Jan 03

DITADURA DA INCOMPETÊNCIA AINDA TEM RESURSOS

Previsões feitas em 3 de Janeiro de 2010. Correio da Manhã

“DITADURA DA INCOMPETÊNCIA AINDA TEM RESURSOS’

Nome: José Adelino Maltez.

Idade: 51 anos.

Carreira: Doutorado em ciência política, lecciona no ISCSP e na Faculdade  de Direito de Lisboa. Diz-se “da direita, porque é liberal à antiga”.

- Acredita que o governo de José Sócrates vai resistir aos ataques das oposições e sobreviver a 2010, apesar da minoria parlamentar?

- Sócrates pode resistir tanto como António Maria da Silva, dado que os instrumentos de controlo social da presente ditadura da incompetência, ainda tem suficientes recursos para que continue a teatrocracia de endireitas contra canhotos, para que os bonzos finjam que o rotativismo devorista permaneça. Quando, entre eles, se trocam qualificações como “inimputável”, “palhaço”, “vendido”, “esquizofrénico”, “aldrabice”, “trafulhice”, “tropa-fandanga”, “burrice”, eles apenas confirmam que o o Estado são eles. Vale-nos que temos um povo com brandos costumes, mas que, sem ser por acaso, é o que mais assassinou figuras cimeiras do Estado no século XX. Temam a revolta dos mansos!  Contrapartidas de armamento, trocas do BPN, afundações, baldrocas do BCP, sucatas e escutas, é, o grão a grão, com que se vai enchendo o papo. Não o da revolta. Não o da indiferença. Mas o do desprezo.

- É de esperar que algum partido da Oposição apresente uma moção de censura ao Governo?

- O sinal dado pelo bolinho de mel do jardim madeirense em São Bento, se é menos do que um queijo limiano, pode ameaçar a funcionalidade da confraria do azeite porteira. Até o PS já concluiu que a democracia pode funcionar com o apoio do que apodava como défice democrático. A velha raposa de Alberto João, apesar de continuar a dizer que é perseguido por certa maçonaria internacional, tornou-se lebre….

- A acontecer um cenário de queda do actual Governo, como acha que os eleitores vão reagir?

- Julgo que se vive uma espécie de degenerescência íntima do regime, naquilo que qualifico como privatização clandestina dos antigos serviços públicos, pela sublimação da velha engenharia feudal da cunha, destruidora da meritocracia. E tenho a consciência que alguém assumir um programa anti-estatista em Portugal, onde há quase um quinto do eleitorado a votar PCP e BE, como um enorme centrão socialista e social-democrata e um PP pouco liberal, será mera voz que clama num deserto de utopias intervencionistas que são a principal causa de sucessivas derrotas dos portugueses…

- No PSD discute-se a liderança. É de esperar que o próximo líder consiga pôr o partido a falar a uma só voz, ou vamos continuar a ver o PSD dividido, continuando os ataques ao líder a ser a regra?

- O PSD enredou-se na função de ser outra face da mesma moeda do rotativismo devorista. Aqui e agora, o situacionismo dos vários estados a que chegámos, sobretudo o dos micro-autoritarismos sub-estatais, já não teme esse tipo de opositores, os tais que podem tornar-se convivas da alternância na gamela. Apenas odeia os dissidentes que não se transformam na oposição que lhes convém e que não se confundem com os tradicionais inimigos da democracia. Apenas desejava que o partido de Sá Carneiro retomasse a sua pulsão libertacionista dos tempos da fundação.

- Educação e Justiça têm sido, nos últimos anos, as pastas mais sensíveis da governação. Que novidades podemos esperar nestas áreas durante o próximo ano?

- Apenas recordo um Mouzinho da Silveira que, ainda no Porto, em plena guerra de pedristas contra miguelistas, logo se demitiu da pasta da fazenda, quando resistiu ao oportunismo das expropriações, a velha tentação absolutista, a que continuam a dar o nome de Estado… Aliás, quando acusam os liberais de anti-estatismo, esquecem que quem edificou o Estado Contemporâneo foram as revoluções liberais. E o nosso resultou do programa de Mouzinho da Silveira, quando centralizou os impostos que o povo sempre pagou, mas que no “Ancien-Régime” eram desviados para o clero e a nobreza, ordens às quais cabia as políticas de educação, saúde, defesa e segurança! Por mim, continuo a dizer que quanto mais estatismo, mais corrupção! Sobretudo quando surge o Estado-Empresário que se transforma em patrão, tanto através de ‘empresas públicas’, como de ‘empresas de regime’. Mesmo nos ditos países nórdicos da Europa, se há um robusto Estado-Companhia de Seguros, não há nenhuma tentação de intervencionismo na economia… Por outras palavras, o direito não é a vida. O direito vigente são meras relações jurídicas, isto é, uma minoria das relações sociais. Logo, nem tudo o que é lícito é honesto e a licitude nem sequer corresponde a um mínimo ético. Porque a moral  e o direito não são círculos concêntricos, apenas coincidem nalguns segmentos. Hoje foram totalmente confundidos pela tele democracia.

- Em 2011 há eleições presidenciais, pelo que é de esperar que as candidaturas apareçam em 2010. O cenário de confronto entre Cavaco Silva e Manuel Alegre é o mais provável?

- O cenário dos presidenciáveis, pode ser a melhor demonstração de que, em muitos cargos electivos, o colégio eleitoral é previamente controlado pelos que podem lançar os nomes dos plebiscitáveis ao povo. Por outras palavras, no ano de 2010 vão jogar os influentes que querem nomear Alegre como candidato do povo de esquerda, procurando reduzir Cavaco à resistência do chamado povo de direita e colocando o situacionismo do PS entre o martelo e a bigorna, porque, em qualquer dos casos fica entalado… Isto é, vivemos num sistema bem mais gravoso do que o censitário, dado que há uma colecção de elegíveis, definidos pelos restritos electivos que os previamente eleitos nomeiam, para que, de eleitos, passem a elites que nada têm a ver com o mérito.Porque o essencial do poder conquistado (o estadão a que se chegou) é o mesmo procurar manter-se, com muita música celestial disfarçando o ‘apartheid’. Quem diz organização, diz necessariamente oligarquia, isto é, a degenerescência da aristocracia, e na véspera do cesarismo

- Em 2009, a relação entre Cavaco Silva e José Sócrates foi marcada por várias polémicas e desentendimentos públicos. O que podemos esperar do entendimento entre o Presidente da República e o primeiro-ministro?

- Pouco interessa esse teatro de indícios que alimenta comentadores e analistas, como o tenho sido. O importante, em Portugal, não é ser ministro, é tê-lo sido. Sobretudo, quando ainda se têm colegas no poleiro. Sempre podem ser um importante elemento de consultadoria e pressão, por causa dos meandros da mesa do orçamento. E, entre um grupo empresarial de obras públicas e um estabelecimento de ensino, pouca é a diferença de pecado, na privatização já não clandestina do que deveria ser público.

- Com o desemprego a pressionar as despesas do Estado e o défice das contas públicas em aparente descontrolo, será possível ao Governo manter a promessa de não aumentar mais impostos?

- Quando os jornais, no século XIX, substituíram o púlpito, dizia-se que conquistar o poder era conquistar a palavra. Desde Kennedy que entrámos em mediacracia mais videopoderosa. Política já não é apenas o que parece, mas a percepção do homem comum sobre o que aparece e que pode não ser o que é previamente ensaiado pelas agências de comunicação. Por outras palavras, se é inevitável o realismo de quebra do ciclo do endividamento, com medidas drásticas, temo que continuemos a música celestial de mais “imagem, sondagem e sacanagem”.

- Quais são, no seu entender, os temas que mais vão marcar o debate politico em 2010?

- Anda tudo irascível, sempre à procura do adjectivo demoníaco que dê uma desculpa para ninguém dialogar com o adversário. Todos parecem carecer daquela ciência certa do ideologismo e daquele poder absoluto que adora pisar o opositor com um insulto. Será que o novo D. Sebastião não passa de um contabilista que se assuma como disciplinador externo? Alcácer-Quibir ainda nos mata. Depois do ‘sebastianismo científico’, o do esquerdismo marxiano ou fascisóide, e do sebastianismo merceeiro, o da ditadura das finanças, há muitos que anseiam por um qualquer invasor suave que nos traga ‘a bela ordem’, sobretudo se ele chamar ‘libertação’ à efectiva ocupação heterónoma das coisas e das mentes.

- A aprovação do tratado de Lisboa abriu lugar a várias mudanças na União Europeia. O que é que podemos esperar de diferente?

- O sonho de sempre, uma Europa, nação de nações, sem um super-Estado, mas com uma democracia de muitas democracias. O resto é saber se o Sarkosy sai do eixo e passa a preferir Londres a Berlim, de acordo com o ritmo da nova “Weltpolitik” de Washington…

- A discussão sobre a regionalização está de volta ao debate politico. Haverá, desta vez, condições para se fazer uma reforma administrativa desta natureza?

- Não sou socialista nem social-democrata, logo quero menos ‘Estados’, mais sociedade e mais autonomia dos cidadãos, enquanto indivíduos, porque importa reinventar o aparelhismo, para deixarmos de ter os ‘donos’ do costume. Essa abstracção chamada Estado passou a ser a medida de todas as coisas e ai de quem diz que devemos ter menos aparelho de Estado na economia e na sociedade, sobretudo quando já não há apenas o Estado português a que chegámos, mas um ‘Leviathan’ plural, desde a União Europeia ao modelo de globalização da hierarquia das potências…

- Em relação à sua vida pessoal e profissional , que projectos tem para 2010?

- Acabar o livro dito científico que tenho em conclusão e voltar ao livro de poesia que está quase em ritmo de unidade de sonho. Isto é, continuar o programa de viver como penso, mesmo que venha a ser, mais uma vez, punido pelas máquinas do respeitinho. Tenho péssimas relações com o poder quando ele entra em ilusão revolucionária ou em decadência situacionista…O essencial da nossa permanecente crise é, como dizia Sérgio Buarque de Holanda, a grande dificuldade de adaptação às virtudes do cálculo que estão na base dos formais ‘planeamentismos’ colectivos, esquecendo a procura do paraíso pelos homens concretos, com aventura e pragmatismo… O nosso individualismo tem a ver com a aventura, pela visão de um Paraíso, misto de riqueza mundanal e beatitude celeste. Quando somos criativos e imaginativos como povo, não costumamos rimar com comemorativismos nem com subsidiologia…

Jan 03

Sete pedacinhos de mais além em domingo de chuva

Acordo. A chuva inunda as ruas. O primeiro domingo deste último ano da década é um acontecimento que nunca mais se repetirá. Porque pode ser vivido por milhões de seres que também nunca se repetirão. Os homens ditos comuns são coisas que intelectuais, políticos e produtores do videopoder desleixam, como simples massa ou multidão, violável pela solidão. Porque tais manipuladores do “agenda setting” olham os seus semelhantes como pasta a cilindrar pelo rolo compressor da mensagem com que nos procuram profanar… Esses pretensos homens-mais-do-que-homens parecem esquecer que há uma reserva inalcançável dentro de cada um, o simples segredo da dignidade da pessoa humana, a tal que só pode desabrochar em ser quando se descobre além, ao compreender que, por dentro de si mesma, é que tais coisas realmente são… O sopro do eterno não vem do hábito nem do monge, mas daquele acaso procurado que o sagrado deixou no mais íntimo e mais divino de quem somos. Se somos deste lugar e deste agora, há, no mais íntimo do tempo que passa, o que, estando aqui, é aristocraticamente de todos, essa procura incessante de um sinal que nos dá o mais além. Diante de um desses normais anormais da natureza, de pouco valem discursos de presidente ou sermões de cónego. Os profissionais do sagrado, e os seus comentaristas e glosadores, são tão profanos quanto os praticantes acríticos de qualquer fé, incluindo a da religião secular. Todos nos dividimos e separamos apenas por não sabermos quem na verdade somos. São ondas em fúria, a Norte, terras deslizando, a Sul, um vulcão nas Filipinas, ou uma depressão tropical nas Linhas de Torres. É o normal anormal da cultura contra o que estava aqui antes de o homem se acrescentar, inventando obras sobre a paisagem, incluindo a casa, a praça pública, o livro ou o um milhão e duzentos mil portugueses que comunicam pelo “Facebook”, inventando como brincadeira de rapaziada para os dormitórios de Harvard. Não existe apenas aquilo que pode medir-se e experimentar-se, em laboratório ou tabelas de registo de obra feita. Há também um todo a que só pode aceder-se pela intuição da essência. A que exige conversão, litúrgica ou poética, ao risco da mudança, nessa mistura de aventura e pragmatismo, a que se chamam viver em comum.