova direccção do PSD é outra coisa, já não têm uma espécie de viúva no PSD. O PSD não é contra o Cavaco mas é pós-cavaquista, e portanto ele neste momento não é um homem do partido do PSD. Cresceram os dois. Cavaco Silva sabe perfeitamente que numa situação tão grave como esta é imprensável nós continuarmos sem um governo de maioria absoluta de coligação. Não digo necessariamente um governo de coligação entre PS e PSD. Quem fundou a democracia foram seis governos que incluiam PC, PS, PSD e UMDP. Se estamos mesmo em crise a Assembleia pode gerar este tipo de consenso. Para mim era a solução, que procurava uma maioria social e uma maioria aritmética no Parlamento. É muito difícil um acordo sem os sindicatos ou sem a igreja católica, por exemplo. Nós precisamos de uma maioria além de parlamentar, social.

 

[Comentário de Paulo Silva ]

O Prof. Cavaco Silva começou por anunciar que ia poupar na campanha em respeito pelos tempos difíceis que vivemos. Na sua opinião é uma decisão genuína ou oportunista por saber que todos os portugueses estão preocupados com o cenário de crise e dificuldades?

 

 

Há um país novo e jovem que não está representado. Sá Carneiro tinha 40 anos quando foi líder do PSD. Ramalho Eanes tinha 40. Cavaco tinha menos 25. Em Portugal há um vazio de renovação nas lideranças. Começou a emergir agora com alguns líderes políticos, mas mesmo esses são quarentões. Já que se fala em cotas de género, se calhar devíamos fazer cotas de geração. A geração que não está a ser aproveitada pela sua qualidade no emprego tem a comandá-la uma gerontocracia carcomida. O regime está velho. E ainda temos de ouvir sentenças de tipos com 90 anos.

 

[Comentário de Edu ]

Que influência vai ter a crise actual de Portugal, no resultado das eleições presidenciais, nomeadamente na votação de Cavaco?

 

 

É o aliciante da política democrática, é o imprevisto. Se aparecer alguém que interprete a crise, mas resta saber o que é a crise. Crise é Portugal representar 2% da população europeia. E isto dá uma sensação de desconforto, porque o nosso futuro depende menos dos candidatos presidenciais e muito mais das conversas de corredor do próximo Conselho Europeu. Dos jogos de poder, de uma conversa enre os líderes portugueses e os líderes europeus e convém reparar que o PR nesse domínio tem muito pouca influência. E há hoje uma notícia, o futuro director do FMI para a Europa vai ser António Borges, que era o vice-presidente da Manuela Ferreira Leite.

 

[Comentário de MR Bahamonde ]

O problema de Cavaco Silva é não conseguir transmitir qualquer emoção, já Manuel Alegre é um camaleão das emoções. Qual dos dois agradará mais e transmite mais confiança ao eleitor comum?

 

Também há Fernando Nobre, Francisco Lopes e vamos a ver se o Defensor Moura arranja as 7500 assinaturas. Quando bipolarizamos entre Alegre e Cavaco reparamos que os lobbies na comunicação social que apoiam estas duas forças estão insensivelmente a marginalizar as outras alternativas.  Estão cercadas por uma muralha de silêncio. É um problema de tempo de antena. Ainda ontem se viu que os candidatos além de Alegre e Cavaco são tratados comentadores políticos e não como candidatos. Uns marginais políticos que de vez em quando vêm falar.

 

 

[Comentário de Álvaro Daniel ]

Bom dia Professor e todos os que seguem este debate. A minha dúvida ou questão que gostaria de colocar é a seguinte: Qual é o papel do PR na governação do nosso país actualmente? Perante uma situação económica e social deficitária como a que atravessamos, o que poderá fazer o PR?

O papel dele pode ser de revolucionar se quiser, o situacionismo. Se ele propuser um governo com o apoio dos sindicatos, da igreja, da esquerda e da direita, numa comunicação ao povo, alterou as regras do jogo todas. O PR tanto pode ser um simples representate do paralelograma de forças ou pode arriscar. Coisa que Cavaco Silva não fez nem vai fazer. Portugal precisa de um indisciplinador, e um PR podia sê-lo. Mas ninguém espera isso de Cavaco. O máximo que ele fez foi dizer que a situação portuguesa era insustentável e explosiva, e agora veio dizer que repetiu as palavras de um relatório do Banco de Portugal. Portugal ser presidido por um relatório do Banco de Portugal é pouco ambicioso. Embora tenha havido progresso, não se viu ontem no CBB o Manuel Dias Loureiro.

[Comentário de Guest ]

Caro professor bom dia! O actual PR candidata-se com uma presidencia neutra, nem brilhante nem má, mas com uma presença publica que foi bem melhor que os anos de governação enquanto primeiro ministro. No entanto, sendo ao centro, enfim quase esquerda, muito keynesiana, como é que vê este colar constante, em Portugal, da Direita e do Centro? Joffre Justino

 

Quando Cavaco Silva assumiu a liderança do PSD declarou que era um homem da esquerda moderna. Um reformista, inspirado por Eduard Bernestein. Por ironia do destino, quando José Sócrates assumiu a liderança do PS, declarou ser da esquerda moderna inspirado por Bernestein. Isto é, um e outro mais do mesmo em termos de referências ideológicas. No fundo os dois modelos PS e PSD são meros irmãos inimigos que acreditam no rotativismo e não denunciam o pior vício que estes situacionismos que é o chamado devorismo ou corrupção.

[Comentário de Vitória ]

Na conjuntura actual eu acho que Cavaco Silva é o candidato ideal, e na sua opinião que hipóteses tem Manuel Alegre?

 

 Se o Manuel Alegre se libertar das algemas dos apoios partidários e voltar à criatividade pode ainda constituir uma surpresa. Isto é, se obrigar a uma segunda volta.

SAPO Notícias: Para concluir, que espírito vai marcar os próximos meses?

Portugal está totalmente dependente dos caprichos dos credores,a  velha bóia de salvação que era a Comissão Europeia do Delors ou do Barroso já não manda na Europa e há uma total incerteza quanto aos verdadeiros donos do poder em Portugal. Já não são os banquerios nem os bancários mas o jogo da especulação e dos credores. Só temos uma salvação que é querermos como comunidade ser mesmo independente. Haver uma vontade nacional de resistência gerindo as dependências. Eu dou um exemplo de um país que está a saber fazer isso, que é a Catalunha. Sabe navegar flexivelmente nestas águas e tem tido sucesso. Não tem chefe e funciona como comunidade. É a sociedade civil que funciona, não é o governo nem o Presidente.

Jan 11

Entrevista a Ana Leonor Martins

Em Directo – 41

[José Adelino Maltez]

 

Vira o disco…

 

«Cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis», «uma década de neo-cavaquismo» protagonizada por «uma espécie de tio grisalho dinâmico» ou o poeta de «discursos empolgantes» mas com «pés de barro». Segundo José Adelino Maltez, professor universitário, é este o trio do qual sairá o próximo presidente da República Portuguesa. Tudo «glórias do passado» que fazem com que, a partir do próximo dia 22 de Janeiro, se vire o disco para tocar o mesmo.

Por Ana Leonor Martins

 

Com as eleições presidenciais à porta, José Adelino Maltez fala de uma pré-campanha que não garantiu a igualdade de oportunidades e de um sistema político-partidocrático e bancoburocrático; de um país «absurdamente centralizado», «fechado» e «controlado por castas capitaleiras» e de uma «democracia conservadora» a precisar de uma operação de ‘lifting’, de elites não competitivas e de candidatos «sistémicos e conservadores que representam o medo da mudança»; de debates que revelam «desvios gerontocráticos» e de uma «bipolarização estúpida entre esquerda e direita». No fundo, fala de um país a precisar urgentemente de renovação.

[Pessoal] A um mês das eleições presidenciais, como tem visto a pré-campanha?

[José Adelino Maltez] Na pré-campanha houve uma espécie de regresso à política. Estávamos numa situação adormecida e estas eleições vieram despertar o gosto pela debate político, num país onde o sistema democrático enfrenta dois desafios negativos: a corrupção – os índices internacionais dizem que somos o país mais corrupto da União Europeia – e o indiferentismo. A cidadania é um belo conceito, mas está desangrada, e a democracia representativa em crise…

A que níveis se verifica a corrupção de que fala?

A corrupção é a compra do poder e exerce-se em pequenos nadas. O oceano da corrupção em Portugal vem mais do pato bravo na relação com o autarca do que propriamente do grande empresário da banca na relação com o ministro. Para chegar ao poder, os líderes do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD) têm de negociar com os seus autarcas e com os seus caciques. Os partidos estão minados por estes 30 anos de cedência aos micro-poderes da corrupção que gerou uma enorme rede de falta de autenticidade do poder.

Será por isso que se verifica o tal indiferentismo?

Não só. É um problema de todas as democracias quando, como esta, envelhecem. Esta senhora está a dez anos de atingir o tempo de duração do governo de Salazar e tem o dobro do tempo de vida da Primeira República. Precisa de uma operação de ‘lifting’. Todas as democracias europeias do pós-guerra, neste ciclo dos 30 anos, tiveram um sobressalto criativo, uma recriação. A França com o De Gaulle, Itália com a «Operação Mãos Limpas»… A nossa democracia é muito conservadora. As presidenciais revelaram um grande atavismo. Voltámos atrás. Os candidatos que disputam a chefia de Estado são tudo glórias do passado, da década de 1980. O que nos oferecem como alternativa é o presidente da República, o primeiro-ministro ou o poeta oficial do regime desse período. Não há renovação. Estes pais da pátria tiveram descendência mas o filho Guterres fugiu por causa do pântano, o filho Barroso foi-se embora e o filho Santana anda por aí.

Existirão alternativas credíveis na nossa classe política a essas glórias passadas?

Portugal é o país mais fechado da Europa Ocidental. Menos plural, com menor participação da sociedade civil no Estado. É um regime rigorosamente controlado por castas capitaleiras, da capital, e estático na mobilidade social. Somos um país absurdamente centralizado, com um sistema educativo que perpetua a casta e que não permitiu seleccionar os melhores através de um processo de igualdade de oportunidades. As elites não são competitivas, não há meritocracia. Dois exemplos… No tempo do príncipe regente D. João, as duas grandes figuras do governo eram o visconde da Anadia e o visconde de Balsemão. Curiosamente, os seus descendentes são o Paes do Amaral e o Pinto Balsemão, dois dos principais donos do poder em Portugal. A chamada democratização do regime, nascida nos últimos anos do antigo regime com a mítica reforma Veiga Simão, ainda não produziu efeitos. Só agora começará a surgir uma nova elite.

Acha que essas castas vão perder o poder?

Nos últimos 30 anos, houve uma aposta do povão na educação dos seus filhos, uma renovação das universidades e das elites, mas ainda não houve tempo para isso ter consequências na classe política e nos partidos. Pela primeira vez na História, isto que resta de Portugal está prestes a ter uma alteração de fundo. Se quem manda no país não percebe os sinais do tempo, podemos estar à beira de uma explosão, relativamente controlada pela integração europeia e pela globalização. As regras que permitiam que os mesmos vencessem sempre, fossem de esquerda ou de direita, monárquicos ou republicanos, vão-se alterar.

E acredita que podemos ter uma surpresa já nestas eleições?

Não, porque optámos pela velhice e por adiar a reforma. Surpresa como? Mais dez anos de neo-cavaquismo? Toda a gente sabe o que é, vira o disco e toca o mesmo. Soares? Mais cinco anos do último capítulo das memórias finais do grande mestre da conversa, como lhe chamou o «Diário de Notícias». Isto é uma mentira. Os partidos não deixam que isto mude. E a partidocracia dominante já não é uma questão puramente doméstica. O doutor Cavaco, o doutor Soares e a região autónoma alegreira são agentes em Portugal das duas principais forças partidárias multinacionais que mandam na Europa – o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu. Estão dependentes dos seus programas.

Que consequências práticas é que isso trará?

Um povo transformado em organização estadual como o nosso só pode ser independente se souber navegar nas dependências. E nós não criámos uma forma de gerir bem as dependências resultantes da integração europeia e da globalização. Temos um sistema partidário criado à pressa, tipo pronto-a-vestir, nos primeiros dias de Abril que, curiosamente, é decalcado de ideologias alemãs. É tudo ‘ex-novum’. O autoritarismo salazarista matou as memórias. Isto levou-nos a ter agentes das forças partidárias multinacionais. Somos o país mais social-democrata da Europa e do mundo. Só podemos mudar entre o socialismo democrático e os sociais-democratas. É uma ilusão de mudança.

Então, seja qual for o presidente eleito, não haverá grande diferença prática…

O líder governamental do PS começou por ser militante da JSD. Nas declarações que fez de carácter ideológico, tal como Cavaco Silva, disse que era adepto do Bernstein, o inventor da social-democracia do século XX. Os dois são iguaizinhos até no modelo. O Cavaco tem a postura ‘action man’ do Sócrates. É uma espécie de tio grisalho dinâmico. O Soares livrou-se da imagem de padrinho e é uma espécie de avozinho.

O que é que as pessoas esperam do presidente da República?

Em primeiro lugar, como Aristóteles dizia, todos os regimes políticos são mistos – democracia no Parlamento, aristocracia técnica no poder judicial e monarquia ao nível da fechadura do ciclo. Os poderes do presidente são limitados. Mas tem autoridade. Isto conforta-nos e dá um equilíbrio bastante interessante ao regime. Não concordo é com a maneira de se jogar dentro do regime. Ninguém denuncia o facto de até agora termos tido debates apenas com os candidatos sistémicos. E se aparecer outro candidato com 7.500 candidaturas? De acordo com a lógica do Estado de Direito ter-se-ia que repetir os todos os debates.

Pelo menos Garcia Pereira, à data a que estamos a falar [22 de Dezembro de 2005], já as conseguiu e até apresentou queixa na Alta Autoridade para a Comunicação Social…

O Garcia Pereira faz parte do folclore, mas pode aparecer um cidadão independente e nós, à partida, estamos a dizer que ele não tem igualdade de oportunidades.

Isso levanta um problema constitucional…

Levanta um problema gravíssimo, não só constitucional, mas sobretudo de igualdade de oportunidades. Os que têm acesso ao controlo da opinião são os amigos dos donos da televisão. As candidaturas beberam o caldo que os donos do poder comunicacional lhes ofereceram.

A este respeito, o editor de política da SIC, Ricardo Costa, disse que já «tinha dado para esse peditório»…

Corremos o risco de dizer que isto não é uma democracia, mas uma tele-democracia, ou uma sondajocracia. É um momento de reflexão profunda.

Que sentido faz permitir que qualquer cidadão eleitor português, com mais 35 anos, se possa candidatar, se depois as oportunidades não são iguais para todos?

Isso é uma espécie de tranquilizante que normalmente é usado por aqueles que acham que a chefia de Estado tem de ser deste modelo. A diferença entre a forma republicana ou monárquica de chefia de Estado não é grande. No fundo, a figura presidencial é uma espécie de saudade monárquica, de um povo que quer alguém com autoridade mas sem poder. Por outro lado, o sistema político português é partidocrático e bancoburocrático. Há uma ditadura dos partidos, segundo a dominante bancoburocracia, com as influências que tem na comunicação social, que é o quarto poder.

O que quer dizer com isso…

Muitas vezes diz-se mal dos jornalistas, mas eles não existem neste processo. São empregados de empresas que controlam o sistema. Conheço o jogo de controlo da comunicação social. Os tais donos do poder, que são tão importantes quanto os próprios partidos, aliados a uma estrutura bancária de um bloco central de interesses, criaram um sistema de intermediação entre o povo e o poder central que está a fazer um desvio oligárquico do regime. Isto faz com que a democracia não tenha total autenticidade.

Acha que os cidadãos têm consciência dessa espécie de manipulação?

Claro que têm. A experiência democrática tem demonstrado que em momentos-chave a maioria das pessoas comuns sabe escolher melhor do que as elites, porque tem bom senso. Tento entender os sinais do povo e percebo que há uma revolta que a média prazo vai resultar numa mudança de sistema. Não através de uma revolução, mas de uma reforma. Alguns partidos extremistas são uma espécie de lebres. Estão a antecipar alguma coisa que não vão ser eles a gerir.

A crescente implantação do Bloco de Esquerda será disso um sinal?

Não. Isso é folclore. São os filhos da grande burguesia com fatos finórios. Estou a falar de um partido central, com implantação nacional, que saiba interpretar estes sinais de mudança e que faça uma reforma do sistema.

Terão os debates televisivos contribuído para o esclarecimento da opinião pública? Não se tem estado a discutir matérias da competência do primeiro-ministro?

Grande parte dos temas que os moderadores introduziram na discussão, talvez 80%, são programas de governo. Quer Soares, quer Cavaco, revelaram uma grande cobardia ao não discutir os problemas europeus. O debate entre os dois foi uma espécie de luta por uma medalha de honra por ter sido um bom governante no passado.

A dada altura discutia-se inclusive quem tinha escrito mais livros, e sobre o quê…

Isso revela um desvio gerontocrático, um pouco de chechezismo dos candidatos. Estão-nos a pedir que os consagremos como grandes figuras e a discutir livros de memórias. Foi ridículo. Pareciam dois vizinhos a discutir qual dos dois tinha o melhor carro. Mas nenhum deles disse que visão tem da Europa ou da globalização, nem falou na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ou referiu o debate sobre o Brasil, a luta contra a desertificação do interior ou o sentido atlântico da existência. Nenhum deles teve um sonho universal de Portugal… Houve um excesso de micro-política, muita discussão de poderes e pouca discussão de autoridade. Nenhum deles assumiu a macro-política presidencial.

Acredita que um «ilustre desconhecido» teria hipótese de ganhar as eleições?

Se aparecesse um Delgado que exprimisse a voz profunda do povo, mobilizava imediatamente as pessoas adormecidas.

Mas os candidatos que têm as máquinas partidárias por trás terão mais hipóteses… Ou não?

O Manuel Alegre tentou contrariar isso. Depois verificou-se que era uma espécie de ‘soufflé’. Esvaziou no debate. Mas o impulso inicial foi esse. Em 1975, Mário Soares exprimiu essa voz e tornou-se um líder respeitado. Os grandes líderes que tivemos foram os homens para as circunstâncias. O Sá Carneiro, o Eanes…

Se Alegre ficar à frente de Soares, acha que a imagem do PS ficará afectada?

A importância da figura presidencial vai além das questões internas domésticas dos partidos. Manuel Alegre tem alguma qualidade como político, mas talvez tenha criado expectativas em demasia. Notou-se alguns pés de barro.

Perdeu nos debates?

Não tanto nos debates, mas pela falta de mobilização de uma elite que poderia acompanhá-lo neste processo. Acho que houve na pré-campanha eleitoral uma bipolarização estúpida entre esquerda e direita. Qualquer um dos candidatos ditos de esquerda cometeu o erro estúpido de dar de borla o que era a não esquerda a Cavaco Silva. Nunca se faz isto em termos de combate supra-partidário.

Nesse sentido, Cavaco Silva foi mais inteligente, não quis Marques Mendes nem Ribeiro e Castro a fazer campanha com ele…

Cavaco Silva fez o que os conselheiros mandaram. Estar calado. Repetiu exactamente a postura de Sócrates, que não disse nada e acabou primeiro-ministro. É a chamada gestão do silêncio. O drama das escolhas políticas e destas presidenciais tem a ver com o facto de o nosso modelo social assentar num centrão mole e difuso, constituído pelos beneficiários do sistema – os reformados, os sindicalistas da UGT, o funcionário público ou o professor universitário que não faz nada… Ou seja, os subsídio-dependentes. São um milhão de eleitores flutuantes que não gosta de reformas. Ora votam PS, ora PSD. É esse eleitorado que Soares e Cavaco estão a disputar. Os dois representam o medo da mudança. São sistémicos e conservadores.

Não acha curioso que Cavaco Silva, tão criticado no passado, apareça agora destacado nas sondagens?

As pessoas vão à carteira e lembram-se de que no tempo de Cavaco Silva tinham mais dinheiro. Sabiamente, ele está a fazer apelo a uma lembrança de um tempo melhor. Só que as circunstâncias são outras. Salvo as devidas distâncias, ele é uma espécie de Salazar democrático. Reúne a vantagem da democracia, com a vantagem do mito do prestígio financeiro. Já Mário Soares tem a vantagem de ser um Afonso Costa pachola. O mito do líder do reviralho, simpático, que vai à missa e visita o cardeal. Tentam ser a soma de dois contrários. E nós gostamos, porque estes paradoxos tranquilizam-nos. O que eu pergunto é se nos dão futuro.

De que tipo de líder precisamos para ter futuro?

No leilão de políticos disponíveis, não temos nenhum desses. Precisamos de um líder sem medo da aventura e do risco. Uma pessoas que fosse contra o estado de estagnação a que chegámos e que quisesse fazer uma revolução sem sangue. Uma ruptura reformista.

E Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa?

Nenhum dos candidatos consegue ser reformista em termos de aventura. Jerónimo de Sousa é um comunista simpático e afectivo, uma espécie de cassete animada. Já não come criancinhas ao pequeno-almoço. É um comunista de Abril. Louçã é um trotskista que faria umas excelentes conferências sobre o que teria sido a revolução soviética se em vez de Lenine tivesse vencido o Trotsky. Faz parte da aventura da extrema-esquerda europeia, mas só é novidade cá. É interessante para o folclore, mas nunca podia ser, por exemplo, um Lula ou um Evo Morales.

Concluindo, vamos ter mais dez anos do mesmo…

Se ganhar o doutor Soares, vamos ter cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis. Se for o doutor Cavaco, eventualmente será uma década de neo-cavaquismo. Se for o doutor Alegre, vai ser uma perda enorme para a literatura, porque vai deixar de ter tempo para escrever livros. Mas pelo menos teríamos discursos empolgantes. O essencial disto tudo é que há uma má relação do povo com o Estado. Aí é que reside o drama da crise portuguesa. O desafio da democracia é reconciliar o povo com o Estado. O mal de Portugal são os instalados. Se houvesse instabilidade estrutural, deixava de haver uma ditadura do PS e do PSD. Faz falta pôr em risco os donos do poder, porque então tinham que revelar que eram bons. E não são necessariamente maus. Sou adepto de alguma balbúrdia criativa e não de ditaduras do ‘status quo’. Não aguentamos muita estabilidade. Mesmo que se cometam erros, é preciso dar alma à política. Um refazer da esperança, sem medo.

 

CAIXA

José Adelino Maltez

José Adelino Maltez (n. Coimbra, 1951), licenciado em Direito, é professor catedrático no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Doutor e agregado em Ciência Política, é director do Centro de Estudos do Pensamento Político daquela faculdade. Deu aulas em várias universidades, foi auditor de Defesa Nacional (1985-86) e colabora regularmente com a imprensa. Para além de obras publicadas na área de Ciência Política, também escreve poesia. ALM