Jan 28

Memória de Maria de Lurdes Pintasilgo

O Estado segundo os nossos actuais conceitos, não tem apenas um corpus, não é apenas um determinado conjunto geo-humano dotado de uma certa organização. Não se resume à mistura aditiva de um elemento territorial, de um elemento societário e do poder político. Para que haja um Estado, exige-se não só a exclusividade desse poder político sobre o conjunto geo-humano que o mesmo organiza, impedindo que outros poderes políticos possam ter supremo poder sobre tal conjunto, como também a racionalidade, isto é, a existência de elementos teleológicos, daquilo que normalmente se designa como os fins do Estado.

 

Para além de uma sociedade , de uma terra e de um governo, impõe-se um elemento espiritual capaz de dar legitimidade ao monopólio da força pública, de dar unidade ou ordenamento. Exige-se a tal exclusividade que, desde Jean Bodin , vai conseguir-se pelo recurso à magia do nome soberania .

 

 

A tal exclusividade que, surgindo de um conceito teológico secularizado, consegue ser traduzida, com o mínimo de operacionalidade lógica, através dos conceitos jurídicos, os únicos que dispõem daquela tecnicidade instrumental que permite um mínimo de universalidade comunicacional, pelo menos desde que, com as guerras civis europeias a que chamámos guerras religiosas, a linguagem jurídica sucedeu à linguagem teológica, filosófica e ética e se transformou no principal campo de conversação da racionalidade.

 

 

Falar em Estado é, pois, falar numa totalidade que vai além da mera actividade de um aparelho do poder, a cidade do comando ou os governantes, sobre um determinado conjunto geo-humano, a cidade da obediência ou os governados. O conceito de pátria, de terra dos pais, pode, nalguns casos, ser necessário, mas não é suficiente.

 

 

Do mesmo modo, também podem ser necessários, embora não suficientes, os conceitos de grupo humano de origem, a nação, ou de governação. Exige-se sempre que o aparelho de poder, ou o principado, os organize politicamente e juridicamente , tanto em nome da assunção pela comunidade de um determinado espírito de unidade, a chamada consciência nacional, como de acordo com as regras do direito.

 

 

O que só pode conseguir-se quando esse todo tem determinados fins, que agora costumam catalogar-se segundo a tríade justiça, segurança, bem estar. Isto é, o Estado exige que o político se transforme numa espécie de relação metapolítica, que os poderes se volvam naquela relação que os transfigura em Poder, a tal rede de micropoderes que se institucionaliza em algo dotado de universalidade e onde podem enquadrar-se muitas diferenças, dado que, para atingir-se tal universalidade, há uma multiplicidade de formas de mistura dos ingredientes.

 

 

 

O Estado tem de ser perspectivado como um sistema aberto, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e que integra vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas ( input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses.

 

 

Porque o Estado, segundo Rials, é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e a latere do próprio Estado, pelo que seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano.

 

 

Por outras palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das nações, duma força unida e da decisão da vontade comum, fundamentada em leis, como diria Kant

 

 

Os cidadãos têm beneficiado das políticas do Estado? Diremos, na senda de Daniel Bell , que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, tentamos projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos, quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos exigem desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. De qualquer maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da vontade do homem.

 

 

O poder supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores, prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade, para utilizarmos palavras de João Paulo II , não deixa de salientar que uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum .

 

 

A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder, mas na assunção da plenitude da democracia. Em democracia, o Estado não é um c’est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c’est nous, um c’est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os seus representantes.

 

 

Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.

 

 

O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização em que 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Em que a união comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma mais-valia de sonho, de imaginação, de energia. Em suma, precisamos de política- Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade vivencial.

 

 

Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho de poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho de poder em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, pois o soberano não pode ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos.

 

 

Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho de poder tem de potenciar-se no Estado-Comunidade. Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta ( output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis. Sucede que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita .

 

 

Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos. Qualquer democracia assume-se, no plano das realidades, como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nós nos fazemos.

 

 

 

Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, o predomínio do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do príncipe sobre a república.Utilizando as categorias de Maquiavel , diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas. Mas, se utilizarmos termos paralelos, diremos que estão em crise os soberanos, mas não estão em crise as nações

 

 

Está em crise aquele modelo absolutista do político que continua o processo dos déspotas esclarecidos, como Luís XIV , Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de 1792 a 1796, constituindo um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que é continuado por Napoleão, Lenine , Mussolini , Hitler, Estaline , Mao ou Pol Pot.

 

 

Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente, considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; esse que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo. Está em crise o poder, não está em crise a liberdade.

 

 

O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt , enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas . Julgamos não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da nação que pretende resistir como polis ou da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que, a cada nação, corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.

 

 

Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.

 

 

Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas . Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático .

 

 

Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.

 

 

Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade. Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou jacobino, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.

 

 

Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual. Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, decretando a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos se submeterem a um mesmo ente coordenador.

 

 

Julgamos que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo/liberalismo que muitos, subliminarmente, confundem com o dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado-Providência que foi um Estado de Bem-Estar e que agora é um Estado de Mal-Estar. De um Welfare State, aliás, muito à portuguesa que, sendo fundado pelo salazarismo como Estado Novo com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos.

 

 

As linhas de força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo aggiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm agora sabor algo retroactivo, muito principalmente face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.

 

 

Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo) e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.

 

 

O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a Internacional das sociedades civis .

 

 

O Estado e a Sociedade não são coisas, são antes processos que se exigem mutuamente; não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário que, enfraquecendo-os, inviabiliza a comunidade política que devem servir.

 

 

 

Tentando, agora, pensar em português para o Portugal de hoje, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Com efeito, o Estado que os portugueses instituíram e refundaram sofre de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado-Segurança, dado que se põe em causa o monopólio da força física legítima, tanto no plano da segurança interna como no plano da própria segurança externa.

 

 

A força legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d’el rei, tal como aparecia na célebre Lei Mental de D. Duarte que lançou as bases do predomínio do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.

 

 

Segue-se a crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, a crise da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça concomitante de esporádicas emanações da Lei de Lynch e, por vezes, pelo desvario de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes com que se deleita o falso nacionalismo zoológico de importação. O que leva alguns, marcados pelas sombras de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos.

 

 

Mas também não nos devemos esquecer dos muitos erros que cometemos com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós se enveredarmos pelo appeal mediático de uma qualquer telejustiça!

 

 

Ai de nós se o terceiro poder se conubiar com o chamado quarto poder! Porque então só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados…Vem, depois, a crise do Estado-Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituimos o Parlamento em 1253.

 

 

O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador, porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos assumidos com os crescentes milhões de pensionistas. Finalmente, é a crise do Estado-Burocracia, esse instrumento vital do Estado racional-normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa, se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento.

 

 

Uma crise que determinados erros de falta de pensamento agravaram, dado que falta uma Escola de Quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta pela privatização dos métodos de gestão pública, na mesma altura em que as grandes holdings privadas copiam modelos da estratégia dos governments.

 

 

Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, no qual o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. De novo, o poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, em que até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global.

 

 

É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, em que a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism.

 

 

Do mesmo modo, aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.

 

 

Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, em que a demagogia, aliada a poderes pessoais tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, ou, o que é o mesmo, para a negação do governo pelo consentimento.

 

 

Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado gestor, ao Estado confiscador ou ao Estado planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado; seria persistirmos no latrocínio. O que não deve significar cedência à teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas .

 

 

Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis. O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, no qual não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos ; são antes aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, ainda que federativamente, ou escolhendo os representantes que a proferem em nosso nome para zelar pelos nossos interesses.

 

 

Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa; em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade.

 

 

Só que mais Estado nunca poderá ser o menos Estado de um Estado empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro. Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos… mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, na qual preponderam sempre os sargentos e os censores, mesmo que com a proverbial brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.

 

Hoje digo apenas, bem longe da sucata e da actual crise: o Estado não somos nós. O Estado são eles. O Estado é ele. Somos provisoriamente definitivos em regime de governo dos espertos, coisa que acontece sempre que uma determinada situação política passa a ser objecto do domínio perpétuo do acaso, onde o burocrata começa a ter a ilusão da acção permanente, para utilizarmos terminologia aprendida em Hannah Arendt.

 

 

Chega-se assim à despolitização típica do governo da burocracia, com uma administração que apenas aplica decretos, como acontecia com o czarismo russo, a monarquia austro-húngara e certos impérios coloniais. Porque os burocratas destes regimes, que administravam territórios extensos com populações heterogéneas, apenas pretendiam suprimir as autonomias locais e centralizar o poder. Contudo, nestes modelos, os donos do poder exercem uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos contemporâneos.

 

 

A esse modelo, um tal de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, pensando em António Bernardo, chamou-lhe um dia comunismo burocrático: o clientelismo estatizante, protector das novas forças vivas, dado terem sido satisfeitas as reivindicações de vários corpos especiais: deu-lhes uma Câmara dos Pares, vitalícios e hereditários; um Código Administrativo com 400 administradores de concelho, 4000 regedores e cerca de 30000 cabos de polícia, burocracia, riqueza, exército: eis os três pontos de apoio da doutrina; centralização, oligarquia: eis o seu processo.

 

 

O socratismo deixou renascer este fantasma de todas as nossas decadências. E a mancha que afectava os micro-autoritarismos sub-estatais foi, pouco a pouco, alastrando. Chamam, depois da casa arrombada, os senhores inspectores. Põem os magistrados e os polícias em escutas. Juntam ao caldo, os disponíveis bufos de sempre e pensam que a porcaria só funciona de baixo para cima, não reparando que a rede de micropoderes deslegitima todo o sistema. Aqui d’el-rei!, gritam os velhos. Oh da Guarda!, clamam os monarcómacos! Eu apenas olho para a estatátua dos macacos dos macacos cegos, surdos e mudos e repito como Sophia: vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Nada pode apagar o concerto dos gritos. O nosso tempo é pecado organizado.

Os ministros e adjuntos dos déspotas continuam psicopatas sentenciadores e até chegam ao cúmulo de se assumirem como os principais teóricos da democracia.

 

A expressão democracia surge bastante tarde no vocabulário grego, substituindo a anterior ideia de isonomia, conforme a defesa feita por Heródoto. Se em468 a.C. é utilizada por Ésquilo, juntando demos e kratos, só em finais do século V, é que, com Tucídedes, entra na linguagem comum.

 

Se, para o sofista ateniense Protágoras, significa que todos os homens têm capacidade para fazer um juízo político, eis que, a partir do discurso de Péricles, se transforma em aspiração universal, ao assentar nos princípios da igualdade e da maioria, numa altura em que o modelo ateniense ainda era uma democracia mais directa do que representativa, por dominar a metodologia do uso da palavra, com a preponderância do debate oral no processo de formação das decisões e com um efectivo diálogo directo entre os governantes e os governados.

 

Actualmente, a democracia não é o governo directo do povo, mas o governo de todos através de representantes escolhidos por todos, assentando nos mecanismos da igualdade de direito, da liberdade de expressão e do fair trial. Em termos sintéticos, podemos, pois, dizer que a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo, de acordo com a regra da maioria, mas tolerando a oposição das minorias.

 

Tanto exige a participação política da massa popular nas decisões, como impõe que a regra da maioria se submeta ao processo de separação dos poderes e ao regime de controlo do poder, impedindo o esmagamento das minorias. Assenta na liberdade de expressão de pensamento e de associação e tem como fundamentalismo a autonomia e a dignidade da pessoa humana, bem como a noção de indivíduo, tendendo a consagrar, como meta justicialista, a igualdade de oportunidades.

 

Subscrevemos a definição de democracia de João Paulo II, como aquele sistema que assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se trone oportuno. Repetimos o que dela disse o sexto presidente norte-americano, John Quincy Adams: a democracia é o autogoverno da comunidade pela vontade conjunta da maioria dos seus membros.

 

Podemos até caracterizá-la, de acordo com a perspectiva de Robert Dahl, em Democracy and its Critics, de 1989, como uma ordem política que exige sete condições: cargos electivos para o controlo das decisões políticas (elected officials); eleições livres, periódicas e imparciais (free and fair elections); sufrágio universal (inclusive suffrage); direito a ocupar cargos públicos (right to run for office); liberdade de expressão (freedom of expression); existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação (alternative information); direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse (associational autonomy).

 

Sabemos, contudo, que há sempre degenerescência, essa mudança pela qual uma coisa perde as qualidades que tinha na sua origem, desviando-se da sua natureza, abastardando-se e mudando de sentido, pelo que entra em disfunção. Os clássicos do pensar a polis já salientavam que todo o poder político está sujeito a corromper-se, salientando que movimento da degenerescência é provocado pela desagregação do múltiplo a partir do uno, quando o uno não consegue a harmonia. Quando cada cidade não é uma, mas muitas, como salienta Platão. Quando são pelo menos duas, inimigas uma da outra, uma dos pobres e outra dos ricos. Quando a cidade não consegue aumentar, permanecendo unida. Quando a cidade cresce na multiplicidade e não na unidade e não se alarga como um círculo.

 

Max Weber (1864-1920) fala em democracia de massa, no aparecimento de um poder anónimo, porque a organização burocrática chegou habitualmente ao poder na base do nivelamento das diferenças económicas e sociais (…) a burocracia acompanha inevitavelmente a moderna democracia de massa, em contraste com o Governo autónomo e democrático das pequenas unidades homogéneas. Opõe-se à auto-administração democrática de pequenas unidades homogéneas.

 

Alexis de Tocqueville, nesta obra de 1836-1840, considera que os pilares da democracia são a igualdade e a liberdade. Reconhece que a igualdade política pode ser conseguida pelo terror (a igualdade de todos perante o tirano) ou pela liberdade (a igualdade de todos na sociedade civil). Porque há uma liberdade democrática, onde o poder existe no seio da sociedade, e uma tirania democrática, onde o poder é alguma coisa de exterior à sociedade e que a oprime. Distingue, assim, entre a sociedade civil e a sociedade política, ou Estado. Se, nalguns países, o poder é exterior ao corpo social, actuando sobre ele e obrigando-o a marchar num determinado sentido, noutros, os que ele prefere, a força está dividida, estando colocada na sociedade e fora dela. Na América não há esta distância, esta separação do poder (força) e da sociedade. O poder está metido na sociedade civil: sociedade age por ela mesmo e sobre ela mesmo. Não existe poder (puissance) a não ser no seu seio; não se encontra mesmo quase ninguém que ouse conceber e sobretudo exprimir a ideia de o procurar fora. O poder circula na sociedade civil, no seio do povo que exprime a sua liberdade através do sufrágio universal (1ª parte, vol. I). Considera que a verdadeira democracia é uma democracia social, o governo da sociedade civil, o processo pelo qual a liberdade emerge da igualdade social  e contribui para manter essa igualdade. Neste sentido, considera que a igualdade é superior à liberdade, salientando que a vantagem da democracia não é, como se diz, favorecer a prosperidade de todos, mas apenas servir para o bem-estar do maior número, o que se consegue produzindo a igualdade social, através da difusão da propriedade por uma classe média cada vez maior.  Na 4º parte do II volume aborda o absolutismo democrático; a democracia e a alienação dos povos; quais os meios a utilizar para defender a liberdade ameaçada: a Providência não criou a espécie humana para ser inteiramente independente ou inteiramente escrava. Traça, realmente, em torno de cada homem, um círculo fatal do qual não pode sair; mas, dentro dos seus vastos limites, o homem é poderoso e livre. E os povos também. Critica a omnipotência política da maioria, distinguindo entre a igualdade política e a igualdade social, salientando que a igualdade  pode estabelecer-se na sociedade civil, mas nunca pode reinar no mundo político. Os povos querem a igualdade e a liberdade. Mas, se têm um gosto natural pela liberdade, já assumem uma paixão ardente pela igualdade. Assinala a eventual emergência de um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e doce provocado pela circunstância de sermos permanentemente solicitados por duas tendências opostas: sentirmos a necessidade de sermos dirigidos e o desejo de continuarmos livres. O despotismo surge assim através de novos aspectos, nomeadamente quando o soberano estende os braços para abarcar a sociedade inteira, e cobre-a de uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual mesmo os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão romper para se distinguirem da multidão. Surge assim uma servidão, ordenada, calma e doce, uma espécie de compromisso entre o despotismo e a soberania do povo. Tocqueville referia o despotismo democrático e a tirania colectiva, considerados como o governo de um único que, à distância, tem sempre por efeito inevitável tornar os homens semelhantes entre si e mutuamente indiferentes à sua sorte. Proclama que o indivíduo é o melhor juiz do seu próprio interesse, não tendo a sociedade o direito de intervir nas suas acções a não ser quando se sente lesada por elas ou quando tem necessidade do seu concurso e a dizer que só se conhece um processo para impedir que os homens se degradem: é o de não conceder a ninguém um poder absoluto, susceptível de nos envilecer, pelo que o processo mais eficaz, e talvez o único que resta, para interessar os homens pelo destino da sua pátria, é levá‑los a participar no Governo.

John Stuart Mill (1806-1873), como Tocqueville, teme o despotismo da maioria, considerando necessário o reforço dos direitos das minorias e até a valorização do excêntrico. Importa defender a diferença para se evitar a tendência para a uniformidade e a mediocridade. Porque a espécie humana não é infalível, torna-se, assim, indesejável a unidade da opinião. Só com a diferença e o próprio confronto das opiniões é que se consegue o progresso. If all mankind minus one, were of one opinion, and only one person were of the contrary opinion, mankind would be no more justified in silencing the one person, than he, if he had the power

 

Raúl Proença assume-se como um adepto da democracia liberal e socialista, tentando conjugar o idealismo e o realismo. Diz distanciar-se de idealismos como o anarquismo, o comunismo puro, o pacifismo e o absoluto universalismo e cosmopolitismo, mas quer combater o realismo determinista da Action Française, assumido, como ele injustamente diz, pelos integralistas portugueses.

 

Considera que estes aceitam a redução do superior ao inferior, quando advogam o naturalismo, o fatalismo e o determinismo da hereditariedade, da história, das tradições, das necessidades inelutáveis. Acusa-os de darwinistas sociais. Acolhe o realismo, mas apenas numa perspectiva relativista e progressista. Assim, contra a perspectiva daquilo que considera as fórmulas nacionalistas, tradicionalistas, antidemocráticas e autoritárias do integralismo, quer vincar as suas ideias sobre pátria, tradição, democracia e autoridade. Sobre a pátria, tanto repudia o chamado universalismo, visando a constituição de uma pátria humana, de uma cosmopolis, de uma república universal, sem a realidade das fronteiras nacionais, como o belicismo e a necrolatria. Sobre a tradição, considera que esta não pode ser um critério suficiente, devendo ser entendida como criação continuada. A democracia deveria ser liberal e socialista, conforme os modelos da Inglaterra, dos países escandinavos e da Austrália, onde a autoridade teria de conciliar-se com a liberdade, sendo o contrário do autoritarismo e da intolerância. Mostra também simpatia pelos radicais-socialistas franceses, citando Julien Benda e Alain, mas também invocando Hume e Stuart Mill. Talvez tenha tido emoção de mais. Percebeu que a I República se esgotara em homens e ideias e percebeu que as soluções de futuro estavam a ser comandadas pelos integralistas, fazendo-lhe um activo combate doutrinal. Teve intuição de uma perspectiva terceirista, mas não conseguiu elaborar um sistema completo de doutrina, até porque não teve suficiente integração numa corrente europeia.

 

 

Domingos Monteiro (n. 1903), num livro de 1932, Crise da Idealismo na Arte e na Vida Social proibido de circular pelo governo de António de Oliveira Salazar (1889-1970), denuncia tanto as democracias imperfeitas e a ditadura violenta da Rússia como as ditaduras italiana e alemã, consideradas como uma ameaça para a paz do mundo. Criticando a democracia vigente, chama-lhe democracia de fachada, defendendo outra em que desapareçam não só os despotismos centrais mas também os despotismos privados, aquela em que a liberdade abstracta se transforme em liberdades concretas, em que a igualdade tenha uma base e um sentido económico, em que a fraternidade não morra como uma ave ferida, nos silveirais das fronteiras.

 

Democrature Obra de Guy Mermet de 1987, subtitulada Comment les Médias Transforment la Démocratie. Nela se fala dum novo sistema social onde os media exercem sobre os actores da vida social e sobre o público uma espécie de ditadura doce, marcada pelos funcionários do pronto a pensar que fornecem aos ouvintes e aos telespectadores verdades pré-digeridas e directamente assimiláveis.

 

Vontade geral Para Rousseau, a verdadeira fonte da soberania. Difere da vontade de todos, porque não olha a outra coisa senão ao interesse comum. Para Kant, a vontade geral (allgemeiner Wille) torna-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal. A ideia central de Rousseau no Contrat Social está na distinção que faz entre a vontade geral e a vontade de todos. Se esta última é a que olha ao interesse privado (intérêt privé) e não é mais do que a soma de vontades particulares, já a vontade geral  não olha a outra coisa que não seja o interesse comum (intérêt commun), logo é sempre recta e tende sempre para a utilidade pública. Esta ideia remonta aliás ao Discours sur l’Économie Politique, onde aparece identificada com a vontade do ser moral que é o corpo político e que tende sempre para a conservação e para o bem estar do todo e de cada parcela, sendo a fonte das leis, e a regra do justo e do injusto. Nessa mesma obra, Rousseau, identifica-a com a própria lei natural, no caso da grande cidade do mundo se tornar corpo político, onde os Estados e os povos diversos não são senão membros individuais. O geral assume-se assim como o contrário do particular. Porque qualquer sociedade política é composta de outras sociedades mais pequenas, de diferentes espécies, onde cada uma tem os seus interesses e as suas máximas. Assim, a vontade destas sociedades particulares tem sempre duas relações: para os membros da associação, é uma vontade geral; para a grande sociedade, é uma vontade particular, de tal maneira que aquilo que aparece como correcto, segundo a primeira perspectiva, pode surgir como vicioso, na visão da grande sociedade. Segundo Karl Wolfgang Deutsch (1912-1992), a vontade de todos não passaria da maioria das vontades particulares, não fundamentada no interesse comum de toda a comunidade, enquanto a vontade geral é a soma de todos aqueles interesses que as pessoas possuem em comum. Para António Sérgio, a vontade geral é a vontade de cada um de nós, a vontade de qualquer indivíduo humano, sempre que o indivíduo quando se propõe actuar, tome uma atitude de pensar objectiva, racional, geral, desprendida dos limites do seu eu sensível. O ente animado de vontade geral é aquele em que o Cidadão coincide com o Homem, aquele que subir do indivíduo à pessoa, do plano biológico ao plano do Espírito, universal e imutável. A nossa vontade é uma vontade geral sempre que se determina pela regra de Kant: procede de tal maneira que a razão do acto que praticas se possa erigir em lei geral, universal. Numa nota de rodapé  do livro III do capítulo II de Du Contrat Social, Rousseau salienta: cada interessse, diz o marquês d’Argenson, tem  princípios diferentes. A concordância de dois interesses particulares forma-se por oposição de um tereceiro. Ele teria podido acrescentar que a concordância  de todos os interesses se forma por oposição ao de cada um se não houvesse interesses diferentes, apenas se sentiria o interesse comum, que nunca encontraria obstáculo: as coisas aconteceriam por si e a política deixava de ser uma arte.

 

Hannah Arendt (1906-1975) chama a atenção para o facto desta nota conter a chave do conceito de vontade geral de Rousseau, salientando que o facto dela aparecer unicamente em pé de página mostra apenas  que a experiência concreta de Rousseau da qual derivou a sua teoria se torna tão natural para ele que quase não pensou que merecesse ser mencionada. Para a mesma autora, se esse terceiro, até Rousseau, era o inimigo comum que deveria ser encontrado no domínio dos negócios estrangeiros (cita, a propósito Saint-Just para quem seules les affaires étrangères relevait de la politique, tandis que les rapports humaines formaient le social, eis que, a partir do genebrino, passou a considerar-se que tal inimigo existia dentro do peito de cada cidadão, ou seja, na sua vontade e interesse particulares, onde a vontade é uma espécie de articulação automática do interesse, pelo que a nação não precisa de esperar por um inimigo externo, dado que a respectiva unidade é garantida enquanto cada cidadão transportar dentro de si o inimigo comum e para tomar parte no corpo político da nação, cada cidadão dever erguer-se e manter-se em rebelião constante consigo próprio, onde o valor de um homem pode ser julgado pela medida em que ele actua contra o seu próprio interesse e contra a sua própria vontade. Era como se Rousseau, na sua revolta contra a razão, tivesse visto uma alma dividida em dois no lugar da divisão em dois da unidade que se manifesta no diálogo silencioso consigo próprio e a que chamamos pensamento. E desde que essa divisão da alma é um conflito e não um diálogo, ela produz paixão no seu duplo sentido de sofrimento intenso e de intenso arrebatamento.

 

Como salienta Luc Ferry, a ideia de vontade geral, isto é de uma dominação da sociedade pelo homem, com o seu correspondente, a soberania do povo, cria, na realidade, apesar da aparência de liberdade que introduz, as condições de possibilidade de um novo género, de dimensão infinitamente mais extensa que as tiranias conhecidas no Antigo Regime: a vontade do povo sendo precisamente o único princípio de legitimidade, basta apenas  que seja desviada em seu proveito por uma assembleia ou por um homem para que eles se vejam investidos de um poder propriamente ilimitado. Porque Rousseau não é ainda um verdadeiro moderno; ele conserva da monarquia do antigo regime a ideia voluntarista do poder‑ causa da sociedade e a exigência do primado do todo, mesmo que este primado não esteja materializado na pessoa do princípe, mas assimilado a esta entidade imanente ao social que é a vontade geral

 

Apesar de receber estes sinais agressivos do ambiente, prefiro notar como, durante estes dias de dor e esperança, confirmei como a rede familiar e das amizades é bem superior a uma “polis” que vive fechada dentro de si mesma, em claustrofobia endogâmica, no poder pelo poder. Eu, por exemplo, sem deixar de peregrinar, nos intervalos hospitalares, pelo beneditino das minhas investigações profissionais, concluí como cada um de nós é especialmente conformado pelos livros de ideias que foram publicados no ano em que nasceu. Eu, por exemplo, tenho como livros de cabeceira, um “Homem Revoltado” de Camus, ou um “Sistema Totalitário” de Hannah Arendt, assumindo-me como avô de mim próprio. Por mim, confirmo como as ideias a que mais recorro, as que fazem do tempo, o meu tempo, têm uma longa duração tal que as colocam no extremo inicial da minha própria existência.

 

Assim, vivi metafísica, afagando os sinais de eternidade que me chegaram e me lançaram no próprio movimento de uma corrente de concepções do mundo e da vida, onde, prendendo-me a estas profundidades, perdi a voz própria e passei a falar através de tais causas. As que me fazem comungar em crenças, princípios e valores. Porque assim nos libertamos do narcisismo de quem, por vezes, tem a ilusão de poder atingir a originalidade. Sermos servidores de uma crença é podermos receber alento de um transcendente situado que nos pode levar a assumir a plenitude existencial e a consequente metafísica do tempo que passa.

 

Logo, sempre reconheço que é possível diluir-nos em todos os outros. Que cada um pode ser mais do que um qualquer solitário eu. Porque ninguém sabe o mistério das folhas por escrever que, apesar de  estarem presas ao caderno das próprias circunstâncias, são apenas espaços a preencher pelo imprevisível e pela mudança. Mesmo sabendo de onde viemos e no que acreditamos, não sabemos para onde vamos. Embora possamos reconhecer qual o nosso dever-ser-que-é, resta-nos apenas o mero reconhecimento da nossa imperfeição. Sobretudo se notarmos como temos o pior dos défice que é o de não sabermos amar o mais próximo e todos os próximos, quando não nos damos em comunhão a essa raiz do próprio mais além, cujo fundamento é o que melhor, do mundo, podemos recolher.

 

Jan 28

Portugal, entre as Arcadas e a Rua do Ouro. No Jornal de Negócios de hoje

O principal produto de um sistema político, a decisão orçamental, deveria ter sido sustentado por uma adequada troca de informação entre governantes e governados, bem como pela própria troca de informação horizontal entre os governados. Mas, como sempre, preferimos reduzir o sistema político às enferrujadas canalizações representativas da partidocracia, assumindo-o como uma coisa que pode conquistar-se sem interacção. Isto é, quisemos esquecer que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências, que ela não é uma coisa mensurável pela física do poder, mas bem mais pela estratégia, onde as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades, e vice-versa. Continua a não haver nerves of government e adequada retroacção da informação capaz converter os apoios e as exigências em decisões políticas. Porque é pela informação, pelos sensores dos centros de recepção de dados, que o sistema político contacta com o respectivo ambiente, com os outros subsistemas sociais e com os outros sistemas políticos. É pela operação de processamento de dados, confrontando mensagens do presente com informações arquivadas no centro da memória e dos valores, que o sistema político pode, ou não, adquirir autonomia e identidade. É depois, no estado-maior da consciência, onde se selecciona a informação presente e passada e se confronta este conjunto com as metas programáticas, que o sistema político prepara a pilotagem do futuro em que se traduz a governação. Por outras palavras, o nosso principal défice democrático está na falta de uma adequada democracia fiscal. A maioria dos votantes ainda não percebeu que o Estadão não dá nada, apenas distribui o que recebe, cobrando a grossa fatia das comissões que alimentam os empregados do aparelho e os desmandos do clientelismo e da compra e venda do poder… Deste modo, os bastidores da negociação orçamental demonstraram como a política continua a depender do paternalismo dos vigilantes banco-burocráticos, essa discreta entidade que, de vez em quando, tem ministros das finanças que se assumem como agentes duplos da partidocracia e da secção lusitana da geofinança, entre a Rua do Ouro e as Arcadas do Terreiro do Paço. Eles, e elas, apenas são os nossos representantes, isto é, aqueles que estão presentes em vez do Outro, esse transcendente situado chamado povo. Eles são um Estado que devia ser o Nós, mas, por deficiências educativas Pombalinas, afonsistas e salazarenta s, ainda julgamos que o Estado são Eles, a soma dos Eus que votam contra ou a favor do Orçamento que Nós, cada um de Nós, pagamos. Chamam-nos Contribuintes, mas apenas somos Impostados. E a culpa da escravatura está nos próprios Escravos que não se alevantam em adequada revolta dos Escravos, como diria um tal de Beaumarchais. Por mim, não tenho gostar de uma qualquer dessas figurações da laicíssima trindade, ou da quadratura sem círculo, do situacionismo de sempre. O que é verdadeiramente comum não devia ser de nenhum…