Conferência na Academia Militar

Revolução técnico-científica

 

 

O primeiro sinal da convergência mundialista talvez possa encontrar-se na chamada revolução técnico-científica, cujo marco fundacional passa pela invenção da máquina a vapor, na Universidade de Glasgow, em 1712, instrumento, depois, aperfeiçoado por James Watt, em 1769. Desencadeia-se, a partir de então, a era da máquina que estrutura a chamada revolução industrial que, começando nas Ilhas Britânicas, vai organizar o modelo económico e social capitalista do Ocidente.

 

 

 

Tal revolução técnico-científica vai ter consequências no plano das teorias com a emergência do cientificismo positivista do século XIX, quando passou a acreditar-se na chegada da ordem e do progresso, de uma nova idade, com que se pensava termos superado as algemas das idade teológicas e metafísicas, e que atingiu, nos começos do século XX, as dimensões do futurismo, quando Marinetti, em 20 de Fevereiro de 1909, proclamou encontramo-nos no promontório extremo dos séculos, dado que criámos a eterna velocidade omnipresente, pelo que, de pé, sobre os pináculos do mundo, lançamos mais uma vez o desafio das estrelas.

 

Quando dizemos cientificismo, queremos referir-nos ao afã de poder de uma comunidade que actua em nome da ciência (Louis Pauwells) e que passou pela recepção das teses de Spencer, Darwin e Comte. Já o cientismo tem origens mais remotas, correspondendo ao método axiomático-dedutivo de Descartes (1596-1659), expresso pelas regras da evidência, da análise e da verificação, entendidas como o fundamento do esprit geométrique. A partir de então, vai consolidar-se a modernidade que se traduziu na chamada morte de Deus e na preponderância da solitária razão individual. Seguiu-se a ideia de matematização do universo, na sequência da descoberta da lei da inércia e da gravitação de Isaac Newton (1642-1727):tudo o que não é deduzido dos fenómenos é uma hipótese. No mesmo sentido, o empirismo de Francis Bacon (1561-1626), a partir do qual o poder e o conhecimento passaram a ser sinónimos.

Tornou-se, então, dominante a cartesiana regra do método, considerando-se que a única via possível para a ciência seria a da matemática e da geometria. Segue-se a chamada física social de Auguste Comte (1798-1857), que marca o triunfo do cientismo empírico-analítico, ou físico-matemático, com a consequente procura de uma nova ciência arquitectónica, ou ciência de cúpula, onde o método é que determinaria o objecto. Dá-se, depois, a ligação do positivismo ao empirismo e ao darwinismo social, com a emergência do organicismo. Surge, assim, a ligação da questão do método cientificista à perspectiva economicista da extinção do político e do Estado, com Proudhon a defender a dissolução do governo no organismo económico e Marx, com a proposta de superação do governo das pessoas pela administração das coisas.

Destaquemos, contudo, os modelos de Auguste Comte (1798-1857), o fundador do positivismo, que vai construir um novo modelo assente em três princípios fundamentais. Em primeiro lugar aceita o postulado empirista de David Hume (1711-1776), segundo o qual a única maneira de se assegurar a validade científica de um saber é assentá‑lo na observação e comprová‑lo pela experiência.

Em segundo lugar, advoga a necessidade de unificação das diversas ciências num só sistema de saber, tanto das chamadas ciências sociais como das proclamadas ciências físicas.

Em terceiro lugar, na senda de Descartes, considera que tal tipo de conhecimento científico constitui a base para o controlo da natureza e da sociedade: os sábios devem elevar a política à categoria de ciências da observação. O que corresponderia a uma verdadeira revolução moral, ao mesmo tempo, mais inevitável, mais madura e mais urgente. Porque, até então, tinha dominado a imaginação sobre a observação, tal como a astrologia para a astronomia, a alquimia para a química e a busca da mezinha universal para a medicina (Reorganizar a Sociedade, trad. port. de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Guimarães, 1977, pp. 89 e 96).

Porque, depois de uma época teológica e militar, que também designa por tempo dos reis, seguiu‑se uma época metafísica e legislativa, também dita tempo do povo, até se chegar à época positiva e industrial. Nas suas próprias palavras, entre os dois primeiros não existe, no fundo, outra diferença teórica que não seja a redução das divindades primitivas a entidades. Acrescenta que se o primeiro estado é fictício, e o segundo abstracto, já o terceiro é real. O primeiro é sempre provisório, o segundo puramente transitório e só o terceiro é definitivo (Catecismo Positivista, de 1852, trad. port. de Fernando Melro, Mem Martins, Europa-América, p. 62).

Em França, a matriz comteana tanto serve às forças da esquerda democratista e republicana, como, a partir de Taine (1828-1893) e dos fundadores da École Libre des Sciences Politiques, se aproxima do tradicionalismo, vindo a servir de alavanca à Action Française de Charles Maurras. Com efeito, Comte misturou a ideia de ordem, que aprendeu nos contra‑revolucionários Bonald e Maistre (1753-1821), sobretudo em Du Pape, com a ideia de progresso, retirada de revolucionários como Saint‑Simon (1760-1825) e Condorcet (1743-1794). Tentou assim uma síntese entre a política e a ciência, procurando transformá-la numa força social e querendo que, depois da cidade de Deus, se chegasse a uma cidade das ciências. Procurava, de certo modo, uma combinação entre a Revolução Francesa e o catolicismo romano, visando, como assinala Aldous Huxley (1894-1963), uma espécie de catolicismo sem cristianismo. Não é, talvez por acaso, que, em 1977, Valéry Giscard d’Éstaing lançou o Institut Auguste Comte

 

Neste virar do milénio, onde a procura da pós-modernidade se tornou obsessiva, começa, contudo, a dizer-se que não podemos continuar a ilusão da Revolução Industrial. O entendimento do progresso como simples crescimento, isto é, como a exploração, sem limites, da massa pela energia, ou da natureza pelo homem, exige a sustentabilidade, já demonstrada pela nova revolução das tecnologias da informação, dado que esta actua de acordo com aquela lei da entropia, descoberta por Rudolf Clausius (1822-1888) nos finais do século XIX, segundo a qual existe uma nova grandeza variável da energia… a quantidade de energia que, sendo gasta numa mudança, é irrecuperável pelo sistema e fica para sempre na zona do desperdício no balanço da energia do Universo (ver Rodrigues, 1990).

Basta recordarmos, em termos de teorias estratégicas, que as tradicionais contraditas entre os defensores do poder terrestre e do poder marítimo foram superadas pelo aparecimento do poder aéreo e, nos últimos anos do século XX, com a chamada Iniciativa de Defesa Estratégica, ou guerra das estrelas, pelo anúncio de um poder supraterrestre, supramarítimo e supra-atmosférico, que deixou de ser mero exclusivo da ficção científica.

As novas maravilhas do mundo, para além das viagens pela estratosfera, chamam-se satélites, microprocessadores, lasers, jactos supersónicos e engenharia genética, num misto que tanto nos levou a passeios humanos sobre a superfície lunar e a deambulações robóticas por cima de Marte, como nos fez pesquisar os segredos da célula e do próprio ADN.

 

Os saltos qualitativos das invenções práticas dos primeiros anos do século XX produziram, sem dúvida, um mundo novo. Primeiro, a nível dos transportes, desde o dirigível, em 1900, ao primeiro voo controlado de um objecto mais pesado que o ar, com a experiência dos irmãos Wright, em 1903. Em 1907 já surge o primeiro helicóptero e, em 1911, o primeiro hidroavião, para, em 1913, se inventar a locomotiva a Diesel. O primeiro voo transatlântico é de 1919, a locomotiva eléctrica, de 1924, e é aberta em 1927 uma primeira linha aérea transcontinental.

As alterações no domínio das comunicações têm também importantes marcos. O primeiro sinal telegráfico transatlântico é de 1901, com Giuglielmo Marconi. A válvula de vácuo é de 1904, e a transmissão de voz humana pela rádio acontece no ano seguinte. As fotocopiadoras aparecem em 1906 e os planos para o sistema moderno de televisão, em 1908. Logo em 1920 surgem as primeiras emissões radiofónicas regulares, na mesma altura em que se descobre o processo electrónico de gravação sonora, para chegarmos ao fonógrafo eléctrico, em 1925. Segue-se a primeira experiência pública de televisão, em 1926, para, em 1935, começar o serviço de televisão electrónica, público e regular. O radar para detecção de aviões data de 1935. O primeiro computador com programa memorizado é de 1949. A televisão a cores, emitida com regularidade tem o marco de 1951. As carreiras comerciais de aviões a jacto iniciam-se em 1952. O transístor, por seu lado, é inventado em 1948. Segue-se o computador comercial, em 1950. O Telstar, primeiro satélite para comunicações, é de 1962. Três anos depois, entra em funcionamento o primeiro satélite para televisão. Com o Vostok 1, surge o primeiro voo espacial tripulado, em 1961, depois do Sputnik, de 1957. Não tarda que o homem passeie na Lua, em 1969. No mesmo ano do Concorde e do primeiro Jumbo 747.

Na indústria, refiram-se a célula fotoeléctrica e a seda artificial (1902), a soldagem por oxiacetileno (1903), o celofane, o filamento de tungsténio para lâmpadas eléctricas (1907), a lâmpada de néon (1910) e a produção em massa em linha de montagem (1913).

Já a aspirina começa a ser comercializada em 1905, seguindo-se o primeiro medicamento químico terapêutico, em 1910, e a vitamina A, em 1913. A sulfamida é de 1932 e a produção industrial de penicilina data de 1939. Refira-se que este medicamento foi descoberto pelo médico escocês Alexander Fleming, em 1928, a partir de um extracto de bolor ou mofo, estando na base de todos os antibióticos que apenas começam a ser comercializados pelos grandes laboratórios farmacêuticos nos começos da década de quarenta.

Finalmente, as comodidades de uso pessoal e doméstico, com a lâmina de barbear e o aspirador eléctrico (1901), as garrafas-termos (1904), a máquina eléctrica de lavar roupa (1907) e o começo do fabrico dos frigoríficos domésticos (1913). O primeiro supermercado e as primeiras vendas de alimentos congelados datam de 1930. A esferográfica surge em 1938. O nylon é de 1937. A xerocópia, de 1938. Os tranquilizantes começam a ser comercializados em 1952. O contraceptivo intra-uterino, em 1959, e os contraceptivos orais, em 1960, enquanto a primeira transplantação cardíaca ocorre em 1967.

É natural que estas alterações tenham sido acompanhadas por movimentos culturais como o sufragismo feminino. Mas é também em 1912 que se afunda o Titanic. Curiosamente, é, no estertor da belle époque, que surgem movimentos culturais como modernismo e o futurismo, mas tudo acaba canalizado para aquela guerra que teve a ilusão de ser a última das guerras. Com efeito, aquilo que começou por ser a Grande Guerra Mundial, duas décadas volvidas, já era bem menos, dado ter surgido uma Segunda Guerra Mundial, que até terminou com a utilização de uma arma nascida daquele impulso desencadeado pela descoberta da radioactividade por Henri de Becquerel, em 1896, e pelo isolamento do rádio puro, por Pierre e Marie Curie, em 1902.

A primeira bomba atómica é lançada em 1945. A bomba de hidrogénio é experimentada em 1952. O primeiro submarino atómico surge em 1955, enquanto a primeira central atómica é construída, na URSS, em 1954.

 

Apesar de tudo, no plano da riqueza científica, tanto da sabedoria como do saber-fazer, as assimetrias são gravíssimas quanto à distribuição dos recursos, como facilmente se demonstra pela consulta da lista dos prémios Nobel, onde dominam nomes provindo das ditas grandes potências e superpotências. Isto é, mesmo que o hardware se tenha expandido, a concentração do software foi-se agravando. Porque quem comanda a investigação, a invenção, a inovação e a imaginação é quem continua a pilotar o futuro do mundo.

O poder maior é, afinal, o poder desse saber mais, para ser mais, dessa gestão de recursos humanos que é capaz de avaliar o mérito e de promover a efectiva igualdade de oportunidades. E não é por acaso que, também no domínio das relações internacionais, há restritos lugares do mundo onde se acumula tal saber e donde se vão distribuindo valores pela via daquela autoridade que vem de quem é o autor da própria investigação científica.

A revolução técnico-científica, no fundo, equivale àquilo que também damos o nome de modernidade que, começando por ser apenas industrial e científica, acabou por ser tecnológica. Um processo inteiro, onde se inserem, como parcelas, tanto a libertação da ciência dos dogmas religiosos, quando se deu certo deicídio, certa morte daqueles pretensos agentes de Deus que queriam proibir que se reconhecesse que a Terra circulava em torno de um eixo e à volta do Sol, como outros abalos, desde a ascensão da burguesia e a emergência do Estado, ao nascimento do capitalismo manufactureiro, para não falarmos do emprego daquelas máquinas produtivas que levaram o trabalho a ser marcado pelo ritmo do fordismo e do taylorismo.

Conforme as palavras de Vaclav Havel, o conceito moderno de ciência liga-se directamente ao racionalismo modernista, gerando tanto a revolução industrial como o culto do consumo, esse fanatismo da abstracção que também provocou a ideia de revolução, onde a política, na senda de Maquiavel, continuou a ser entendida como uma tecnologia racional do poder (1989, p. 238).

Acreditava-se que o homem podia ser um cartesiano maître et possesseur de la nature, um dono possessivo do ambiente que o rodeia, daquela natureza com quem pretendia estabelecer-se uma espécie de jogo de soma zero, nesse optimismo bem expresso por Condorcet (1743-1794) no seu Esquisse d’un Tableau Historique des Progrès de l’Esprit Humain, de 1794.

 

O racionalismo modernista é um movimento intelectual desencadeado por Descartes em torno do chamado esprit geométrique e da raison raisonnante, onde os homens são tratados como grandezas descontínuas, quase como números, enquadráveis em ideias absolutas. A partir de então, surge um desvio calculista e utilitarista da razão, marcado por um preconceito mecanicista que reduz a ciência à mera explicação daquilo que funciona, bem expresso por Thomas Hobbes, segundo o qual, conhecendo-se os elementos de que é constituído um objecto, conhece-se também o objecto,. Adopta-se o mero conhecimento matemático e o simples método analítico, aquele que sobe dos efeitos para as causas, que decompõe cada coisa em elementos e que, depois, tem a ilusão de atingir o todo pela recomposição dos elementos, pela soma das partes.

Mas, ter razão talvez não seja apenas actuar com tal razoabilidade, até porque a dita não é apenas filha da necessidade. Os homens não se reduzem à proporção entre o movimento e o repouso. Cada homem não é algo que esteja continuamente submetido ao impacto dos múltiplos e variados corpos que o rodeiam, à adição e subtracção de consequências.

Os homens não são equiparáveis a bolas de bilhar, a meros átomos homogéneos, sujeitos ao determinismo do movimento, à anarquia das forças. A razão também é unidade de teoria e de acção. Precisa da acção, precisa da paixão, precisa da imaginação. Doutro modo, não nos parece possível a conquista da autonomia metodológica das ciências humanas.

 

Basta recordar que, segundo dados do World Watch Institute, em cada ano que vai passando, destruímos cerca de 17 milhões de hectares de florestas, enquanto se deterioram seis milhões de terra arável, permitindo o avanço da desertificação, para não falarmos nos milhares de plantas e de espécies animais que correm o risco da extinção.

Olhando agora para a outra face da moeda dessa revolução técnico-científica, temos de reconhecer que a mesma também permitiu aquele melhorismo e aquela esperança que tem passado pela luta contra a doença, desde a descoberta dos micro-organismos responsáveis pela fermentação, por Louis Pasteur, em 1864, ao reconhecimento dos bacilos como causas de determinadas doenças, pelo alemão Robert Koch, em 1876, para, seis anos depois, descobrir qual deles provocava a tuberculose.

As técnicas, contudo, deixaram de ser meros instrumentos, porque a própria consciência pessoal passou a ser mero reflexo do milieu technique, conforme a tese de Jacques Ellul (1912-1994), em La Technique ou l’Enjeu du Siècle, de 1954. Gerou-se aquilo que Galbraith qualificou como tecno-estrutura e que Brzezinski, depois, definiu como sociedade tecnotrónica.

Porque, voltando a Ellul, não são as necessidades externas que determinam a técnica, mas a lógica interna da própria técnica, que se autonomizou da moral e dos valores espirituais, de maneira que tudo se passa como se os fins desaparecessem em consequência da amplitude dos meios de que dispomos.

A culpa talvez caiba mais à sociedade do que à tecnologia, ou, melhor, ao uso que a sociedade fez da tecnologia, quando, pelo rebaixamento dos fins políticos, esqueceu que a técnica devia estar ao serviço da sabedoria e que esta também não deveria depender da maximização do lucro e da abundância. Assim se explica a preponderância desses adoradores do chamado produto nacional bruto e da produtividade, que não reparam nos excluídos que o crescimento gera.

 

Tecno-estrutura é um conceito cunhado por J. K. Galbraith em The New Industrial State de 1967, onde nota a transferência de poderes para um aparelho de decisão cujos fins nada têm a ver com os que são assumidos pelos patrões e pelos próprios organizadores ou managers. Já Z. Brzezinski, traduzindo a observação do mesmo Galbraith sobre a tecno-estrutura, fala na existência de uma revolução tecnotrónica.

Refira-se que, nos anos trinta do século XX, surgiu nos Estados Unidos da América a ideia de tecnocracia, entendida como uma nova forma de organização da sociedade, quando se admitiu que a economia poderia passar a ser dirigida por técnicos e organizadores, independentes dos proprietários. Baseava-se na noção de eficiência, apelando para o domínio dos organizadores. Trata-se de uma velha tendência de todas as civilizações, também patente no mandarim do modelo chinês, o qual, para atingir esse estádio, era obrigado a um rigoroso exame, equivalente às provas a que é sujeito o nosso licenciado, ou à obra prima que era obrigado a fazer o companheiro das corporações medievais, quando queria atingir o estatuto do mestre.

O fenómeno, que também afectou o estalinismo, transformou-se, pelo menos no campo ocidental, numa ideologia que constitui uma espécie de transposição para a Europa Ocidental do pragmatismo norte-americano, mas desligado dos valores morais que sustentam a american way of life, transformando-se numa espécie de ideologia desenvolvimentista marcada pela ingenuidade planificadora. De certa maneira, não passa de uma forma de tradução em calão do mito da era dos organizadores, conduzindo ao materialismo das sociedades de consumo e ao vazio ético da falsa ideia de progresso.

Com este neopositivismo tecnocrático chega‑se ao Estado da managerial revolution (Burnham), típico da sociedade industrial. Um Estado que se transformou num Welfare State nas suas várias versões: desde o intervencionismo do New Deal e do keynesianismo dos modelos de raiz liberal, aos Estados Novos dos autoritarismos corporativos, depois transformado no Estado Social das ciclópicas tarefas, conforme a terminologia de Marcello Caetano (1906-1980).

Há, deste modo, uma identificação entre Estado da Sociedade industrial e o Estado Administrativo ou Estado com executivo forte, todos produto de uma certa fase ideológica do mundo. É assim que Maurice Duverger, em Janus, les Deux Faces de l’Occident, de 1972, considera que, depois de 1945, à democracia liberal sucedeu uma tecnodemocracia, fundada em vastas organizações, complexas e hierarquizadas, com uma nova oligarquia que depende mais do Estado que na anterior ordem assente na concorrência de pequenas unidades autónomas.

O que, entre nós, se nota com o chamado mostrengo estadual gerador de tentáculos clientelistas e dos meandros da corrupção, que tanto levam ao Estado Laranja como aos jobs for the boys, revelando como não bastam as boas intenções das modernizações administrativas e das reformas do Estado, mesmo que elevadas à categoria de ministérios. O instinto de crescimento do poder é favorecido pela própria sociedade. É mais uma questão moral do que uma questão de direito administrativo ou de ciência da administração.

O mesmo Galbraith, em The Affluent Society, de 1958, analisando a evolução norte-americana, considerava que se atingira uma era da opulência, um estádio de desenvolvimento económico, onde o objectivo deixava de ser o da produção de mais bens de consumo, mas antes o do aperfeiçoamento dos serviços públicos. Um sociedade afluente caracterizada pelo facto de ter uma alta média de rendimentos, abundância de bens de consumo e um largo sector dos serviços. Contudo, gera uma crise de valores que ameaça paralisar a sociedade, principalmente quando os jovens recusam os modelos de participação oferecidos. A sociedade da abundância, depois dita sociedade de consumo, constitui, aliás, uma espécie de crise de luxo, porque, para manter a crescente procura de bens de consumo, gera uma criação artificial de necessidades

Revolução da informação

 

Assistimos também a uma revolução da informação que se traduz na sua uniformização e ubiquidade, transformando todo o mundo numa aldeia global, onde vale mais a aparência da forma que a substância da realidade, pelo que o continente se torna mais importante que o conteúdo. Há assim um novo conceito de comunicações que, começando por designar as formas de transporte, o sistema de caminhos para a movimentação de veículos, pessoas ou abastecimentos, passou a abranger todos os meios através dos quais circula a informação.

Passámos a viver segundo o ritmo dos global media que alteraram completamente o fluxo da informação. Primeiro, foi a globalização das transmissões radiofónicas, principalmente a partir dos anos quarenta. Seguiram-se as emissões de televisão, sobretudo quando se generalizaram as transmissões por satélite. E tudo foi acompanhado pelo novo uso do telefone, pelas chamadas internacionais e pelos serviços de fax, para, depois, se assistir à chegada dos computadores domésticos, ligados em rede, através da Internet.

Hoje, o fenómeno atingiu o nível sistémico de uma mediacracia, marcada pela interactividade, a mobilidade, a convertibilidade, a conectividade, a ubiquidade e a globalização, conforme a enumeração de Alvin Toffler em Powershift. Daquilo que Guy Hermet qualifica como democratura (1987), nesse novo sistema onde os media exercem, sobre os actores da vida social e sobre o público, uma espécie de ditadura doce, marcada por funcionários de um pronto a pensar que fornecem aos ouvintes, leitores e espectadores verdades também elas pré-digeríveis e, portanto, facilmente assimiláveis.

Todo este processo levou a que a violação das massas pela propaganda (Serge Tchakhotine) não ficasse limitada ao espaço fechado de certos soberanismos, dado que tudo passou a circular na tal aldeia global. Contudo, as chamadas auto-estradas da informação serviram, sobretudo, para que circulassem preponderantemente as mensagens dos mais poderosos, detentores do software, dos grandes servidores e das chaves de acesso à rede, enquanto os mais pobres apenas passaram a poder aceder às grandes centrais de distribuição, através de tortuosos caminhos de cabras.

Basta recordar que, segundo dados de 1990, o Bangladesh, a China, o Egipto, a Índia, a Indonésia e a Nigéria, todos juntos, apesar de constituírem cerca de um terço da população do mundo, tinham menos ligações telefónicas que um simples Canadá, apenas com 27 milhões de habitantes. Aliás o mundo passou de 70 milhões de telefones, em 1960, para 600 milhões, mas com 450 milhões deles concentrados em apenas nove Estados, tal como em Portugal, nos últimos três anos passámos de 2 milhões para 8 milhões de telemóveis.

A aldeia global da comunicação, com o aumento exponencial da velocidade e dos fluxos da informação, levou a que o ser fosse ocultado tanto pelo ter como pelo parecer, pelo que se tornou mais fácil descobrirmos que, afinal o rei ia nu, com o consequente desencanto, a partir do momento em que se descobre a falta de autenticidade da imagem. Fala-se no aparecimento de uma comunidade electrónica (Abramson, 1988), de uma democracia catódica, geradoras de uma nova ideologia. O público transforma-se num Estado-Espectáculo, numa teatrocracia, num Estado-Sedutor, surgindo uma teledemocracia (Arterton, 1987), um videopoder. Régis Debray (1993) propõe mesmo uma nova disciplina que não seria a moral nem a política, mas antes a mediologia, com a missão de explorar as vias e os meios da eficácia simbólica, decompondo-a na revolução fotográfica, na passagem do Estado do escrito ao Estado do écran e nas aventuras do índice.

É por isso que importa recordar o contexto em que surgiu o tópico da aldeia global, na obra The Galaxy Gutenberg, de 1962, obra do canadiano Marshall McLuhan (1911-1980), subtitulada The Making of Typographic Man, onde se considera que a mensagem, que o conteúdo, é o medium, o continente. Porque a invenção do papiro provocou o aparecimento do império burocrático dos faraós do Egipto. Porque a invenção da tipografia levou à difusão da reforma protestante no espaço alemão. Porque a imprensa quotidiana popular promoveu a difusão do nacionalismo no século XIX.

Assim, na segunda metade do século XX, televisão contribuiu para a não distinção entre o público e o privado, inserindo-se no processo de passagem da galáxia Gutenberg para a galáxia Marconi ou galáxia eléctrica, detectável desde 1905. Gerou-se, pois, uma nova inquietude, típica destes tempos sem escrita, marcados por uma nova forma de comunicação, onde aquilo que aparece nos pequenos palcos da comunicação e nos dá a imagem tende a ser mais importante do que aquilo que, na verdade, é.

Logo, não tardou que se proclamasse que em política o que parece é, conforme o lema dos tempos em que a propaganda ainda se chamava propaganda e não como agora, onde os gabinetes quase clandestinos de imagem vão dizendo que só existe aquilo que se comunica. Porque, afinal, também existem aquelas obras que os fazedores do Estado Espectáculo condenam ao silêncio, porque, de um momento para o outro, a política pode ter uma dessas episódicas reconciliações com a verdade e voltar a ser gerida pelos que sentem sede de justiça.

 

Com efeito, a primeira grande revolução nas comunicações deu-se em 1837, quando foi inventado o telégrafo, com Samuel Morse, nos Estados Unidos da América, e Charles Wheatstone, na Grã-Bretanha. Nos anos cinquenta já eram lançados cabos submarinos entre a Grã-Bretanha e a França. Na década seguinte atravessavam o Atlântico e em 1872 Londres já estava ligada a Tóquio. Na guerra austro-prussiana de 1866 o comando de Berlim orientava as tropas prussianas, através do telégrafo que também serviu para a expansão colonial das potências europeias.

Seguiu-se o americano Grahm Bell que inventou o telefone em 1876, para, duas décadas volvidas, já estarem instaladas as primeiras linhas. Finalmente, os sinais de rádio começam na década de 1890, com o italiano Giuglielmo Marconi, apesar das primeiras estações de telefonia sem fios só começarem nos anos vinte.

Na década seguinte, foram os anos áureos das transmissões radiofónicas, explicando-se tanto a ascensão de Hitler ao poder, como a fundação da Emissora Nacional pelo salazarismo, ao mesmo tempo que o cinema sonoro emergia, sob a cobertura de todos os secretariados estaduais da propaganda que, com muitos serões para a alegria no trabalho, tanto totalitarizavam, quando diziam que quem não é pelo situacionismo está contra a Nação, é Gegenreich, como autoritarizavam, quando diziam, de forma mais adormecente, que quem não está contra o situacionismo é a favor daqueles que mandam.

Mas os que, como no nosso Estado Novo, optavam pela segunda via que provocava o atavismo da servitude volontaire, nem por isso deixavam de saudar as maravilhas de um cineasta como António Lopes Ribeiro, que aprendera directamente na URSS de Estaline, com Eisenstein. Porque o salazarismo sempre foi a distância que vai do filme Pátio das Cantigas, dirigido pelo mesmo pai-fundador do cinema português, com António Silva, Ribeirinho e Vasco Santana, às fitas de Beatriz Costa, principalmente em A Aldeia da Roupa Branca, de Chianca Garcia, quando os Vascos eram Santanas, para utilizarmos a jocosa expressão do título de um livro de memórias de Beatriz.

Ainda não tinha chegado o tempo da folle du logis, quando, ainda a preto e branco e ao abrigo do monopólio estadual, o nosso Professor Doutor Marcello Caetano tentava deter os ventos da história com conversas em família, tal como John Kennedy vencia Richard Nixon, nas eleições de Novembro de 1960, graças à imagem, prenunciando a chegada de simples actores à liderança do Estado Espectáculo. Ainda não tinha chegado os tempos do videopoder e da teledemocracia, com muitas cores e muita concorrência de canais.

 

O homem massa passou a simples auditor, a mero elemento fungível de uma informe audiência, enquanto grupos mais poderosos que os próprios Estados tratam de manipular aquilo que era, até há bem pouco tempo, o bem mais precioso da isegoria. Se há transmissão de dados à velocidade da luz, se se banalizaram os satélites de telecomunicações, se as auto-estradas da informação penetram no mais íntimo círculos do nosso computador doméstico ou nas parabólicas e cabos que nos trazem a televisão global, eis que temos apenas duas cadeias planetárias de televisão – a Cable News Network (CNN) e a Music Television (MTV) – que alteram os costumes, as culturas, as ideias e os debates. Temos, sobretudo, duas agências de informação audiovisual – a Worldwide Television News (WTN) e a Visnews – que todos os telejornais do mundo reproduzem diariamente.

O salto foi dado principalmente nos anos oitenta do século XX. Ted Turner, a partir de um local, Atlanta, utilizou o global dos satélites para, daí, fazer ligação às imensas redes locais das nascentes televisões por cabo, começando um império que, depois, se estendeu a todo o mundo. Isto é, a dispersão pode levar a situações de monopólio ou oligopólio, como o atestam os grandes barões mundiais do sector, que aproveitaram o desmantelamento dos sectores públicos, como aconteceu com Rupert Murdoch, Robert Maxwell ou Sílvio Berlusconi.

As consequências foram evidentes durante a Guerra do Golfo em 1991, onde o espectáculo televisivo do conflito, como hoje já é possível demonstrar, apenas mostrou a verdade que os norte-americanos quiseram mostrar.

O indivíduo, preso nas teias do global, vai ser, cada vez mais um homem unidimensional, perdendo as raízes da identidade que o ligavam ao local de uma pequena pátria (pátria chica), daquele face to face do conventus publicus vicinorum, sendo condenado a procurar, no exótico do desenraizamento, novas identidades apátridas, feitas à imagem e semelhança da quinquilharia de um qualquer centro comercial com produtos importados dos antípodas.

Aliás, ao mesmo tempo que aumenta a atomização da multidão solitária (lonely crowd), fragmentando-se a sociedade como representação, tanto pelo apagamento da memória como pela liquidação das solidariedades, eis que a homogeneização nos vem da sucessão de imagens que os media, dia a dia, hora a hora, nos enviam, em nome da informação, onde apenas passou a existir aquilo que se comunica por tal via e onde politicamente só existe aquilo que parece e aparece (gouverner c’est paraître, como diz Jean-Marie Cotteret) através de tais instrumentos, cada vez mais continentes sem conteúdo. É, como proclama Gilles Lipovetski, a ère du vide e l’empire de l’éphemere (1983 e 1987).

A quantidade de matéria humana que o corpo da Terra contém é definitivamente uma massa, em termos comunicacionais. Aquilo que Max Scheler (1874-1928) qualificava como uma unidade por contágio e imitação involuntária. Porque, conforme as teses de Gabriel Tarde (1843-1904) e Gustave Le Bon (1841-1931), as massas surgem quando os indivíduos perdem a individualidade e se aproximam do estado da pura quantidade.

 

Gustave le Bon, influenciado pela psicologia nascente, considera que as multidões acumulam, não a inteligência, mas a mediocridade, sendo conduzidas quase exclusivamente pelo inconsciente, havendo nelas um multiplicador da irracionalidade. Salienta que nas sociedades futuras, pode prever-se que, na sua organização poderão contar com um poder novo, o último soberano da vida moderna: o poder das liberdades. As teses deste autor, que recebem algumas das reflexões de Tocqueville (1805-1859) e de Nietzsche (1844-1900), vão influenciar Robert Michels (1876-1936) ou o nosso Fernando Pessoa (1888-1935).

 

Assim, podem ser galvanizadas através de mitos e de sugestões, despertando-se os instintos mais elementares das parcelas humanas que as compõem. Deste modo, os indivíduos deixam de ter raciocínios e passam apenas a funcionar pelos instintos.

É que os tais mass media não só transformam o real em espectáculo, como substituem os anteriores ritos, que esconjuravam os perigos, e os antigos mitos que nos levavam a tornar heróis e santos na intimidade. De certa maneira, ao exercerem as funções psicoterapêuticas, de recreação e de ligação social, acabam por ser um sucedâneo das Igrejas tradicionais e talvez por isso foi-lhes reconhecida a dimensão de quarto poder.

E não foi por acaso que quando o fundamentalismo religioso dos talibans conquistou um Estado, logo liquidou os meios de comunicação de massa, como também não foi por mero acidente que o fundamentalismo dos ayatollah no Irão, instrumentalizou os mais avançados dos meios de comunicação de massa que conseguiu mobilizar para a causa.

Resta saber se a globalização não nos trará nova Rebélion de las Masas, para falarmos na célebre obra de José Ortega y Gasset (1883-1955) que começou a publicar-se em folhetim no jornal madrileno El Sol, em 1926. Basta recordar que aí se parte da noção de sociedade como unidade dinâmica de dois factores: minorias e massas, onde as primeiras são constituídas por indivíduos especialmente qualificados e as segundas, pelo homem médio. Daí considerar que a revolução não é a sublevação contra a ordem preexistente, mas a implantação de uma nova ordem que tergiversa a tradicional.

Porque teria sido o errado intervencionismo dos Estados que agravou o problema, dado que o homem massa tende a ver nos mesmos Estados um poder anónimo. E como ele se sente igualmente anónimo julga que o Estado é uma coisa sua.

Acresce até que o Estado absolutista, muito instintivamente, respeitava mais a sociedade que o Estado democrático. Daí o grito de revolta contra o maior perigo que hoje ameaça a civilização: a estadualização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda a espontaneidade social pelo Estado.

A tal mass society de C. Wright Mills (1915-1962), é, com efeito, um produto da industrialização, da burocratização centralista e da urbanização. A sociedade que destruiu os anteriores vínculos de coesão da sociedade tradicional, na qual dominava o face to face, nomeadamente os laços comunitários da família e da vizinhança, bem como as pertenças de classe, etnia ou religião.

 

Mills destaca-se como professor da Columbia University desde 1946. Baseando-se no marxismo, cria uma escola sociológica que critica frontalmente o excessivo quantitativismo do behaviorismo norte-americano. Parte do dualismo entre a power elite e sociedade de massa, denunciando um poder invisível fundado no arbitrário. Em The Power Elite, de 1956, considera que toda a política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência. Neste sentido, mistura o marxismo com algumas perspectivas de Max Weber. Teoriza a sociedade de massa, com a crescente especialização de funções e o colapso do pluralismo, onde a própria cultura é alvo de manipulação por uma elite. Salienta também que a educação de massa produz uma espécie de analfabetismo educado, quando a educação perde a sua função crítica e é domesticada pelas exigências da economia. Entende o poder como um jogo de soma zero, implicando uma estrutura dicotómica, onde aquilo que têm os que o exercem é aquilo que falta aos que não o detêm.

 

Assim, com o advento da sociedade de massa, as relações sociais tornaram-se impessoais, chegando o tal reino da quantidade onde corre o risco de desaparecer a própria moralidade. Porque as massas passaram a ser dominadas pela emoção e pela moda, tornando-se susceptíveis de manipulação.

Aliás, foi o estatismo, aliado ao individualismo, que eliminou os corpos intermediários (Montesquieu) que relacionavam a pessoa com o centro do poder político. A pessoa, assim desprotegida, teve de enfrentar um crescimento do poder estadual que também eliminou progressivamente o pluralismo político, principalmente das autoridades tradicionais, como o eram a família, a igreja institucional, a comuna, a corporação e o sindicato. Estas instituições pré-estaduais, que haviam sido espontaneamente geradas por aquele consenso que vem de baixo para cima, não podem ser confundidas com aquelas entidades a que o corporativismo, hierarquicamente estadual, deu o nome constitucional de elementos estruturais da Nação.

Erich Fromm (1900-1980), membro da Escola de Frankfurt, que passou de um freudomarxismo a um humanismo comunitário socialista, dito revolução da esperança, veio também insurgir-se contra a sociedade tecnotrónica, essa sociedade completamente mecanizada, submetida à maximização da produção e ao consumo e que seria dirigida por computadores. Neste sentido, tratou de defender a humanização da técnica, na base da distinção entre o ter e o ser, propondo a instauração de uma sociedade sã, através de pequenas comunidades onde se regressasse ao face to face.

E não foi por acaso que Raymond Aron, observando muitas coincidências entre as sociedades comunistas e capitalistas, consagrou a categoria sociedade industrial, na senda do que Sidney Webb (1859-1947) Beatrice Potter Webb (1858-1943) profetizaram em Industrial Democracy, de 1897. Porque entre as duas existia uma mais profunda identidade, que superava a questão dos formais regimes jurídicos da titularidade dos meios de produção. Ambas utilizavam o mesmo modelo de técnica e de procura da produtividade, opondo-se, em conjunto, às chamadas sociedades tradicionais, ditas subdesenvolvidas.

Como depois vem assinalar Vaclav Havel, a sociedade comunista, principalmente a pós-totalitária, não passou de uma espécie de expansão retroactiva dos frutos ocidentais, dado ser fundamentalmente marcada pelo cinzentismo de uma sociedade industrial de consumo, onde, pela falta de coisas para consumir, os escravos acabaram por se revoltar contra o grande distribuidor, destruindo-lhe os livros e as estátuas.

Como também assinalava Herbert Marcuse (1898-1979), a racionalidade tecnológica de tais sociedades industriais avançadas leva ao homem unidimensional, porque possui instrumentos para transformar o metafísico em físico, o interior em exterior e as aventuras da mente em aventuras tecnológicas.

O progresso técnico tornou obsoletas as oposições sociais anteriores, quando se falava em luta de classes, porque o indivíduo ficou enredado nas teias de um sistema de produção e de distribuição de massa, onde até emergiu uma espécie de indústria cultural. Em todos os domínios gerou-se, assim, um modelo que tratou de produzir necessidades artificiais.

Com efeito, neste tempo de mass culture, provocada pela Revolução Industrial, não só foi destruída a folk culture, como se chegou a uma espécie de Media State, cunhado pela vertigem do Estado-Espectáculo, onde os tais mass media acabam por dominar o processo político, anunciando-se a chegada de uma nova fase da vida colectiva, já pós-política.

Daí que sufraguemos a proposta de Régis Debray que, em 1991, apontava para a necessidade de criação de uma espécie de mediologia, significando o estudo das vias e dos meios da eficácia simbólica, bem como das mediações materiais que permitem a um símbolo inscrever-se, transmitir-se, circular e perdurar na sociedade dos homens.

Muitos começam a falar até na existência de uma cultura global. Se uns referem uma homogeneização de valores, provocada pela ocidentalização, e numa espécie de convergência normativa, com valores comuns, como o atesta o facto dos adolescentes de todos os quatro cantos de um mundo esférico seguirem as mesmas modas no vestuário, na música preferida e nas séries de televisão. Já outros apontam o crescente renascimento de localismos, bairrismos e nacionalismos, com os seus exageros identitários.

De qualquer maneira, parece que, aqui e agora, em todo o espaço do planeta, todos usamos a mesma forma de casaco e todos gostamos de vestir idênticos jeans de imaginários cowboys. Um efeito daquela semente lançada pelo emigrante alemão Isaac Merritt Singer que começou a comercializar nos Estados Unidos da América a partir de 1856 a máquina de costura, num processo que até inventou o pronto-a-vestir e a venda a prestações.

Neste sentido, a humanidade tem avançado mais depressa na criação de uma unidade simbólica, elemento tão importante na constituição do político quanto um centro detentor do monopólio da violência legítima. Como ensina Clifford Geertz (n. 1926), numa sociedade organizada de forma complexa, o governo é tão importante como o conjunto de formas simbólicas, porque a política também é uma arena onde se manifesta a cultura, isto é, o conjunto das estruturas de significação pelas quais os homens dão uma forma à sua experiência.

De qualquer maneira, nota-se a existência de uma espécie de criação global de necessidades artificiais, através da difusão do mesmo modelo de sociedade de consumo, onde é importante o papel de controlo de mercados e de domínio da publicidade, sob responsabilidade das empresas multinacionais, com MacDonalds na Rússia, Coca Cola na China ou porco doce em Trás-os-Montes, gerando-se um maior homogeneização no gosto dos consumidores.

Em segundo lugar, refira-se, no âmbito dessa criação de valores comuns, o domínio do direito internacional por conceitos ocidentais.

Em terceiro lugar, as línguas dos mesmos ocidentais passaram a ser línguas cada vez mais mundiais, como o inglês, língua oficial de 42 Estados, o francês, em 28, e o castelhano, em 19, enquanto o português, com o Brasil, os PALOPs e Timor, assume estatisticamente a dimensão oficial da quinta ou sexta língua mais falada do Mundo.

As antiga comunidade de significações partilhadas, a que ainda damos o nome de povo ou nação, passou a ser acrescida por uma nova comunidade do mesmo género a nível mundial, pelo que cada indivíduo começa a viver em regime de pertenças múltiplas. Aliás, mesmo as velhas culturas nacionais, de exclusivamente nacionais, conforme alguns estudos, apenas tinham dez por cento. Assim, torna-se realidade e não apenas mera quimera o avassalador aumento da mestiçagem cultural, de que são reflexo as grandes cidades europeias, fazendo, da mesma Europa Ocidental, uma série de novos Brasis, como chegou a prever Agostinho da Silva (1906-1994). Até poderíamos invocar essa defesa da aventura dos genes, assumida por Jacques Ruffié, em De la Biologie à la Culture, 1977, onde se advoga a necessidade de um homem pós-histórico, feito cidadão do mundo, onde dominará uma espécie de miscigenação universal.

 

 

Galaxy (The)  Gutenberg”, 1962 Obra do canadiano Marshall McLuhan, subtitulada The Making of Typographic Man. Considera que a mensagem, que o conteúdo, é o medium, o continente.

 

A invenção do papiro provoca o aparecimento do império burocrático dos faraós do Egipto.

 

A imprensa leva à difusão da reforma protestante no espaço alemão.

 

A imprensa quotidiana popular promove a difusão do nacionalismo no século XIX.

 

A televisão contribui para a não distinção entre o público e o privado.

 

Assiste-se agora à passagem da galáxia Gutenberg para a galáxia Marconi.

 

Em A Galáxia de Gutenberg,  de 1962, consagra a expressão aldeia global. Considera que desde 1905 a galáxia eléctrica destruiu a galáxia de Gutenberg e o homem tipógrafo. Gera-se nova inquietude de tempos sem escrita, marcados pela comunicação oral. Uma intensa comunicação, onde a forma, o continente, tende a ser mais importante do que a matéria, o conteúdo. The Gutenberg Galaxy. The Making of Typographic Man, 1962 [trad. fr. La Galaxie de Gutenberg, Paris, Éditions Mame, 1965; trad. port. A Galáxia de Gutenberg, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977]ìGutenberg….  [trad. fr. La Galaxie de Gutenberg, Paris, Éditions Mame, 1965; trad. port. A Galáxia de Gutenberg, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977]

 

Para Daniel Bell, o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização.

 

Demagogia

 

O demagogo, na sua expressão grega primitiva, era apenas o chefe ou “condutor do povo”, sem qualquer sentido pejorativo, dado misturar demos e agein. Era o qualificativo de chefes políticos, como Sólon ou Demóstenes e até estava ligado à defesa da democracia. Em breve sofre uma evolução semântica, deixando de ser uma arte neutral. Tudo acontece na sequência da morte de Péricles, em 429 a.C., quando surgem novos líderes, não ligados às antigas famílias, os quais a partir do século IV começam a ser fortemente criticados pelos adversários dos modelos democráticos. Não tarda que a expressão ganhe a actual conotação daquele que procura dar voz aos medos e preconceitos do povo. Já em Platão (Politeia, livro V), serve para designar o animal que chama boa às coisas que lhe agradam e más às coisas que ele detesta. Do mesmo modo em Aristóteles (Política, livro V), onde se acentua que o demagogo utiliza a lisonja e os artifícios oratórios. A partir do século XIX a  demagogia passa a ser considerada uma degenerescência da política, correspondendo à definição dada por Bertrand de Jouvenel, a arte de conduzir habilmente as pessoas ao objectivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhe são contrários. Lincoln chegou mesmo a assinalar que é sempre possível enganar uma pessoa; é também possível enganar todos, uma vez; mas é impossível enganar sempre todos.

 

Max Weber, utilizando um conceito amplo de demagogo, que inclui o jornalista, refere que, na política contemporânea, o demagogo substitui o púlpito. Com efeito, na democracia de massa, os chefes políticos utilizam algo que vai além da persuasão e que se inclui na zona do artifício e da manha, gerando-se um populismo que chegou a ser utilizado pelos instauradores de regimes autoritários e totalitários, mas que também funciona na propaganda democrática, no âmbito da chamada personalização do poder. Como assinala Max Weber, desde que apareceu o Estado Constitucional e , mais completamente, desde que foi instaurada a democracia, o demagogo é a figura típica do chefe político no Ocidente“. Uma demagogia que, depois de se transmitir pela palavra impressa e através dos jornalistas,passou para a rádio  e para a televisão.

 

}Pombeni, P., Demagogia e Tirannide. Uno Studio sulla Forma-Partito del Fascismo, Bolonha, Edizioni Il Mulino, 1984.}

 

1

Todos, aqui e Agora, somos filhos do Cientismo

 

1

O método axiomático-dedutivo de Descartes (1596-1659). A regra da evidência, a regra da análise e a regra da verificação, como fundamento do esprit geométrique. A morte de Deus e a solidão da razão individual.

 

2

A matematização do universo, na sequência da descoberta da lei da inércia e da gravitação de Isaac Newton (1642-1727):  tudo o que não é deduzido dos fenómenos é uma hipótese.

 

3

O empirismo de Francis Bacon (1561-1626). O poder e o conhecimento como sinónimos O método axiomático-dedutivo. A consideração de que o único método possível para a ciência é o da matemática e da geometria.

 

4

A emergência de Kant, como síntese entre o racionalismo e o empirismo. O nascimento, a partir de Kant, do idealismo, na linha de Hegel, e do positivismo, na linha de Comte.

 

5

A física social de Auguste Comte e o triunfo do cientismo empírico-analítico ou físico-matemático. A procura de uma nova ciência arquitectónica ou ciência de cúpula, onde o método é que determinaria o objecto. A invenção do neologismo sociologia (1838), qualificação que foi precedida pelas designações de ciência política (1822) e de física social, tendo, mais tarde, como alternativas, as expressões sociocratia e sociololatria.

 

6

A ideia de ciência política como uma física particular, fundada sobre a observação directa dos fenómenos relativamente ao desenvolvimento da espécie humana — Século XIX. Ligação do positivismo, ao empirismo e ao darwinismo social. A emergência do organicismo.

 

7

A política desaparecendo como substantivo, passando apenas a haver ciências políticas. — Ligação da questão do método cientificista à perspectiva economicista da extinção do político e do Estado. Proudhon e a defesa da dissolução do governo no organismo económico. Marx e a proposta de superação do governo das pessoas pela administração das coisas.

 

8

O culturalismo neo-kantiano e a descoberta dos valores. Heinrich Rickert, a Escola de Baden e as ciências da cultura. Wilhelm Dilthey, as ciências do espírito e o método da compreensão. A sociologia compreensiva de Max Weber e o individualismo metodológico.

 

A metodologia de Karl Popper e o racionalismo crítico. O método da verificação a contrario e o critério da falsificação. O contributo de Friedrich Hayek e a teoria dos sistemas complexos. — A encruzilhada do nosso tempo. Neo-empirismos e neopositivismos. Funcionalismos e sistemismos. Regressos à filosofia prática e à hermenêutica. As discronias ou de como em certos espaços

 

II

Ciência e opinião

 

A distinção entre o conhecimento àcerca do contingente (a opinião ou dóxa) e o conhecimento das causas que são necessariamente verdadeiras. A ciência como esforço racional para substituir a opinião pelo conhecimento. A noção de Wissenschaft como conhecimento rigoroso e objectivo e as regras da metodologia científica. Distância e objectividade. Observação e experimentação. Formalização e sistematização.

 

As propostas de Raymond Aron para a deontologia de uma actividade científica (não seleccionar arbitrariamente os elementos da realidade e não os deformar; não seleccionar arbitrariamente as palavras e as suas definições; não apresentar como certos e precisos fenómenos cuja própria natureza exlui precisamente a precisão; não determinar arbitrariamente o que é importante ou essencial; respeitar a liberdade de discussão e de crítica; praticar o bom uso dos juízos de valor).

 

Do mesmo modo, se aplicássemos à ciência política as regras da cientificidade do positivismo cientista, tanto na versão de Augusto Comte, como na de Emile Durkheim, a ciência política seria sempre uma não ciência. Assim sucederia se apenas procurássemos, na senda de Comte, as relações genéricas, verdadeiras que ligam todas as realidades sociais, se quiséssemos ser mera física dos corpos organizados, se tentássemos encontrar as relações constantes de sucessão e de semelhança dos diversos fenómenos observáveis, visando prevê-los uns após os outros, se procurássemos explicar sempre como e nunca porquê.

 

Por esta via, acabaríamos na restrita ciência experimental de que falava Charles Maurras, cujo objecto é a persecução de constantes regulares e de leis estáticas da sociedade, a procura das repetições insofismáveis.

 

Cabe a Comte a estruturação do chamado cientismo, esse conjunto de superstições que pretendem explorar o legítimo prestígio dos métodos da ciência que, segundo Roger Garaudy, obedeceria aos seguintes postulados:

 

1-Se toda a verdade científica for a cópia exacta e definitiva de uma realidade da natureza, as verdades fundamentais da ciência não poderão ser postas em causa, pelo que o progresso do conhecimento deve fazer-se por acumulação contínua.

 

2- Toda a realidade, humana ou natural, é susceptível de ser explorada através do mesmo método, do qual a física matemática fornece o modelo ideal e único.

 

3-Por conseguinte, todos os problemas, incluindo os problemas morais, políticos e sociais, podem ser resolvidos através deste método. Assim, toda a realidade pode ser definida através de conceitos e a natureza inteira ser vista como um conjunto de factos que estão ligados entre si por leis, de tal maneira que a sensação, o conceito e as leis passam a ser os três pilares desta concepção do mundo e da vida. Porque, com o conceito, logo se reduz todo o sujeito e todo o projecto às leis, às medidas e aos limites do objecto.

 

Cientificismo

 

O afã de poder de uma comunidade que actua em nome da ciência (Louis Pauwells).  Diz-se no Brasil da recepção das teses de Spencer, Darwin e Comte, onde se cria um movimento sociológico de elites que esteve na base da instauração da República em 15 de Novembro de 1889.

 

Desenvolvimentismo

 

Desenvolver, em termos etimológicos, significa descobrir o que até então estava envolvido, fazer crescer e dar mais força. As teorias sistémicas politológicas originaram, nos anos sessenta, uma tentativa de definição universal do político que se pretendia válida para todos os lugares e para todos os tempos. A tarefa coube, fundamentalmente, a autores que se dedicaram à política comparada e à análise do desenvolvimento político e da cultura política, a chamada escola desenvolvimentista, com Gabriel Almond, James Coleman, Bingham Powell, David Apter e Lucian Pye, segundo a qual seria possível comparar-se todos os sistemas políticos, através da relação entre as funções e as estruturas.

 

Assim, partindo da determinação de quatro funções específicas do sistema político

 

a socialização,

o recrutamento político,

a conversão dos interesses

e a comunicação política

 

- estes autores tentaram construir um modelo apriorístico, válido tanto sincrónica como diacronicamente.

 

A escola teve como ponto de partida a obra de Roy Macridis, The Study of Comparative Government, New York, 1955, no seguimento da criação de um Committee on Comparative Politics no seio da Social Science Research Council.

 

Em 1960, Edward Shils publica Political Development in the New States, enquanto Gabriel Almond e James Coleman coordenam The Politics of Developing Areas. Outras edições fundamentais da escola são: Lucian Pye, Communication and Political Development, 1963; Robert Ward e Dankwart Rustow, eds., Political Modernization in Japan and Turkey, 1964; Joseph LaPalombara, Bureaucracy and Political Development, 1963; James S. Coleman, Education and Political Development, 1965; Myron Weiner e Joseph LaPalombara, eds., Political Parties and political Development, 1966, e Gabriel Almond e G. Bingham Powell, Comparative Politics. A Development Aproach, 1966. A escola teve também reflexos na América Latina, com destaque para Fernando Henrique Cardoso, principalmente em Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes, Rio de Janeiro, Zahar, 1971; O Modelo Político Brasileiro, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1973, e Autoritarismo e Democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

 

A escola assenta, aliás, nos contributos de Robert King Merton, especialmente nos conceitos de equivalente funcional ou de substituto funcional,

 

isto é, na ideia de que, tal como um só elemento, ou uma só estrutura, pode ter várias funções – a chamada multifuncionalidade das estruturas -, também uma só função pode ser exercida por elementos ou por estruturas diversas que, entre si, podem substituir-se, existindo, além disso, a possibilidade de uma disfunção se as funções já não contribuirem para a adaptação ou para um ajustamento de um sistema.

 

Neste sentido, a escola desenvolvimentista desenvolverá esta ideia de multifuncionalidade das estruturas políticas, de que toda a estrutura pode cumprir mais do que uma função e de que todas as estruturas têm tendência para a multifuncionalidade. Assim, consideram tais autores que nenhuma estrutura é unifuncional, isto é, que nenhuma estrutura desempenha uma só função; que toda a estrutura pode ser multifuncional, isto é, a mesma estrutura pode desempenhar funções diversas; que a mesma função pode ser exercida por diferentes estruturas, tendo alternativas estruturais.

 

Universalidade da política

É a partir daqui que se estabelece o princípio da universalidade política, considerando-se que podemos encontrar todas as funções políticas em todos os sistemas políticos, porque mesmo os sistemas políticos mais simples têm uma estrutura política, dado que não existe nenhuma sociedade que, para manter a ordem interna e externa, não tenha uma estrutura política.

 

Se nos sistemas mais simples, uma só, ou poucas estruturas, cumprem todas as funções políticas, já em sistemas desenvolvidos há uma forte diferenciação. Isto é, há um grande número de estruturas, cada uma delas especializada numa determinada função política. Com efeito, esta perspectiva desenvolvimentista salienta que, em todos os sistemas, as mesmas funções se encontram necessariamente preenchidas e que, apesar de uma determinada estrutura tender para a especialização numa determinada função, isso não significa que a mesma não possa exercer secundariamente uma outra (v.g. os tribunais, a quem cabe a função judicial de aplicação do direito, são também criadores do direito).

 

Diferenciação e especialização

Os desenvolvimentistas consideram, aliás, que a diferença entre o Estado moderno e os sistemas primitivos é menos de natureza do que de grau. Do grau de diferenciação das funções e do grau de especialização das estruturas. Isto é, tanto os sistemas políticos simples como os sistemas políticos complexos têm funções comuns, apenas diferindo nas características estruturais, já que, nos Estados modernos, as estruturas são mais diferenciadas e mais interdependentes que nos anteriores modelos de Estado. Num sistema político não desenvolvido, estruturas pouco numerosas exercem funções pouco diferenciadas, sendo fraco o processo de divisão de trabalho, pelo que o desenvolvimento político consistiria, assim, no facto das estruturas políticas crescerem em número e diferenciação. Cada estrutura que surge seria, pois, colocada perante esse desafio, face quer ao jogo da autonomia dos subsistemas, quer à integração num conjunto coordenado.

 

Estadualidade

A partir destes princípios, os politólogos desenvolvimentistas consideraram a estadualidade como uma forma específica de desenvolvimento político, em que surge um centro político e estruturas diferenciadas.

 

Uma estadualidade que teria a ver com processo da diferenciação de funções (divisão de poderes), da especialização de estruturas (separação de poderes) e da dissociação de particulares estruturas de autoridade relativamente às estruturas sociais (Estado/Sociedade), e que se inseriria na transformação social resultante da lógica do princípio da divisão do trabalho, sendo um processo de racionalização e de modernização que passaria pela diferenciação progressiva das estruturas sociais, pela autonomização, pela universalização e pela institucionalização.

 

Desafios do sistema político

Todo o sistema político teria, assim, de responder a quatro desafios: o de construir um Estado (a estrutura legal); o de formar uma nação (o que permitiria uma adesão afectiva); o de permitir a participação (atender às pressões da população para uma participação na elaboração das decisões); e o de utilizar o monopólio legal da força para a distribuição dos valores escassos. Todos estes autores consideram a existência de um determinado ponto de chegada desenvolvido na evolução do político, em que a modernização é igual a desenvolvimento político e a desenvolvimento económico, e em que a competição é considerada como um aspecto essencial da mesma modernidade.

 

Para Gabriel Almond e Bingham Powell haveria a seguinte hierarquia: sistemas primitivos (estruturas políticas intermitentes); sistemas tradicionais (estruturas governamentais diferenciadas, incluindo sistemas patrimoniais, sistemas burocráticos centralizados e sistemas políticos feudais); e sistemas modernos (estruturas políticas diferenciadas).

 

Para Edward Shils, o ponto de chegada seriam as political democracies e o crescendo evolutivo passaria pela seguinte sucessão: traditional oligarchies, totalitarian oligarchies, modernizing oligarchies e tutelary democracies.

 

A classificação de Edward Shils consta de Political Development in the New States. Comparative Studies in Society and History, 1960. Para ele, as democracias políticas (political democracies) seriam caracterizadas pela diferenciação de funções e pela especialização das estruturas, tendo, de um lado, órgãos legislativos, executivos e judiciais, e do outro, partidos políticos, grupos de interesses e órgãos de informação. As democracias tutelares (tutelary democracies) seriam marcadas pela concentração do poder no executivo, pelo apagamento do poder legislativo, pela dependência do poder judiciário e pela falta de alternância, apesar de se ter como objectivo conduzir o regime para a democracia política. Quanto às oligarquias, estas poderiam ser de três espécies. As modernizantes (modernizing oligarchies), abrangendo os regimes ditatoriais que têm como objectivo proclamado o desenvolvimento económico; as totalitárias (totalitarian oligarchies), com regimes de partido único ou chefia personalizada, sem alternância e com imposição de uniformidade ideológica, como o fascismo, o nazismo e o sovietismo; as tradicionais (traditional oligarchies), em que a elite dirigente se recruta na base do parentesco e do status, assumindo geralmente forma dinástica e apoiando-se mais no costume do que em qualquer constituição racional-normativa. A classificação de Gabriel Almond e Bingham Powell, de 1966, mantém-se nesta linha, distinguindo entre sistemas primitivos, sistemas tradicionais e sistemas modernos. Se os sistemas primitivos poderão ser segmentares ou em pirâmide, já os sistemas tradicionais assumem três formas: patrimoniais, burocrático-centralistas e feudais. Mais complexa é a divisão dos chamados sistemas modernos. No ponto de chegada estão os sistemas modernos com infra-estruturas políticas diferenciadas, incluindo-se neles as cidades-Estados secularizadas com diferenciação limitada (caso de Atenas) e os sistemas modernos mobilizados, isto é, os que possuem um nível elevado de diferenciação e de secularização, subdivididos entre sistemas democráticos e sistemas autoritários. Entre os dois, surgem os sistemas modernos pré-mobilizados, com duas espécies, os autoritários e os democráticos. Para estes autores, dentro dos sistemas democráticos, poderíamos ter forte autonomia dos subsistemas sociais (v. g. o modelo norte-americano e o britânico), autonomia limitada dos subsistemas (v. g. República Federal da Alemanha e França na III e IV Repúblicas) e fraca autonomia dos subsistemas (v. g. México). Já nos sistemas autoritários haveria que fazer as seguintes distinções: os totalitarismos radicais (v. g. URSS), os totalitarismos conservadores (v. g. Alemanha nazi), os autoritarismos conservadores (v. g. Espanha de Franco) e os autoritarismos em vias de modernização (v. g. Brasil da revolução de 1964).

 

Marxismo

Refira-se que há também uma leitura neomarxista do desenvolvimentismo, sob a forma de sociologia histórica do político, com destaque para Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista [1974], trad. port., Porto, Afrontamento, 1984, Immanuel Wallerstein, The Capitalist World Economy, Cambridge University Press, 1975, e Theda Skocpol, States and Social Revolutions de 1979.

 

De qualquer maneira, a escola, marcada pela procura de uma definição universal do político, nas suas análises concretas, acabou por procurar em cada espaço cultural apenas os elementos susceptíveis de encaixe no modelo apriorístico, não reparando nas manifestações mais significativas do político dessa cultura e esquecendo, assim, que o singular pode ser mais verdadeiro do que o geral. Além disso, considerando as práticas políticas como trans-históricas, negligenciou ou subestimou as transformações sofridas em cada uma delas e, ao assentar em persistências, banalizou os processos de ruptura e as crises.

 

Katz, Elihu Especialista e pioneiro dos temas da comunicação política. Elabora a chamada lei dos two steps flow of communication, a lei do fluxo a dois tempos,  segundo a qual os meios de comunicação de massa são interactivos, dado que os líderes de opinião que os criam, principalmente os editorialistas, os jornalistas especializados em temas políticos e os políticos que escrevem nos media são os mais atentos às mensagem emitidas pelos mesmos, sendo particularmente influenciados por elas. Considera assim os líderes de opinião como os indivíduos que ocupam uma posição intermediária entre os meios de comunicação de massa e o grupo ao qual eles pertencem. Transmitem a este grupo a sua própria interpretação da mensagem recebida dos media e contribuem deste modo para a formação da opinião.

  • ·Public Opinion and Propaganda

Nova York, Dryden Press, 1954. Ed.

 

Communication of Ideas, The 1948 Obra de Harold D. Lasswell, com a colaboração de L. Bryson. Obra clássica de análise da comunicação política, onde se formula o célebre quem diz o quê, através de que canal, a quem, e com que efeito? A partir de então desencadeia-se o estudo comparado das atitudes e opiniões dos destinatários dos meios de comunicação de massa antes e depois da recepção das mensagens.

 

Comunicação política De communicatio, oriundo de communis, a acção de tornar alguma coisa comum a muitos. Um dos quatro outputs do sistema político, segundo Almond e Powell, onde se dá a troca recíproca de informação entre governantes e governados, por um lado, e entre os próprios governados. O fenómeno da comunicação política é objecto de uma particular atenção, nomeadamente quanto ao papel dos meios de comunicação social e quanto às reflexões sobre a propaganda e a persuasão políticas. Várias são as pistas de estudo: o da retórica política; a influência dos grandes talk shows; a relação entre os opinion makers e os editorialistas; o papel do cinema; os novos modelos de comunicação electrónica, etc.. Contudo, a questão da comunicação tem sobretudo a ver com a necessidade da redescoberta de um novo espaço público de debate democrático, dado que a procura do representante e a emissão da opinião são hoje dependentes desses intermediários que constituem o chamado quarto poder. Se alguns ainda se iludem quanto à circunstância do jornalista e do comunicador visível ou audível se assumirem como seres autónomos, quem analisar, com realismo, os fenómenos em causa depressa descobre a rede invisível que os coordena, condiciona, censura ou controla. As heróicas campanhas pela liberdade de expressão contra as censuras institucionais e as leis da rolha parecem hoje ultrapassadas pelas circunstâncias da aldeia global e pelos negócios, mais caseiros, dos novos oligopólios que nenhuma lei contra a concorrência desleal ou de controlo das concentrações de empresas conseguiu tornear, ao mesmo tempo que uma nova e subtil forma de censura emerge através da ditadura das medições dos consumidores.

 

Obras como as de Tchakhotine [Le Viol des Foules par la Communication Politique, Paris, Gallimard, 1939], Elihu Katz [1954], Schramm [1954], Facchi [1960], Jacques Ellul [1962 e 1976], Brown [1963], Nimmo [1970, 1974, 1980, 1981 e 1990], Antoine [1972], Cazeneuve [1972 e 1986], Fagen [1973], Domenach [1975], Rosenblum [1979], Speier, Lerner e Lasswell [1980], Patterson [1980], Saussez [1985 e 1990], Cayrol [1986], Maarek [1986 e 1992], Mattelart [1986], Abramson [1988], Entman [1989], Proulx e Breton [1989], Nimmo e Swanson [1990], Balle [1992], Hartley [1992], Parenti [1992], Gerstlé [1992], John Antonio Maltese [Spin Control. The White House Office of Communications and the Management of Presidential News, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1992], Serge Albouy [Marketing et Communication Politique, Paris, L'Harmattan, 1994], e J. Herbert Altschull [Agents of Power. The Media and Public Policy, 2ª ed., Harlow, Longman, 1995] são de manuseio obrigatório para o correcto entendimento do fenómeno. A aldeia global da comunicação levou a que a forma preponderasse sobre a substância, que o continente se tornasse bem mais importante que o conteúdo, pelo que se tornou mais fácil a descoberta sobre o rei ir nu, com o consequente desencanto, a partir do momento em que se descobre a falta de autenticidade da imagem. Fala-se no aparecimento de uma comunidade electrónica (Abramson, 1988), de uma democracia catódica, geradoras de uma nova ideologia. O público transforma-se num Estado-Espectáculo, numa teatrocracia, num Estado-Sedutor, surgindo uma teledemocracia (Arterton, 1987), um videopoder. Recentemente, Régis Debray, em L’État Séducteur. Les Révolutions Médiologiques du Pouvoir [1993], propõe mesmo uma nova disciplina que não seria a moral nem a política, mas antes a mediologia, com a missão de explorar as vias e os meios da eficácia simbólica, decompondo-a na revolução fotográfica, na passagem do Estado do escrito ao Estado do écran e nas aventuras do índice.

 

Compreender. Em sentido etimológico, prender mais cum, apreender o conjunto, uma coisa com outra coisa e cada uma com o todo.

 

Compreensão (Aron):  não é uma capacidade misteriosa do espírito de se confundir, por assim dizer, com outro espírito, de se projectar por um acto de intuição divinatória nos sentimentos de um outro. A metodologia da investigação submete-se às regras do rigor e da prova em todas as disciplinas que se pretendem científicas.

 

Compreensão Do lat. comprehensio, acção de apreender conjuntamente, de cum mais prendere. Max Weber tenta introduzir nas ciências sociais a chamada sociologia compreensiva. Porque compreender um facto social é mais do que explicá-lo. Passa pelo caso particular e pela média, mas também impõe a construção do tipo ideal e do caso puro. A compreensão ultrapassaria, assim, a mera explicação causal.  Hannah Arendt também distingue a compreensão da cognição. Se a compreensão, enquanto pensamento, procura o sentido e o significado dos objectos, já a cognição, enquanto conhecimento, tem como fim a verdade. Se o conhecimento procura a coisa em si, como salienta Kant, preocupando-se com o que algo é, já o pensamento preocupa-se com o que significa o facto de aquele algo ser. Pensar é repensar a experiência de um fenómeno e o verdadeiro pensamento não pode ser provado.

 

Complexidade

 

Forma particular de agrupamento de elementos, diferente da agregação.  Esta é uma reunião de elementos não combinados, enquanto a complexidade é uma heterogeniedade organizada, ligando os elementos num conjunto com um raio determinado, ligando os vários elementos entre si. Segundo Henri Lepage esta “teoria dos sistemas complexos” regidos por “mecanismos de auto‑organização que respondem a flutuações aleatórias” está próxima de alguns teóricos da química molecular, como Konrad Lorenz e Jacques Monod, que defendem a existência de “processos de crescente complexificação, conducentes  a ordens espontâneas, permanentemente reposta em causa, mas que, por sua vez, levam à constituição de ordens sempre mais complexas. Finalmente a ideia estatica de uma ordem universal imutável é cada vez mais contestada por uma filosofia dinâmica da desordem e da entropia, também ela fundamentada na ideia neo‑darwiniana de uma selecção natural de sistemas de propriedades estruturantes(Morin)”.

 

Complexidade. Forma particular de agrupamento de elementos, diferente da agregação.  Esta é uma reunião de elementos não combinados, enquanto a complexidade é uma heterogeniedade organizada, ligando os elementos num conjunto com um raio determinado, ligando os vários elementos entre si.

 

Complexidade (Teilhard de Chardin). O contrário daquilo que é simples. O que caracteriza os sistemas abertos, em confronto com os sistemas fechados. Aqueles que são regidos  por mecanismos de auto-organização, que respondem a flutuações aleatórias e que têm processos de crescente complexificação, conduzindo a ordens cada vez mais espontâneas. Deste modo, cada nova ordem traz consigo novos desafios, donde surgem novas ordens ainda mais complexas. A complexidade diz respeito aos todos, às totalidades que não são simples justaposição de elementos simples, diz respeito aos todos centrados sobre si mesmos. A especificidade está na energia radial ou interna das coisas humanas, dessa anti-entropia que atravessa o mundo físico e o faz subir para o improvável. É esse poder que têm os seres vivos para a regeneração e para a multiplicação. Essa forma de energia que lança para cima e para dentro, para estados cada vez mais complexos e mais centrados. Essa forma de energia que liga os corpúsculos de centro a centro, de consciência a consciência sempre no sentido do improvável.

 

Complexidade Crescente, Lei da. Adaptando o pensamento de Teilhard de Chardin, Adriano Moreira enumera a lei da complexidade cresecente nas relações internacionais, segundo a qual a marcha para a unidade do mundo é acompanhada por uma progressiva multiplicação qualitativa e quantitativa dos centros de decisão (divergência) e de uma multiplicação quantitativa e qualitativa doas mútuas relações, tudo originando novas formas políticas (grandes espaços) e órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão.

 

Complexidade crescente, lei da

Aquilo que, Adriano Moreira, na esteira de Teilhard de Chardin, qualifica como a lei da complexidade crescente nas relações internacionais, que é acompanhada por idêntica complexidade crescente na reconstrução da polis. Há divergências e convergências que só podem ser superadas, não pelo ecletismo ou pela síntese, mas apenas por aquilo que Chardin qualificava por emergência, por aquela energia que lança para cima e para dentro, na direcção de um estado cada vez mais complexo e mais centrado. Segundo o ensino do Professor Adriano Moreira, há movimentos de convergência mundialista, ao mesmo tempo que se aceleram processos de divergência e de dispersão e dessa complexidade surgem novas formas políticas, desde os grandes espaços aos órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão. Dito de outra forma: a planetização dos fenómenos políticos, a marcha para a unidade do mundo, como se nota na existência de uma multiplicação das relações mútuas, acompanha-se de uma multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão. Isto é, as relações internacionais são complexas. E as coisas complexas são precisamente aquelas onde há, simultaneamente, convergência e divergência.  A convergência, a planetização dos fenómenos políticos nota-se na marcha para a unidade do mundo, onde problemas como a fome, a explosão demográfica e a domesticação da energia atómica são todos eles indivisíveis. A divergência nota-se na multiplicação das relações internacionais. Se, por um lado, se assiste a uma multiplicação quantitativa (aumentam os contactos através das velhas formas) e a uma multiplicação qualitativa (surgem novas formas de contactos) das relações internacionais, eis que também se dá uma proliferação dos centros de decisão que se manifesta no aumento do número de Estados (cerca de duas centenas), no aparecimento de novas entidades supra-estaduais, bem como no surgimento de Organizações Não Governamentais resultantes da internacionalização da vida privada.

 

 

 

 

A tese de Deutsch: a comunidade como um grupo de pessoas a quem compreendemos e por quem somos compreendidos e a noção de povo como um grupo de pessoas que compartilham hábitos complementares de comunicação.

 

Comunidade (Radbruch): uma forma transpessoal das relações entre os homens, exprimindo uma figura especial cuja essência é constituída por uma relação entre os homens derivada da existência de uma obra comum que os prende entre si. Enquanto a sociedade é a forma de vida em comum do individualismo, a comunidade é a forma de vida em comum daquilo que ele qualifica como transpersonalismo que nada teria a ver com o supra-personalismo, o supra-individualismo ou o totalitarismo, dado que abrange e combina entre si, duma maneira particular, certos elementos do individualismo e do supra-individualismo, aproximando-se bastante do institucionalismo de Hauriou.

 

Comunidade (Tonnies). A comunidade (Gessellschaft), ao contrário da sociedade tem a ver com uma vontade  essencial ou orgânica. Seria, pois, um tipo especial de associação que teria a ver com os imperativos profundos do próprio ser, dizendo respeito mais à vontade de ser, enquanto vontade essencial, do que à vontade de escolher. Se, entre as comunidades destaca a família – a comunidade de sangue –, a aldeia – a comunidade de vizinhança – e a cidade – a comunidade de colaboração –, englobando tanto as comunidades de espírito como as comunidades de lugar, já entre as sociedades coloca as empresas, industriais e comerciais, bem como outros grupos constituídos por relações baseadas em interesses. É um grupo que os homens encontram constituído quando nascem. Têm uma vontade orgânica que se manifesta na afectividade, no hábito e na memória, através de uma totalidade afectiva.

Comunidade (Weber). Enquanto a pertença à sociedade, ou associação, assenta numa partilha de interesses, marcada por uma vontade orientada por motivos racionais, já a comunidade é entendida como um grupo a que se pertence por aceitação de valores afectivos, emotivos ou tradicionais, considerando que a acção comunitária refere-se à acção que é orientada pelo sentimento dos agentes pertencerem a um todo. A acção societária, por sua vez, é orientada no sentido de um ajustamento de interesses racionalmente motivado.

 

Comunidade. Castanheira Neves. A perspectiva de Castanheira Neves: a comunidade como o nós e a sociedade como os eus. O sentido espiritual e a ordem ontológica imanente das comunidades. Partindo da injunção do jurista Walter Schõnfeld em Über dieGerechtigkeit, para quem a comunidade é o nós e a sociedade os eus, Castanheira Neves  considera que a comunidade é não só condição empírica de cada um, como também condição ontológica da pessoa. Enquanto condição empírica de cada um, oferece‑nos complementaridade (como no caso dos sexos) e colaboração (como no caso da divisão de trabalho). Como condição ontológica da pessoa, reconhece que só no intercâmbio existencial com os outros (na comunicação… ) o ser autónomo e pessoal vem à sua epifania. Se da primeira condição se infere o princípio ou exigência da solidariedade (se o que somos devemos aos outros, temos de concorrer para os outros), já da segunda  ressalta o princípio ou exigência da co‑responsabilidade (nós somos responsáveis pelo ser dos outros, e os outros são responsáveis pelo nosso ser).

Comunidade. Karl Deutsch. A tese de Deutsch: a comunidade como um grupo de pessoas a quem compreendemos e por quem somos compreendidos e a noção de povo como um grupo de pessoas que compartilham hábitos complementares de comunicação. — A utilização do conceito de comunidade pelas ideologias antidemoliberais dos anos vinte e trinta deste século. A distinção comunidade/sociedade na actualidade: valor meramente tendencial, dado que todo o agrupamento é, ao mesmo tempo, sociedade e comunidade.

 

Quando o Estado se identifica com uma máquina, refina os mecanismos da conquista e da repressão. Assim, a conquista dirigida para o interior do país chama-se propaganda ou repressão. Dirigida para o exterior cria o exército”. Porque “para adorar por tempos e tempos um teorema, a fé não chega; há ainda que mobilizar a polícia”. E “enquanto houver inimigos, reinará o terror, e haverá sempre inimigos enquanto o dinamismo existir e para que ele exista”.

 

Em termos cibernéticoss, trata-se de um modleo de s, trata-se de um modelo de comunicação onde um conjunto de pessoas comunica entre si, tornando-se mais similares no plano do conhecimento e das atitudes, pelo que convergem para uma distribuição harmónica.

 

Coordenação O acto de organizar qualquer coisa. Um processo de comunicação onde o emissor provoca nos receptores uma co-orientação, obrigando a que estes actuem concertadamente, havendo efeitos na estrutura do grupo. É o caso típico do maestro, enquanto condutor de uma orquestra, fazendo com que esta actue como um conjunto, dado que a variedade dos participantes consegue actuando pela diferença produzir a harmonia.

 

A questão da comunicação tem sobretudo a ver com a necessidade da redescoberta de um novo espaço público de debate democrático, dado que a procura do representante e a emissão da opinião são hoje dependentes desses intermediários que constituem o chamado quarto poder.

 

Se alguns ainda se iludem quanto à circunstância do jornalista e do comunicador visível ou audível se assumirem como seres autónomos, quem analisar, com realismo, os fenómenos em causa depressa descobre a rede invisível que os coordena, condiciona, censura ou controla.

 

As heróicas campanhas pela liberdade de expressão contra as censuras institucionais e as leis da rolha parecem hoje ultrapassadas pelas circunstâncias da aldeia global e pelos negócios, mais caseiros, dos novos oligopólios que nenhuma lei contra a concorrência desleal ou de controlo das concentrações de empresas conseguiu tornear, ao mesmo tempo que uma nova e subtil forma de censura emerge através da ditadura das medições dos consumidores. Obras como as de Tchakhotine [Le Viol des Foules par la Communication Politique, Paris, Gallimard, 1939], Elihu Katz [1954], Schramm [1954], Facchi [1960], Jacques Ellul [1962 e 1976], Brown [1963], Nimmo [1970, 1974, 1980, 1981 e 1990], Antoine [1972], Cazeneuve [1972 e 1986], Fagen [1973], Domenach [1975], Rosenblum [1979], Speier, Lerner e Lasswell [1980], Patterson [1980], Saussez [1985 e 1990], Cayrol [1986], Maarek [1986 e 1992], Mattelart [1986], Abramson [1988], Entman [1989], Proulx e Breton [1989], Nimmo e Swanson [1990], Balle [1992], Hartley [1992], Parenti [1992], Gerstlé [1992], John Antonio Maltese [Spin Control. The White House Office of Communications and the Management of Presidential News, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1992], Serge Albouy [Marketing et Communication Politique, Paris, L'Harmattan, 1994], e J. Herbert Altschull [Agents of Power. The Media and Public Policy, 2ª ed., Harlow, Longman, 1995] são de manuseio obrigatório para o correcto entendimento do fenómeno.

 

A aldeia global da comunicação levou a que a forma preponderasse sobre a substância, que o continente se tornasse bem mais importante que o conteúdo, pelo que se tornou mais fácil a descoberta sobre o rei ir nu, com o consequente desencanto, a partir do momento em que se descobre a falta de autenticidade da imagem. Fala-se no aparecimento de uma comunidade electrónica (Abramson, 1988), de uma democracia catódica, geradoras de uma nova ideologia. O público transforma-se num Estado-Espectáculo, numa teatrocracia, num Estado-Sedutor, surgindo uma teledemocracia (Arterton, 1987), um videopoder. Recentemente, Régis Debray, em L’État Séducteur. Les Révolutions Médiologiques du Pouvoir [1993], propõe mesmo uma nova disciplina que não seria a moral nem a política, mas antes a mediologia, com a missão de explorar as vias e os meios da eficácia simbólica, decompondo-a na revolução fotográfica, na passagem do Estado do escrito ao Estado do écran e nas aventuras do índice.

 

Cidadania (citizenship em inglês e Staatsburgerschaft, em alemão), quer dizer pertença de um indivíduo a um determinado Estado, do ponto de vista jurídico interno, distinguindo-se da nacionalidade (nationality em inglês e Staatsangehorigkeit em alemão), a pertença de um indivíduo a um Estado do ponto de vista jurídico-internacional, abrangendo tanto os cidadãos propriamente ditos como os meros súbditos que não gozam da plenitude dos seus direitos.

 

A cidadania, enquanto participação nos assuntos públicos, impõe necessariamente um espaço público, um espaço onde a liberdade aparece e se torna visível a todos, não havendo instauração da liberdade  sem que um corpo político garanta o espaço onde a liberdade pode surgir, onde a liberdade pode existir em público, transformando-se numa realidade mundana, tangível, qualquer coisa criada pelos homens para ser gozada pelos homens. Neste sentido, em política o que parece é também o que aparece e, logo, o que é. Porque sem esta cidadania do agir em público, na praça pública, o domínio público transforma-se numa obscuridade, em algo de invisível, no segredo de Estado. Da mesma forma, a cidadania impõe uma felicidade pública e não apenas o bem-estar privado, que a própria tirania pode permitir. Como salienta a mesma Arendt há o perigo de confundir felicidade pública e bem-estar privado, dado que aquela consiste no direito de acesso do cidadão ao domínio público, da sua participação no poder público e os homens sabem que não podem ser totalmente felizes se a sua felicidade estiver situada e for apenas usufruída na vida privada. Além disso, a cidadania não se confunde apenas com a protecção dos indivíduos contra os abusos do poder. A liberdade política implica a felicidade política.

 

Cidadania é o mesmo do que autonomia. Para Kant, uma terceira via que permite conciliar a ordem com a liberdade e só possível através do direito. É a submissão à autoridade que cada um dá a si mesmo. Assim, é possível rejeitar a liberdade sem ordem, a anarquia, bem como a ordem sem liberdade, o despotismo.

 

No sentido etimológico e segundo a definição de Aristóteles, cidadãos (politai) são aqueles que participam nas decisões da polis, exercendo um cargo político ou tendo direito de voto nas assembleias públicas ou nos júris. Difere do escravo e do súbdito.

 

Segundo as concepções aristotélicas, cidadão é aquele que participa nas decisões da comunidade política. Nesta base o cidadão é aquele que ora governa ora é governado. Neste sentido, difere do escravo (esse que é instrumento do senhor e tem um dono) e do súbdito (aquele dependente de um soberano ou de um patriarca, à imagem e semelhança da relação pai/filho, onde o poder, é um poder-dever,  porque é para bem do súbdito que não é considerado instrumento). Aristóteles refere que o cidadão é aquele que tem a possibilidade de aceder à assembleia dos cidadãos e de desempenhar funções judiciárias. Não é apenas aquele que habita num determinado território. Sem a participação dos cidadãos na governação não há política, até porque a polis não passa de uma colectividade de cidadãos.

 

Segundo Georges Burdeau, o apaziguamento ideológico é típico daquilo que qualifica como Estado Funcional, onde o mesmo Estado pretende ser qualificado pela função que exerce na sociedade, num tempo de neo-capitalismo com o Poder agrilhoado pela sociedade técnica. Nestes termos o apaziguamento ideológico defende que a função política deve ser submetida a simples imperativos de previsão e de cálculo racionais. mais do que um crepúsculo ou fim das ideologias, há um hibridismo ideológico, um dominante regime de mestiçagem de vulgatas…

 

a criar uma espécie de   Estado‑Funcional que “sem deixar de ser um Poder,é qualificado pela função que cumpre na sociedade” ,é “o poder agrilhoado pela sociedade técnica” e o “sustentáculo ideológico do neo‑capitalismo”,que “defende a tese do apaziguamento ideológico” dado ser “aquele  em que a função política é considerada como submetida aos simples imperativos da previsão e do cálculo racionais”. o mundo político é da “mesma natureza que o universo poético”,dado que “é povoado por crenças, convenções e  símbolos”.E isto porque “se o político é o reflexo de uma imagem que a sociedade faz de si mesma,concebe‑se facilmente que ele seja solidário de símbolos e de mitos que sustentam esta representação”.

 

Ellul, Jacques 1912-1994 Ensaísta e sociólogo francês, de religião protestante. Jurista de formação. Crítico do modelo da modernidade. Um dos teóricos da sociedade técnica. Considera que deixou de haver simples técnicas, simples instrumentos ou máquinas e passou a haver a técnica, o milieu technique. A mediação já não se faz entre o homem e o ambiente, mas dentro do próprio meio técnico-. A técnica transformou-se ela própria no suporte da comunicação, gerando-se um conformismo. Se o homem continua a poder escolher, tem de o fazer no âmbito do próprio sistema técnico cada vez mais complexo. Este modelo levou ao esmagamento da cidadania e à modificação do funcionamento das próprias instituições democráticas. As escolhas dos cidadãos passam a ser dominadas por considerações técnicas que desvalorizam os elementos políticos propriamente ditos, como as ideologias, os intereses partidários e as estratégias de corrupção. O debate político corre o risco de se tornar artificial, surgindo o Estado.Espectáculo. O cidadão não consegue enfrentar os problemas políticos quando estes são dominados por parâmetros técnicos. O mesmo acontece com os próprios parlamentares, incapazes de compreensão da complexidade técnica. A democracia corre o risco de transformar-se numa oligarquia de especialistas que exercem a respectiva actividade no segredo dos gabinetes e que tomam decisões a que os cidadãos são cada vez mais estranhos.

 

Cooperação de serviços públicos Léon Duguit, assumindo a doutrina solidarista, considera o Estado como uma cooperação de serviços públicos, onde a actividade de prestação seria mais importante que a de dominação. O conceito serve para ultrapassar o modelo liberal do laissez faire contribuindo para o desenvolvimento do intervencionismo do Estado Providência. Refere o Estado como uma cooperação de serviços públicos onde a actividade de prestação é mais importante do que a dominação. Neste perfil do Estado como gestor, Duguit, como assinala Châtelet, vai abrir as portas ao intervencionismo do Estado Providência ultrapassando os preconceitos do laissez faire do Estado Liberal. Saliente‑se que para Duguit o homem é por natureza um ser social e os seus actos não têm valor senão na medida em que são actos sociais, quer dizer, actos  que tendem à realização da solidariedade social e têm  tanto mais valor quanto lhe tragam uma contribuição maior Considera, assim, que a regra de direito é uma criação espontânea do meio social, da consciência social ou, se se preferir, da soma das consciências individuais.

 

Co-responsabilidade Castanheira Neves considera que a comunidade é não só condição empírica de cada um, como também condição ontológica da pessoa. Enquanto condição empírica de cada um, oferece‑nos complementariedade (como no caso dos sexos) e colaboração (como no caso da divisão de trabalho). Como condição ontológica da pessoa, reconhece que “só no intercâmbio existencial com os outros (na comunicação… ) o ser autónomo e pessoal vem à sua epifânia”. Se da primeira condição se infere o princípio ou exigência da solidariedade (se o que somos devemos aos outros, temos de concorrer para os outros), já da segunda  ressalta o princípio ou exigência da co‑responsabilidade (“nós somos responsáveis pelo ser dos outros, e os outros são responsáveis pelo nosso ser”).

 

Cultura A herança ou o património artístico e científico de uma determinada comunidade ou sociedade. Ideias, expectativas, atitudes e crenças geradas pela interacção dos indivíduos sobre as suas actividades comuns. Uma comunicação inter-geracional de informação que vai além da transmissão da informação genética, comunicação que se incorpora em artefactos materiais (o património cultural físico como livros, edifícios ou obras de arte), formas de comportamento (canções, rituais, instituições) ou sistemas de distinções (classificações, histórias, conhecimento codificado em símbolos, ideias ou crenças). A cultura revela assim as respostas individuais e colectivas que são dadas às condições ambientais que desafiam o grupo, pelo que o respectivo conteúdo é continuamente sujeito a processos evolutivos. Assim, a cultura dá sentido às acções e aos objectos da vida social. Tanto há uma cultura dominante, como subculturas que podem actuar de forma contrária à cultura do grupo.

 

Aliás, a democracia representativa tende a ser desafiada pelas degenerescências de certa sondajocracia tão maligna quanto as experiências de democracia directa vanguardista. A mistura do pior dos populismo e das demagogias, com as eventuais manipulações da opinião pública pode conduzir, aliás, a novas formas de inquisitorialismo, promovidas pela minoria activa de uma intelligentzia geradora de um big brother bem mais amordaçante que anteriores formas de lavagem ao cérebro promovidas pelos bacilos revolucionários e pelos intelectuais orgânicos.

 

Sobre a opinião pública, importa reter as obras de Truman [1951], Katz [1954], Key [1961], Sauvy [1977], Padioleau [1981], Nieburg [1984], Margolis e Mauser [1989], Champagne [1990], Milburn [1991], e Fishkin [1995]. Fishkin, James S., Laslett, Peter,        The Voice of the People. Public Opinion and Democracy, New Haven, Yale University Press, 1995. Katz, E., et alii, eds., Public Opinion and Propaganda, Nova York, Dryden Press, 1954. Key Jr., Vladimir O., Public Opinion and American Democracy, Nova York, Alfred A. Knopf, 1961. Lippmann, Walter, Public Opinion and Popular Government, Nova York, Longmans, Green & Co., 1913. Margolis, Michael, Mauser, Gary A., Manipulating Public Opinion. Essays on Public Opinion as a Dependent Variable, Monterrey, Brooks, 1989. Milburn, Michael, Persuasion and Politics. The Social Psychology of Public Opinion, Monterrey, Brooks, 1991. Nieburg, Harold L, Public Opinion. Tracking and Targeting, Nova York, Praeger Press, 1984. Truman, David B., The Governmental Process. Politic Interests and Public Opinion, Nova York, Alfred A. Knopf, 1951. Katz, E., et alii, eds., Public Opinion and Propaganda, Nova York, Dryden Press, 1954. Sauvy, Alfred, Le Pouvoir et l’Opinion, Paris, Librairie Payot, 1949. L’Opinion Publique, 7ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1977.

 

Jacques Ellul

 

  • ·La Technique ou l’Enjeu du Siècle

Paris, Librairie Armand Colin, 1954.

  • ·Propagandes

Paris, Librairie Armand Colin, 1962.

  • ·L’Illusion Politique

Paris, Éditions Robert Laffont, 1965.

  • ·Histoire de la Propagande

Paris, Presses Universitaires de France, 1976.

  • ·Le Système Technicien

Paris, Calmann-Lévy, 1977.

  • ·La Parole Humiliée

Paris, Éditions du Seuil, 1981.

 

 

Rogério Soares

  • ·Direito Público e Sociedade Técnica

Coimbra, Atlântida Editora, 1969.

 

}Beiner, Ronald,, ed., Theorizing Citizenship, Albany, State University of New York Press, 1995. } Bendix, Reinhard, Nation-Building and Citizenship. Studies of Our Changing Social Order, Nova York, John Wiley & Sons, 1964. } Colas, Dominique, Emeri, Claude, eds., Citoyenneté et Nationalité, Paris, Presses Universitaires de France, 1991. } Déloye, Yves, La Citoyenneté au Miroir de l’École Républicaine (dissertação de doutoramento), Université de Paris I, 1992. }Idem, École et Citoyenneté. L’Individualisme de Jules Ferry à Vichy. Controverses, Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1994. } Centre de Philosophie Politique et Juridique de L’Université de Caen, Souverainité et Citoyenneté, Caen, 1983 } Kymlicka, Will, Multicultural Citizenship. A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, Oxford University Press, 1995. } Macedo, Stephen, Liberal Virtues. Citizenship, Virtue and Community in Liberal Constitutionalism, Oxford, Clarendon Press, 1990. } Trend, David, ed., Radical Democracy. Identity, Citizenship and the State, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1995. } Walzer, Michael, Obligation. Essays on Disobedience, War and Citizenship, Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 1970.

 

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