Abr 15

Contra o absolutismo, a ignorância e o provincianismo, marchar, marchar!

A frase que melhor exprime a decadência da nossa classe política terá sido proferida por um ex-ministro, quando dizia ao ilustre cacique, fumador de charuto, que temos de ser uns para os outros. Isto é, o ilustre autarca e futebolítico, ao meter suas cunhas  em vernáculo, em nenhum caso, ousou pedir favorecimentos pessoais, mas apenas facilidades para a respectiva região, autarquia ou amigalhaços, assim confirmando como foi esmagadoramente sufragado pelo respectivo povo. Pena é que continue esta cultura anti-Estado de Direito, do princeps a legibus solutus e do quod princeps dixit legis habet vigorem. Isto é, que o grupo que conquista o poder, segundo a lógica do spoil system, não está sujeito à lei que ele pode fazer, refazer e desfazer, porque não compreende que o mesmo Estado de Direito é a tal chatice das pesos e contrapesos (as forças do bloqueio) e da separação de poderes, servida por funcionários com direito à carreira, de acordo com a legitimidade racional-normativa que Weber teorizou e que, por cá, continuam a ser ostracizadas como burocráticas. Logo, mesmo que o povão prefira o governo dos espertos (Hannah Arendt), onde a interpretação da lei é mais favorável para os amigalhaços, temos obrigação de fazer a necessária revolução cultural que nos livre destas heranças absolutistas, começando, nomeadamente, pela liquidação do centralismo do Terreiro do Paço e de outros terreiros de paços locais, promovendo uma efectiva regionalização que, em vez de espalhar centralizações, nos leve à reconstrução horizontal e federativa do político.

Abr 15

Entrevista a um jornal de estudantes sobre relações internacionais

DOMINGO, 15 DE ABRIL DE 2007
Entrevista ao Professor Doutor José Adelino Maltez
É do interesse geral a transcrição de uma entrevista realizada com o Professor Doutor Adelino Maltez no decorrer deste ano lectivo de 2006/07, pois trata de temáticas cuja pertinência não deixa de ser actual.

Como contributo a um melhor entendimento do estado da nossa licenciatura, quer à luz do “Processo de Bolonha” como também em relação ao lugar das Relações Internacionais no vasto leque de Ciências Sociais, é importante que a transcição fosse realizada. A saber:

 

NERI – Qual a sua opinião sobre a reformulação da licenciatura em Relações Internacionais que está a ser levada a cabo?

José Adelino Maltez (JAD) – Dou toda a minha solidariedade institucional ao coordenador e meu colega que a protagonizou, mas como não sou construtivista e desconfio bastante das engenharias e dos chouriços curriculares, muito principalmente quando tais modelos são levadas a cabo por desafios decretinos, apenas gostaria que não inventássemos o que já está inventado, nem descobríssemos o que já está descoberto.

Daí que , sobre a matéria, prefira tratar da árvore que me encomendaram, uma disciplina semestral de introdução e metodologia das relações internacionais e outra de história do presente. E nisso estou a trabalhar entusiasmadamente com excelentes colaboradores, treinando até o processo como professor visitante na Universidade de Brasília que, no começo da década de oitenta, tanto influenciou o nosso modelo de ensino das relações internacionais.

Aliás, os acasos procurados dessa cooperação universitária, fizeram com que não estivesse presente na reunião do conselho científico que optou pela presente reforma, o que faz de mim uma espécie de abstencionista institucional, posição que, felizmente, não coincide com a de Pilatos.

Mas confesso que preferia ver a questão do ensino das relações internacionais numa perspectiva supra-endogâmica, como um problema da universidade portuguesa no seu conjunto e como um problema do próprio Estado Português na sua necessidade de recurso a cientistas e a profissionais na matéria. E aqui, julgo que vivemos no tradicional modelo decadentista do Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas, dado que não temos matéria prima de recursos científicos para tantas escolas e escolinhas de relações internacionais, tanto nas Universidades públicas como nos diversos ministérios.

Deveríamos concentrar esforços, até para assumirmos que quem nos paga é o contribuinte, garantindo um só sistema público de ensino da matéria, com a cooperação das áreas dos negócios estrangeiros, da defesa, da inteligência e da economia, através de uma sã concorrência, como fazem outros países da União Europeia e até potências bem mais ricas do que nós, de maneira a que a matéria pudesse sair deste nível quase terceiromundista, onde mandam os tradutores em calão, feitos vedetas mediáticas do comentarismo ou subsidiados por potências que nos querem colonizar.

Julgo que falta muito patriotismo científico ao nosso sistema universitário púbico de relações internacionais e por isso nem sequer conseguimos ter os necessários estrangeirados que nos permitiriam aceder à padronização internacional destas matérias. E julgo também que abundam reformadores que precisavam de uma valentíssima reforma, dado quem não parecem preocupar-se com a empregabilidade dos formandos, para não falarmos em certas sumidades que nem sequer sabem o que é viver a aventura de nos últimos vinte anos terem surgido novas gerações que querem “atravessar o limiar da esperanaça”. Mas colaborarei com todos os que querem continuar a ter no ISCSP a melhor escola de relações internacionais do país e apoiarei especialmente os que permitirem que os nossos alunos já doutores por outras escolas nacionais e estrangeiras regressem à casa mãe através de urgentes concursos públicos para docentes, a fim de garantirmos o dinamismo da concorrência. Navegar é preciso para que possamos a continuar a viver como pensamos.

NERI – Segundo algumas opiniões, as Relações Internacionais não são uma ciência pois carecem de metodologia própria. Enquanto académico e decano da nossa área de estudo, que comentário faz a esse respeito?

JAD – Não subscrevo tal perspectiva, habitualmente emitida por membros de uma certa seita científica quando assumem a respectiva derrota no contexto da fertilização teórica. Relações internacionais são aquilo que os internacionalistas fazem, conforme os modelos das associações profissionais da área e os “rankings” dos mais citados no processo. É desta opinião comum dos que pensam de forma racional e justa sobre a matéria que deriva o objecto formal, ou metodologia da ciência. Infelizmente, a ciência das relações internacionais em Portugal ainda não está imune a certas doenças infantis e algumas borbulhagens adolescentes, pelo que ela tem sido campo de colonização de outras áreas científicas que nela coincidem quanto ao objecto material, como, por exemplo, aconteceu com a composição das comissões de avaliação do sector e como se vislumbra no nascimento de novas unidades universitárias, onde parecem fazer desaguar especialistas das antigas Faculdades de Letras, contribuindo para que a imagem da ciência se aproxime daqueles híbridos interdisciplinares com muito turismo científico e algumas interferências da própria partidocracia.

NERI – Na sequência das comemorações dos Cem Anos de Investigação e Ensino em Ciências Sociais e Políticas do nosso Instituto, considera que o que se tem produzido na área das RI no ISCSP é suficiente para continuar a fazer Escola?

JAD – Não gosto participar em cerimónias dos discursos de justificação do poder e decidi abster-me, porque ainda não chegou a altura de nos libertarmos de certas sombras de um passado recente que até não deixam que se faça uma leitura integral de todo o passado, nomeadamente o da monarquia liberal e da Primeira República. Como o actual poder acha conveniente continuar apenas a dialogar com a fase salazarista da escola, apesar de ter sido convidado para participar no discurso, prefiro ir plantar macieiras nos dias de tais cerimónias.

O que escrevi sobre a matéria, em livros que não puderam ser publicados no ISCSP, obrigam-me à coerência do silêncio. Mas estou totalmente disponível para me associar a qualquer cerimónia que peça perdão a quem, amando a escola e sendo figura relevante da ciência em Portugal, dela foi recebeu a perseguição e a própria expulsão da função pública. Enquanto não esconjurarmos estes fantasmas da nossa vertente autoritarista, não conseguiremos ganhar o respeito dos homens livres. Enquanto desconhecermos quem efectivamente foi Luciano Cordeiro, Álvaro de Castro, Jorge Dias, Alfredo de Sousa, D. António Ribeiro, José Hermano Saraiva, Manuel Belchior, Vitorino Magalhães Godinho ou Luís Sá, estamos a tomar um partido que não é o meu e a ter a ilusão de escrevermos uma pseudo-história dos vencedores. Se me quiserem continuar a qualificar como dissidente, tenho muita honra no epíteto. Eu não vou por aí.

NERI – Qual a sua reacção face ao anunciado investimento do governo em ciência e tecnologia?

JAD – Depende do conceito de ciência e de tecnologia. Parece-me que o conceito dominante nos discursos do poder estabelecido, tanto a nível do governo como dos reitores-primazes, ainda balbuciam as cartilhas cientificistas de Augusto Comte, olhando as ciências sociais e humanas como ciências ocultas a que de vez em quando se pede um discurso de cereja para ornamentar o bolo de uma decadência que nos atira para a periferia do desenvolvimento humano.

Preferia que copiássemos o modelo existente nas potências dominantes, onde não me parece que considerem como simples ideologia o tratamento das ciências do espírito. Até parece que se esquecem que cibernética, conforme o conceito matricial de Norbert Wiener, vem da palavra grega que quer dizer governo e nasceu num ambiente de teoria dos sistemas gerais, quando se procurava uma aproximação das ciências ditas exactas às ciências ditas sociais. Basta repararmos como se escolhem os avaliadores e os distribuidores de subsídios estatais para a área das ciências sociais, onde não se obedece à hierarquia conquistada pela via dos concursos públicos, preferindo-se o amigo do partido ou a figuara mediática, ao contrário do que acontece nos países civilizados, onde o regime da cunha já há muito foi superado por um sistema minimamente objectivo.

NERI – Portugal irá assumir a presidência da União Europeia no segundo semestre do próximo ano; quais as suas expectativas para esses seis meses?

JAD – Espero que se continue a garantir a nossa independência através de uma sábia e experimentada gestão de dependências. Como já não somos um quintal murado, mas uma simples província do euro, com os dois principais partidos portugueses vinculados aos programas europeus dos partidos multinacionais de que são meras secções nacionais, o nosso espaço de manobra é bem estreito, dependendo apenas do bom senso dos governantes e da capacidade técnica dos assessores. Como confio no patriotismo dos nossos governantes e até conheço muitos alunos da escola que circulam neses meios tecnocráticos, tenho apenas expectativas realistas de quem sabe que não vamos cair na ratoeira dos aventureirismos. Infelizmente não vislumbro sinais que nos libertem do presente desencanto sistémico que nos vai dissolvendo a cidadania, em nome da “tirania do statu quo ” e do modelo TINA (there is no alternative).

NERI – Que balanço faz dos primeiros dez anos de CPLP?

JAD – Um bom espaço para o exercício da retórica de um lusotropicalismo “aggiornato”, visando a alimentação das brasas dos Estados Unidos da Saudade, dado que ainda não é possível gerir factores de poder internacional adeauados ao sonho dos povos que integram a comunidade. Porque tudo depende do Brasil e este país ainda não tem direito a ser potência liderante do grupo, dado que ainda não abandonou o isolacionismo de Estado-Continente e não ouviu as vozes dos portugueses, angolanos e moçambicanos que clamam pela respectiva “Weltpolitik”. Quando o Brasil acordar, Angola tiver direito à paz e ao desenvolvimento e outros puderem participar, julgo que Portugal não pode renunciar à sua função de irmandade. Até a União Europeia precisa desta dimensão universal de Portugal. Apenas espero que nessa altura ainda haja portugueses treinados para a cultura do abraço armilar.