Assisto televisivamente à sessão de abertura do ano judicial. À sombra de um retrato de D. Maria II, a rainha que sofreu em Londres o escandaloso processo que a enlameou, juntamente com Costa Cabral, depois de fuga de informação da agência negra dos miguelistas no exílio, precedendo as presentes manobras pidescas e neo-inquisitoriais. Confirmo a grave crise de pensamento. Cada um dos grandes chefes dos operadores judiciários disse que a D. Maria da Culpa não estava casada com ninguém da respectiva família corporativa. E o supremo sacerdote da nossa religião civil atribuiu responsabililidade à má qualidade da legislação, reduzindo o direito a mera produção em linha do poder legislativo. Todos tiveram razões, mas nem todos juntos atingiram a razão complexa que necessitamos, a qual apenas precisa de uma agulha e de um furo no ovo. Todo o sistema, no seu melhor, considerou a trapalhada como simples resultante de todo esse quadrilátero de forças. Por outras palavras, os assuntos judiciários e partidocráticos correm o risco de entrar na opinião pública sensacionalista, à boa maneira da discussão futeboleira do dia seguinte ao jogo. Por outras palavras, t udo como dantes, quartel general no mais do mesmo. Apenas comento com uma frase que, outrora emiti e que ontem recolhi de um site jurídico brasileiro: É difícil polir e civilizar o despotismo, isto é, darmos “polis” e “civitas” àqueles que continuam a não distinguir o Estado da casa, a confundir o governo político e civil com o governo doméstico, para utilizarmos as palavras de Montesquieu. Por isso, transcrevo depoimento ontem publicado pelo semanário “O Diabo”: A expressão elite tanto pode ter uma conotação neutra, enquanto indivíduos ou grupos que ocupam as mais altas posições numa hierarquia social estratificada, como um sentido pejorativo, quando, com ela, quer significar-se um pequeno grupo de pessoas com um desproporcionado poder de influência sobre as decisões finais de um determinado grupo. Pode até ter um sentido positivo, quando com a expressão se entende um grupo de pessoas que possui melhores condições para o exercício de determinadas funções, nomeadamente pela educação recebida ou pelas capacidades demonstradas. Neste último entendimento, a expressão tem a conotação de aristocracia, como o governo dos melhores, equivalendo à meritocracia e não ofendendo o princípio da igualdade, se existirem efectivas condições para o estabelecimento da igualdade de oportunidades. Em Portugal, hoje, apenas temos, a nível da classe política, elites em sentido etimológico, isto é, apenas temos eleitos, não segundo a meritocracia que continuamos a não ter em sentido aristocrático, mas antes de acordo com outras degenerescências da procura dos melhores, dado que acaba por dominar a plutocracia. Em Portugal, onde muitos dos discursos sobre a necessidade das elites continua a ser cantarolado por velhos, novos e pós-fascistas, poucos lêem um Bachrach outros defensores da teoria elitista da democracia, segundo a qual a autodeterminação popular foi substituída pela competição entre elites, restando aos eleitores a escolha entre uma delas. Infelizmente, continua a faltar-nos um sistema aberto, impedindo que as elites convertam o seu poder em hereditário e admitindo o acesso ao sistema de novos grupos. Porque as elites estão dessiminadas por vários sectores (política, economia, educação, ciência, etc.), não conseguindo criar entre elas uma aliança unificada que evite esta fragmentação. De certa maneira, voltámos à doença clássica da oligarquia que, citando Platão, é o governo das famílias ricas; a potencial guerra civil com os pobres, a cidade enferma em luta consigo mesmo; é uma forma de governo, onde o censo decide sobre a condição de cada cidadão; onde os ricos, por consequência, exercem o poder sem que os pobres nele participem… As pretensas elites que, como tal se assumem, deixaram de ser dos homens livres e passaram a ser instrumento da oligarquia e da plutocracia, fugindo à missão de servir o povo. Basta assinalarmos que a pior das corrupções que nos enreda é, precisamente, a dos pretensos intelectuais…