Hoje, um professor universitário, se se assumir como funcionário da comunidade e se ousar libertar-se das teias dispersivas das mobilizações burocráticas, da chamada gestão de poder, terá de ousar viver como pensa e deixar de preocupar-se com as eternas mudanças decretinas que os ventos governativos vão sucessivamente soprando.
O meu princípio está em não cumprir os três primeiros mandamentos de Moisés, dado que sou um militante daquela heresia panteísta que gostaria de voltar ao pluralismo dos divinos, acreditando que, mesmo no tocante ao transcendente, vale a pena distinguir para unir.
Em segundo lugar, não sigo as regras do método da modernidade cartesiana, rejeitando os deicídios de uma racionalidade finalística que nega o mistério e confunde o humanismo com a ilusão de podermos ser “donos e senhores da natureza”.
Em terceiro lugar, uso e abusar do paradoxo, essa “forma mentis” que, conforme nos ensina Mounier, brota do ponto de união da eternidade com a historicidade, do infinito com o finito, da esperança com o desespero, do trans-racional com o racional, do indizível com a linguagem. Porque a certeza das certezas, ou, melhor, o acto de fé central é para a razão uma antinomia, e a sua solidez está composta do impulso mútuo que se dá nos dois pólos da antinomia.
Não chega o mero investigar, para que outros investigadores o leiam ou para que possa entrar na rede do sindicato neocorporativo das citações mútuas. Tenho de libertar-me dos enredos dessa casta de amigos que cordialmente se odeiam e assumir-me como publicista, usando os novos meios de comunicação que tenho ao dispor.
Aliás, seguindo assim o lema de Miguel de Unamuno, considero que a essência do homem ocidental é ser do contra, o que reforça a minha posição de conservar, porque, não sendo conservador do que está, sou um acérrimo conservador do que deve ser. Apesar de viver em Lisboa e de ser pai de três naturais de São Sebastião da Pedreira, continuo um resistente camponês, com nostalgia da terra natal. Apesar de ter sido adjunto de seis governos e de ter seguido a “via crucis” da função pública, de técnico superior de segunda a assessor, com passagem por chefe de divisão, director de serviços e subdirector-geral, abdiquei da coisa quando me doutorei e corri o risco de assumir as minhas ideias liberais fora da proteccção da hierarquia vertical.
Seguindo o paradoxo, continuo a ser considerado estadualista entre os neoliberais, heterodoxo anti-americano entre os “neocons”, autor de livros de poesia entre os doutorados em politologia, saloio entre os capitaleiros. Mesmo assim prefiro ser um homem livre que ousa viver como pensa, sem pensar como vive, nomeadamente na avença ou no subsídio que assim não recebo, porque também os não peço.
Porque se a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza (Kierkegaard), apesar de professor de coisas políticas, não aceito que toda a realidade possa ser definida, isto é, reduzida a conceitos, porque o objecto é uma realidade que existe independentemente do sujeito, essa realidade entendida como o tal objecto de conhecimento que pode ser definida, classificada, analisada e manipulada através dos conceitos.
Acresce que, como cientista, subscrevo aquele ritmo da ciência que, conforme Leo Strauss, é a tentativa de substituir a opinião sobre todas as coisas pelo conhecimento de todas as coisas, a passagem do exotérico, do socialmente útil, daquilo que é compreensível por qualquer leitor, ao esotérico, isto é, aquilo que só se revela depois de um estudo demorado e concentrado. Porque a ciência, para utilizarmos as palavras de Eric Weil, não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, definindo o conteúdo de um género definido de experiências.
Acredito mais no pensamento problemático do que no pensamento sistemático, pelo que tento pesquisar sempre o problema, isto é, toda a questão que aparentemente permite mais de uma resposta, mas que também requer, necessariamente, o entendimento preliminar, só passível de compreensão. Onde se reclama que só pode haver diálogo entre posições adversárias, quando entre elas se estabelecem pontes de consensualidade ou lugares comuns.
Aliás, titulado que sou numa área científica bastante recente na universidade portuguesa, a de ciência política, considero que não bastam os debates nos passos perdidos dos capítulos universitários, pelo que tenho tentado o publicismo, dos que querem ser fiéis ao antigo, mas não antiquado nome de republico, que é bem mais honroso do que o galicismo do politólogo, usando o blogue para assumir a plenitude da cidadania.
Importa viver cada aula como se ela fosse um acontecimento que nunca se repete, dada por um ser que nunca se repete perante pessoas de alunos que também nunca se repetem e, para tanto, não ser um mero lente de fotocópias obtidas em resumos de bibliografia alheia, mas detentor de produção própria, nascida da mistura de adequada teoria com as circunstâncias do tempo e do lugar em que labuta.
Por outras palavras, viver cada momento desta vida de professor como se ele fosse o último. Isto é, fazer desta profissão uma vocação e não um posto de vencimento ou um trampolim que nos dá cartão de visita ou trampolim para mais altos e bem remunerados cargos. Quem não tiver vocação para esta missão que a deixe!
Acresce que esta exigência íntima impõe que as escolas sejam instituições, isto é, que tenham uma ideia de obra, que gerem manifestações de comunhão e que sejam reguladas por normas processuais que a todos vinculem, para que possam ser escolas de cidadania e de abertura para aquele transcendente situado a que damos o nome de cultura. Se transformarmos o professor num burocrata de uma direcção-geral da administração directa do Estado ou num esquema partidário, sujeito ao “spoil system”, não poderemos cumprir a missão civilizadora daquela entidade onde o essencial do homem ocidental é o sentido crítico do “ser do contra”, para depois poder ser qualquer outra coisa em coerência de pensamento e acção.