Sou um puro e duro neto de campónios que, na cidade educado e vivido, quer ser rural, dado que lhe foi dado aprender e apreender o sentido das árvores, o correr das ribeiras, a breve leveza dos pássaros e a fragilidade das flores silvestres. Tenho também o desnível típico das breves colinas, o agreste das brisas e a variedade de um valado verdejante, onde a suavidade aparente daquilo a que, à distância, chamam paisagem, esconde alguns pedregulhos, certos silvados e a microscópica vida intensa de biológicos e minúsculos seres. Sobretudo, das formigas e das lontras que, dia a dia, escavam e levam pedaços de húmus e restos de bichos e plantas.
Humano, demasiado humano, assento meus pés nus no lodo e nas vísceras do quotidiano pecado, pleno de tentações e pulsões. Mas também não deixo de procurar olhar as estrelas, as noites de luar ou de, em pleno dia, ousar sentir de frente a violência solar.
Humano, demasiado humano, me sinto apenas um pedaço da minha própria história, tanto da pessoal como da colectiva, ambas imaginadas pela experiência.
É por isso que, às vezes, no silêncio da madrugada, me chegam súbitos sinais de vida e gritos por dar, talvez por causa do meu quotidiano treino no exercício da palavra como missão, que é pensar a palavra viva, para viver meu pensamento e sentir o que vou pensando.
É assim difícil classificar este sub-Bloco Central onde muitos se vão perpetuando em roubalheiras, clientelismos e favoritismos, nesta grande paródia da chamada política à portuguesa, onde é marcante a degenerada feira das vaidades, neste refúgio de interesseirismos onde todos correm para o efémero de uns minutos de telejornal, ou com a procura de uma dessas artificiais excitações político-jornalísticas que costumam marcar a chamada “rentrée”.
Aliás, quando diante de um papel tento olhar dentro de mim, sou palavras de Camões a escrever um Livro do Desassossego, ao ritmo das trovas breves que me transportam para a Praça da Canção. E nestes silêncios da solidão, há sempre a música de Carlos Paredes ou a beleza de um cântico colectivo a movimentar os patuleias que ainda não cederam à Convenção do Gramido e à Quádrupla Aliança, onde nos querem arrebanhar. Gosto de ser um homem livre de mãos livres. Resisto.
E sempre que recebo um desses papéis dos impostos, sinto-me desses profundos campónios que, por odiar o Estado, vai logo a uma caixa multibanco para se livrar da coisa e não ter que aturar a papelada que me liga ao monstro. Odeio o aparelho de Estado com todas as forças emotivas da minha alma, mantendo a raiva do velho anarquismo místico e desejando que a nação possa assumir-se comunitariamente sem o recurso aos constitucionalistas e aos aparelhos repressivos desse abstraccionismo piramidal, desse plurissecular despotismo do Leviathan.
O problema é que conheço o bicho. Fui licenciado em Direito. Alto burocrata em gabinetes ministeriais e direcções-gerais, sempre classificado como muito bom. Fui professor titulado em direito. Etc. Mas sei cientificamente o que é o poder e pagam-me para o estudar. Por isso me sinto bem longe desse mundo da gestão tecnocrática da coisa pública, bem como das excrescências que o mesmo tem produzido …
Porque são essas alimárias subtecnocráticas que servem de trampolim para o acesso ao poder de perdulários e bandoleiros, para gáudio de patriarcas e padrinhos que vão manejando os cordelinhos do chamado sistema, todos esses maquiavéis de cordel que nos fazem cadáver. Esses donos de tácticas sem estratégia e de discursos sem ideias que conseguem, pela flexibilidade do molusco, instrumentalizar a imoralidade neste oportunismo da barganha.
E assim nos vamos sucessivamente empobrecendo, sem que passemos a efectiva sociedade aberta, com mais liberdade e mais liberais, em sentido liberdadeiro e tolerante. O que não se consegue com discursos, mas apenas com um efectivo culto de um humanismo activista.