A nova queda dos anjos, dos temperamentais aos papudos

Assisti atentamente à conversa em família que ontem foi emitida pela televisão pública e que, neste mesmo lugar, profetizei como pescada, isto é, como enlatado de aquário que antes de o ser já o era, com possibilidade de prognósticos antes de um apito final, mesmo sem ser dourado. Por isso, fui reler o romance de Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo, de 1886, onde se satiriza a classe política de há cento e vinte e um anos. Deixei de ler as fichas escolares e as fichas parlamentares dos novos anjos em queda, os que nos continuam a tratar como anjinhos, apesar de sermos cada vez menos papudos, mesmo quando são vítimas das tais insinuações onde foram crescendo, não deixam de usar o esquema da insinuação. Como outros o poderiam fazer há cento e vinte e um anos quanto aos que escreviam em jornais ou, há vinte e cinco séculos, sobre os que apenas escreviam, como homens livres, sobre as coisas políticas, nomeadamente os que ainda hoje estão mais interessados na questão da constituição de Atenas, ou no referendo sobre o futuro tratado constitucional da casa comum. Aqueles que têm crenças já não as podem exercitar na esfera pública. Ficam-se pela solidão dos lares, pelas pequenas catacumbas das redes de amigos e até pelos blogues que não são abruptos. Porque de quase de nada valem os signos institucionais de outras procuras, dado que a república caiu na ambiguidade discursiva do presidencialismo metapolítico, nesse texto sem palavra que apenas serve para interpretações da racionalidade importada, nesse discurso onde há apenas entrelinhas tortas e insinuações curvas, onde nem Deus escreveria direito nem o Diabo marraria. E, quanto menos a ideia e a emoção de nação nos mobilizarem, mais seremos estadualizados de forma alienígena. Sem uma comunidade afectiva que nos dê justiça e bem comum, apenas reclamaremos direitos e nunca daremos ao todo a necessária justiça e o indispensável amor. Contestar, protestar, exigir podem ser fracturantes se não assumirem a dimensão militante da resistência. E caso não haja alma que nos identifique, não passaremos de mera sociedade anónima gestionária. Só com uma necessária tensão espiritual, poderemos vencer as teias da demagogia, da incompetência e do negocismo. Tenho de chegar à conclusão que o velho Estado moderno se deixou enredar nas teias dos especialistas na conquista e manutenção no poder no âmbito do clubismo, do facciosismo e do campanário. Competentíssimos nesses domínios da fulanização, da galopinagem e do caciqueirismo, grande parte dos figurões que nos regem não percebem que atingiram, há muito, as raias do princípio de Peter, a partir das quais estão condenados a pisar os terrenos da incompetência.

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