Há dias em que, quando começamos a bloguear, não sabemos que linhas nos acontecerão neste escrever-nos todos os dias. Sabemos apenas que anteontem se comemoraram os dezassete anos dos acontecimentos de Tian An Men, coisa que aconteceu um pouco antes da queda do Muro, e, agora, reparamos que, tudo como dantes, com o homem de sempre, sem fim da história, com os américas a fingir que mandam no mundo, com os comunistas sem ideologia a policiar a China e com muitos outros “big brothers” a continuar este “animal farm”, de um capitalismo sem freio gerido ou ditatorializado por socialistas de muitas características, incluindo o barrete de saloio e os olhos em bico, nomeadamente o de papagaio. Por mim, que sempre fui pouco dado a exotismos regeneradores, chamem-se cientismos, cursos de cristandade, esquerda revolucionária, espiritismo, budismo ou numerologia, tenho agora de enfrentar esta cultura dominante da globalização, esta moda que demora a passar de moda e que, desde o pós-guerra, nos tenta unidimensionalizar de forma “hollywoodesca”, mesmo quando se disfarça em teses de doutoramento ou crítica literária. Fazemos da bandeira e da bola a nossa identidade e tudo sublimamos com um eventual golo de Ronaldo ou uma bastonada policial no dorso de um desordeiro, como se o futebol não fosse a continuação da guerra por outros meios e esta uma ilusão de jogo sem regras. Sinto que, entre o poder-ser e o ser, entre as expectativas e as realizações, continuamos um império frustrado que vai de Baucau a Marienfeld. Mas Scolari tanto não vai ser o húngaro Bella Gutman, como nem sequer pode atingir a dimensão magriça de Otto Glória. Já não somos pátria de Vicente e Eusébio e na Académica já não joga o macaísta Rocha. O velho futebol lusotropical, desse imenso império colonial, apenas serve de breve droga para o infinito silêncio desta frustração, onde só alguns sinais de mistério nos revolvem. E não é por acaso que a geração grisalha que nos governa foi buscar o “slogan” regenerador a John Kennedy, para termos a ilusão salvífica dos “action men”. É por isso que reparo em duas efemérides de hoje: o assassinato de outro Kennedy, o Robert, em 1968, e o nascimento de um tal Adam Smith, no ano de 1723. O tal que em 1776 publicou An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, onde, numa simples nota de pé de página, considerou que há uma espécie de ordem onde o homem é levado por uma mão invisível a apoiar um objectivo que não fazia parte da sua intenção. Mas o que dele ficou foi, sobretudo, o que viríamos a designar pelo princípio hedonístico do interesse pessoal, segundo o qual os homens procuram melhorar a sua situação económica, procurando o máximo de satisfação com o mínimo de esforço, salientando que os motivos egoísticos e a espontaneidade das instituições realizam inconscientemente a providência. Porque Deus escreveria direito por linhas tortas, a coisa mais próxima de tal pré-liberalismo protestante tem a ver com o acaso procurado do bushismo que, entre nós, vai sendo traduzindo por vanguarda pelos chamados “neolibs” e “neocons” que, invandindo a chamada direita, me fazem fugir dela como Mafoma do toucinho, perdoe-nos o presidente do Irão, que não quis dizer diabo da cruz, para não irritar os crentes cá das alfurjas. Sou mesmo liberalão, mas de outra família menos providencialista. Considero que não é a história nem Deus que fazem a história, mas o homem, os limitadíssimos homens que, somando individualismos de sonho, razão, vontade e imaginação, conseguem escrever a história, mesmo sem saber que história vão fazendo, onde a mão invisível não é a da Providência, mas dessa criação divina que é a liberdade de cada um e todos os homens que assumam a humildade de servir de simples operários de correntes profundas que atravessam a história, feita, assim, co-criação de homens livres.
Daily Archives: 6 de Junho de 2006
Canalhocracia. Bonzos. Endireitas. Canhotos. I República
Hoje, sem novas significativas vindas de Marienfeld e com pouco mais de uma centena de GNRs pacificando Timor, segundo um duplo espectáculo televisivo que criou, nos dois lugares, a ilusão do veni, vidi, vinci que antes de o ser já o era, prefiro assinalar duas efemérides: o desembarque na Normandia do dia D, no ano de 1944, e a circunstância de D. Pedro V, no ano de 1856, ter chamado a oposição a governar, instaurando o pluralismo na monarquia liberal, numa atitude semelhante à que o povo provocou em 1979, com a vitória da oposição de direita, coisa que não aconteceu com a I República, pois a primeira vez que os oposicionistas venceram umas eleições, em 1921, logo se promoveu o assassinato de António Granjo, o jovem e talentoso líder de um governo liberal anti-afonsista, que se opunha aos bonzos do situacionismo. Aproveitando a deixa, não posso deixar de citar um mail recebido que Pedro Valente que, depois de uma interessante conversa que mantivemos, descobriu uma citação de Rodrigues Sampaio, na altura Vice-Presidente da Câmara dos Senhores Deputados: porque eu quasi que me chego a assustar de que acabe o deficit entre nós, com medo de que, acabando elle, acabe o systema parlamentar!”. In Acta da sessão da Câmara dos Senhores Deputados, de 10 de Junho de 1867, p.1874. Como o Dr. Pedro Valente me confessa, demorei um bocadinho a confirmar a citação e a fonte porque se trata de um período em que as actas parlamentares foram publicadas no Diário de Lisboa e não estão ainda completamente digitalizadas. Porque tal frase precede em mais de meio século a linha, mais conhecida, de Armindo Monteiro: “A história do deficit é a história das finanças portuguesas”. Com efeito, este último tem a capacidade de resumir, em cinco palavras, o debate em redor das finanças públicas portuguesas. Mas a citação de Rodrigues Sampaio tem uma força profética fabulosa.