Muitos julgam que todos quantos escrevem publicamente o têm de fazer segundo o ritmo da encomendação das redes feudais que nos fragmentam. Mas o acto de assim nos pensarmos através do movimento da caneta em forma de tecla não tem, necessariamente, de ser instrumento de um fim externo ao próprio prazer de cumprirmos os deveres do espírito. Mesmo que alguns dos feitores do poder estabelecido, especialmente os que são, acima de tudo, gestores dos respectivos carreirismos, possam não compreender a necessária solidão dos homens livres.
Falta que alguém escreva uma espécie de manual do situacionismo de sucesso, nessa síntese de maquiavelismo, inquisitorialismo e burguesismo esquerdista, para que todos possam conhecer a via justa de ascendermos ao comando visível da nau sistémica. Os nossos, com efeito, não são os melhores, os mais capacitados ou os mais sábios, não passando de simples acasos que a necessidade do efectivo poder ficou condenada a escolher.
Apenas tiveram a sorte que acompanha todos os que diligentemente fazem um prévio investimento de se colocarem na fileira dos que são treinados para capatazes e servidores, mas que, de um momento para o outro, podem estar no tal lugar próprio, no momento exacto.
Ei-los obedientes, reverentes, dependentes. Ei-los, os doutos adventícios, sempre seguidores do rolo compressor, quando os tempos que se avizinham trazem as garras finas da vindicta. Ajoelhados, diante do falso altar, afiando as penas em pias de água benta, gorgulhando restos consagrados, vão, hipocritamente, genuflectindo em ódios e vinganças, com muitas benzeduras de colectivismos morais.
Não, não há direita nem esquerda, nem extremos, nem meio termo. Há vencedores e vencidos e, quem vence, reparte o que ganha à custa do lombo de quem perde, nesse jogo de soma zero, onde a adição do mais um com o menos um a todos nos anula. Porque os donos do poder foram todos alunos do mesmo colégio do livro único, da mesma escola técnica de formação de esbirros, provinda dos “sanbenitos”.
Eis-nos, pois, em solidão de revolta, sobre nos mesmos cerrados, sem conseguirmos conjugar a palavra esperança. Porque, nesses tempos vagos que se anunciam, a noite já nem sequer nos dá espaço para um alento, porque tudo se atrasa e nos retarda e até as cordas da guitarra já não retesam. São as unhas do ódio que nos arreganham, onde os tambores feitos de nossa pele nos recordam que voltámos a ser escravos nas fileiras da ruína.
Já não sabemos dizer que novo dia nos traga a revolta, para que o vento possa semear sinais de liberdade. Presos na condenação estalinista, salazarenta, inquisitorial, sentimos que nos concedem viver desde que transportemos a estrela do tolerado. Os pequenos ditadores das pequenas instituições continuam a amarfanhar o sonho, muitas gentes sem semente vão poluindo o prazer da criação, eles que não sabem o estampido de um filho que nasce, de uma árvore que se semeia, de um livro que nos sofre.
Senhores de garra adunca, gestores da vindicta, zés larés, mancos de mona, moncos de ventas, são omnipotentes de quintal que vão fazendo macacadas em mukatas decepadas, corruptos, chéchés, muitos larés, enchendo de vento os falsos peitos das muchachas, fazendo brisa em cavernas de caveiras. Oh! donos da mentira, que tendes prazer nas diminuições de cabeça para os que não obedecem e recusam a unidimensionalidade de vossos arrotos.
Cópias de macacos predadores, oh! falsos fidalgos da doutoria bastarda, canalhas sem espinha, entre libações de geropiga, lampreia e água pé, sois os senhores, os novos donos desta gentalha sem sonho, desta multidão sem fé, ávida de nova procissão de vingadores, consagrados em pias de aguardente, para mascarem hóstias de rapé.
Tudo gente de caduca compostura, almas de corsários, feitores de roças que já não há, cipaios de um qualquer “yes, minister” que sempre fez batota, massacrando a cubata e dando conferências perfumadas à imprensa da porcalhota.
Deitados na doce palha desta canalha, moendo nos vão matando e violando, tudo reduzindo à paz servil dos cemitérios dos falsos vivos. Gente de ódios repetidos, gente que esgana, que se contrata, só porque teme gente que sonha e que recusa o chicote do sim senhor. O muro não caiu. Passou a vergonha no interior das sepulturas dos que se fingem vivos. Derrubemo-lo.
Para os devidos efeitos neopidescos e bufeiros, se comunica que este escrito foi publicado na imprensa em 12 de Novembro de 2004.