Sete pedacinhos de mais além em domingo de chuva

Acordo. A chuva inunda as ruas. O primeiro domingo deste último ano da década é um acontecimento que nunca mais se repetirá. Porque pode ser vivido por milhões de seres que também nunca se repetirão. Os homens ditos comuns são coisas que intelectuais, políticos e produtores do videopoder desleixam, como simples massa ou multidão, violável pela solidão. Porque tais manipuladores do “agenda setting” olham os seus semelhantes como pasta a cilindrar pelo rolo compressor da mensagem com que nos procuram profanar… Esses pretensos homens-mais-do-que-homens parecem esquecer que há uma reserva inalcançável dentro de cada um, o simples segredo da dignidade da pessoa humana, a tal que só pode desabrochar em ser quando se descobre além, ao compreender que, por dentro de si mesma, é que tais coisas realmente são… O sopro do eterno não vem do hábito nem do monge, mas daquele acaso procurado que o sagrado deixou no mais íntimo e mais divino de quem somos. Se somos deste lugar e deste agora, há, no mais íntimo do tempo que passa, o que, estando aqui, é aristocraticamente de todos, essa procura incessante de um sinal que nos dá o mais além. Diante de um desses normais anormais da natureza, de pouco valem discursos de presidente ou sermões de cónego. Os profissionais do sagrado, e os seus comentaristas e glosadores, são tão profanos quanto os praticantes acríticos de qualquer fé, incluindo a da religião secular. Todos nos dividimos e separamos apenas por não sabermos quem na verdade somos. São ondas em fúria, a Norte, terras deslizando, a Sul, um vulcão nas Filipinas, ou uma depressão tropical nas Linhas de Torres. É o normal anormal da cultura contra o que estava aqui antes de o homem se acrescentar, inventando obras sobre a paisagem, incluindo a casa, a praça pública, o livro ou o um milhão e duzentos mil portugueses que comunicam pelo “Facebook”, inventando como brincadeira de rapaziada para os dormitórios de Harvard. Não existe apenas aquilo que pode medir-se e experimentar-se, em laboratório ou tabelas de registo de obra feita. Há também um todo a que só pode aceder-se pela intuição da essência. A que exige conversão, litúrgica ou poética, ao risco da mudança, nessa mistura de aventura e pragmatismo, a que se chamam viver em comum.

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