Vou captando muitos sinais de um sistema em curto-circuito, onde algumas imagens valem mais do que imensos discursos analíticos. Felizmente, alguns magistrais jornalistas conseguem lançar, através das redes radiotelevisivas, paradigmas de uma geração que nos vai enredando em palavras que não reflectem as lições de um Pascoaes, de um Cortesão, de um Pessoa, ou de um Agostinho da Silva, das tais palavras de um discurso de justificada resignação que talvez não correspondam à pátria de Camões ou de Fernão Mendes Pinto. É por isso que um profundo impulso me manda procurar Portugal fora de Portugal. Com efeito, as nossas magistraturas tiveram, ontem, depois do jantar, direito a mediáticas intervenções. Assisti integralmente a uma delas e fiiquei sumamente esclarecido e profundamente preocupado, principalmente depois de ler outros magistrais, mais presos ao chão dos processos. Um dizia que não falava em filosofia do direito porque preferia a ideologia da corrente filosófica pragmática e que só se preocupava com os factos, segundo a corrente filosófica de Comte, mas quando começou a enredar-se na especulação logo caiu na filosofice da conversa de viagens de quem foi a Paris, para, depois, dizer que os povos da Europa do Sul, da tal honra mediterrânica, donde vieram Platão, Aristóteles e Cícero, não enraizaram a autoridade, autoridade vinda de auctoritas que eles inventaram e que nunca teve nada a ver com a Ordnung que as brumas do norte fizeram degenerar. Não deixou mesmo de acrescentar que tal se devia a não ter havido recepção do “imperativo categórico Kantiano”. O entrevistador, tentando descodificar a imensidão abstracta, logo o interrogou sobre o que era isso. O interpelado reagiu com alguma irritação e disse que não estava a fazer um exame. Mas logo se recompôs e misturando a palavra ética com qualquer outra coisa, disse que isso tinha a ver com o respeito dos direitos dos outros, saiu da legalidade e tentou passar para a moralidade. Lembrei-me de defender a honra mediterrânica e de manter-me neoKantiano, em nome de ibéricos como Ortega y Gasset, António Sérgio ou Cabral de Moncada. Sublinhei na memória os juristas da Roma clássica. Os juristas do imperador Justiniano. Os fundadores de Bolonha. De S. Tomás de Aquino, de Acúrsio, de Bártolo, dos glosadores e dos comentadores. E do nosso João das Regras. Cheguei mesmo a João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia. Mas parei em Manuel Fernandes Tomás que é o meu exemplo de magistrado, da tal honra misturada com a inteligência que prestigiou o partido dos becas. Pensei em Espinosa, no seu filho Rousseau, de cuja mistura nos veio o iluminismo de Kant, que assumo em razão prática, e, como “homme du midi”, fiquei orgulhoso deste mar interior pleno de luz, onde sempre houve gente que dialogou, entre pagãos e cristãos, papistas e maçons. Apenas concluo que a poesia é mais verdadeira do que certa interpretação da história. Já houve um ministro, que ainda o é, que, quando era ministro das polícias, disse que elas não eram a sua polícia. Que não haja em Portugal autoridades que possam dizer que este não é o seu povo, o seu direito, a sua civilização! Uma geração que queira a utopia do sem lugar pode acabar sem tempo e resignar-se ao situacionismo de um estado em minúscula que é aquele a que chegámos e não o Estado-Razão que devia pretender derrubar a Razão de Estado! O que disse a quarta figura do Estado, a que chegámos, sem deixar de ser verdade, é pouca uva para tanta parra. É evidente que o supremo magistrado sabe que isso do imperativo categórico pode ter a ver com o exemplo. E, da televisiva conduta dele, não se conseguiu extrair a máxima universal de que estávamos à espera. Por isso, fiquei aliviado com o fim da perlenga e passei para outro canal, onde perorava outra alta figura da magistratura, mas da tal outra. Fiquei, pelo menos, a saber que a ilustre senhora, juntamente com o marido e a filha, durante toda a vida, nem sequer viram cinco minutos de futebol, devido ao defeito do daltonismo, pelo que não sabem distinguir o azul do verde e o vermelho do preto e branco que dá xadrez. Apenas me foi dado confirmar que lá se foi mais uma oportunidade perdida para as magistraturas se aproximarem do povo. Sonhei. Sonhei que o contrato social (Staatsvertrag) devia transformar-se na razão pura prática, como universal legisladora (rein rechtlich gesetzgebende Vernunft), em ideia pura com fins regulativos. Mas, para tanto, a própria vontade geral (allgemeiner Wille) tem de tornar-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal Porque, exacerbando todo o processo jusracionalista, Kant transformou assim o direito natural numa coisa que éimanente ao homem, em algo que é por ele querido e criado, deixando de ser um transcendente, enquanto alguma coisa exterior que era imposta ao homem. Porque o mundo do dever‑ser, da razão‑prática, é o domínio da faculdade activa, do agir, o mundo dos fins e do valioso, dado que, pela ética, é possível ultrapassar o mundo dos fenómenos e aceder ao absoluto, à zona das ideias inteligíveis, das leis morais, marcadas pela racionalidade e pela universalidade.