A série do Salazar garanhão

Confesso que tenho assistido, entre o sofá e a secretária,  mas com todo o cuidado auditivo, à série do Salazar garanhão, a perder a fé, dado a bruxarias e à variedade dos concubinatos, típicas das recaídas pagãs, como se pagus não fosse aldeia, etimologicamente falando, e não fossem tradição as teúdas e manteúdas dos grande chefes dosvícios privados, virtudes públicas.  Prefiro reflectir sobre o ambiente retrospectivo da série de Salazar , procurando esconjurar os fantasmas salazarentos. Porque o travo que nos fica, depois de assistirmos a essa nova versão da Emmanuele de Santa Comba, quase ameaça a democracia, ao mostrar-nos um estadista que alcançou o cognome que também marcou Robespierre, o de incorruptível, mas, tal como o seu irmão-inimigo jacobino, também dado ao terror. Mesmo com os vícios de seminarista e de namorado frustrados, o essencial da mensagem tem a ver com o pecado natural de um humano, demasiado humano. São perigosas estas viagens pelas intimidades da tal história que, conforme dizia um ministro de Salazar , Armindo Monteiro, depois de saneado, é o género literário mais próximo da ficção. São, sobretudo, perigosas neste momento em que o regime democrático ameaça degenerescência, até porque nos faltam menos de dez anos para completarmos, neste regime, o tempo que durou a governação de Salazar . Um autoritarismo que, apesar de ter no cume um incorruptível, também viveu rodeado de corrupção, promovida pelos mesmos agentes que, agora, estão apodrecendo este nosso péssimo regime, mas, com toda a certeza, o menos péssimo de todos os que tivemos desde o terramoto Pombalista, quando o despotismo ministerial destruiu o consensualismo da lusitana antiga liberdade. Por mim, ainda estou disposto a lutar pelos tradicionais princípios e valores demoliberais, mas acredito que, sem a restauração da república, contra aquilo que Salazar clamava como a fina flor da plutocracia, corremos o risco de continuarmos sujeitos ao arbitrário do domínio perpétuo do acaso e do governo dos espertos. Espero que os nossos responsáveis partidocráticos entendam estes sinais do tempo, auscultando como a opinião pública observa esta viagem pela memória salazarenta . E a melhor maneira de denunciarmos esta pesada herança é a de sublinharmos que o Estado Novo, com o seu condicionamento industrial, criou uma estufa de proteccionismo para as forças vivas da inércia, assentes numa economia privada que nunca foi pluralista e competiva, isto é, economia de mercado, sem fidalgotes a queimarem e a exilarem os judeus e cristãos novos. Salazar foi o pior dos adversários do espírito liberal e não apenas pela intolerância e a persiganga policiescas do autoritarismo. Mantendo o despotismo ministerial do pombalismo e algum caceteirismo da Viradeira, foi um efectivo primeiro-ministro de um imaginado rei absoluto, entre a esquizofrenia de João Franco, que matou a democracia, e o neofradesco inquisitorial.  Caso não esconjuremos este avô tirano, nunca repararemos como é impossível, pela natureza das coisas, um qualquer salazarismo democrático, porque um regime misto, como deve ser a democracia pluralista do Estado de Direito, nunca pode fazer desabrochar as sementes da ditadura, incluindo a tecnocrática ditadura das finanças. Mesmo o apelo ao anticapitalismo, quando já não há soberanismo, émeras droga ideológica que não nos cura de uma doença que precisa urgentemente de um direito público universal, e não das ilusões albanesas.

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