A nossa democracia não nasceu nas cidades…

Começa a Primavera, com muita chuva chegando à terra, enquanto mais um novo governo se vai apresentando parlamentarmente. E vou ouvindo atento que a democracia nasceu nas cidades. O que, sendo verdade para a Grécia antiga, talvez não o seja para Portugal. Que, aqui, a democracia mergulha as suas raízes no visigótico conventus publicus vicinorum, começando por ser a igualdade aldeã, assente na freguesia, nessa comuna sem carta, como lhe chamava António Sardinha. Foi, freguesia a freguesia, que fizemos o concelho. Foi, concelho a concelho, que nos demos em comunidade de nossa terra, com voz em Cortes. Foi, a partir da aldeia, que acedemos à república maior, ao abraço armilar, que passámos, de homens bons, a homens livres, sempre a caminho da república universal, da nação, enquanto super-nação futura.  O Portugal político, isto é, o Portugal democrático, porque não há polis sem democracia, é essencialmente de vizinhos, dos que, pelo small is beautiful, sabem que só pode haver comunidade peloface to face. Com efeito, os profundos factores democráticos da formação de Portugal levaram a que as nossas cidades e vilas fossem feitas por subscrição aldeã. Mesmo Lisboa, das sete colinas ou das sete aldeias federadas, não deixa de ser terra de hortas e de gente nostálgica do rio que passa em suas terras. Talvez só o Porto seja retintamente burguês, no seu oppidum, feito capital do bloco rural do Norte, como porta aberta ao comércio externo e ao sentido de viagem. Aquilo a que muito chamam pequeno-burgueses talvez não passe desses habitantes de uma urbe com saudades da santa-terrinha, dos que sofreram o cerco dos invasores e que a partir dos portos urbanos peregrinaram por todo o mundo. Para plantarem mais aldeias, mais concelhos, mais cidades… Aliás, todos poderão continuar a condecorar-se uns aos outros, seguindo essa ética herdada da II República, recondecorando comendadores de outrora e, todos felizes e todos contentes, poderão continuar a dar consultas, pareceres, avenças, reformas e paródias sobre o fluxo de subsídios gerados pelos impostos que carregam sobre os trabalhadores por conta de outrem, os tais que não podem beneficiar dos apoios de pessoas colectivas de utilidade pública. O restante país, que é o país, entre este novo senhor feliz e este velho senhor contente, parece já estar disposto a veranear, a dar um gigantesco sim à constituição europeia, a tratar de jardinagem, a polir o carrinho e a esperar pelo próximo anúncio de saldos dos hipermercados, satisfeitos com a possibilidade de um novo negócio no ramo dos medicamentos de venda livre.  O nosso velho Estado Novo, dito Welfare State, ainda tem suficientes jóias da coroa para evitar que se entre no rodopio doWarfare State, até porque sempre podemos privatizar as praias ou vender em lotes o novo espaço de acrescentamento da zona económica exclusiva. Aliás, não é de descartar a hipótese de haver petróleo no Beato. E enquanto o pau vai e vem, de Bruxelas para Washington, folgarão as costas da engenharia financeira, com muitos honestos a gerirem corruptos e outros tantos corruptos a gerirem honestos, em regime de alterne.  Se o dito Estado-Providência se tornou num Estado-Falência, só me custa ver que o tal discurso quanto à moralização da administração pública continue a ser feito por alguns que representam o pior do que houve a nível do negocismo feitooutsourcing, através das muitas sociedades de economia mística, encabeçadas pelos desempregados da partidocracia. Se não forem denunciados os responsáveis pelo caos a que chegámos, se não pudermos determinar quais os honestos que geriam corruptos e quais os corruptos que geriam honestos, a partidocracia continuará a manipular-nos, a tomar medidas contra os outros e a não ter a coragem simbólica de ela própria oferecer ao povo um acto de coragem: tomar a decisão parlamentar de renunciar à mesma percentagem de subvenções estaduais que, em cada mudança de sinal governativo, costuma ser tirada aos chamados funcionários públicos e à chamada classe média.  Resta saber o que acontecerá quando o estado de graça e as altas expectativas deste gigante de entusiasmo que até corre a Maratona se volverem em desencanto e frustração, diluindo-se nos pés de lama em que o fizemos assentar? Será que só então descobriremos que as presentes boas intenções sistémicas não assentavam nas necessárias boas ideias nem tinham suficientes raízes na opinião pública, na sociedade civil e no civismo participativo?  Será que só então perceberemos que o unanimismo ideológico, além de ser mau conselheiro, é revelador de uma cobardia massificada e fruto de um longo desinvestimento nas autonomias individuais? Porque países com a nossa dimensão e até com infra-estruturas axiológicas próximas conseguiram resistir e crescer, para cima e para dentro, de forma sustentada, adoptando o conceito originário da new frontier, que sempre foi ir além dos limites, na procura do paraíso. Porque o tal varar as fronteiras que o irlandês Kennedy tornou em slogan sempre foi a americanização do nosso bandeirante, dessa procura de um far west que nos desse o mar sem fim.  Importa voltar a querer, não uma ilha sem lugar, onde é provável o afundamento sem regresso, nem o menos mau da empregomania e do salve-se quem puder, mas o aqui e agora da subversão pela justiça, num transcendente situado nas circunstâncias do tempo e do lugar. Naquilo que Jacques Maritain qualificava como um ideal histórico concreto, onde, em vez do castelhano Dom Quixote, a lutar contra os moinhos de vento, haja um Zé Sancho Pança, ou João Semana, a semear para colher, sem ter que ser confiscado por um sistema quase ladrão, que continua a isentar os privilegiados que têm lobby e a permitir a evasão fiscal, sem um programa consequente de luta contra a corrupção e o indiferentismo cívico. O presente Estado dito de Bem-Estar é mero manto diáfano de fraseologia discursiva que recobre a verdade nua e crua da injustiça. Cuidado com o evitável Estado de Mal-Estar!  Nesse célebre dia nasceram, com efeito, muitos complexos de esquerda e outros tantos fantasmas de direita. Onde comunistas e anticomunistas começaram a acusar-se mutuamente de comerem criancinhas ao pequeno-almoço, enquanto os banqueiros,nacionalizados, nossos, depois de passarem para o exílio dourado, acabaram por regressar e agora esfregam as mãos de gozo, até porque muitos deles apenas foram expropriados naquilo que, em mercado livre, seriam meras falências.  Quem pagou a factura desses devaneios ideológicos e desses conselhos soviéticos foi o povo trabalhador por conta de outrem, a quem agora se dá a eufemística designação de classe média, a tal que não pode escapar às sucessivas liquidações de impostos. Com efeito, as nacionalizações revolucionárias dos homens ditos sem sono, depois de espatifarem a péssima economia que tínhamos herdado do velho Estado Novo, acabaram por gerar este grande Bloco Central de interesses. O tal que invoca a esquerda menos do socialismo democrático e da social-democracia, besuntando-o com o liberalismo a retalho da direita dos interesses. Dessa moluscular casta banco-burocrática, gerida por inúmeras plataformas de tráfego de influências. Dessas entidades sem nome que circulam entre certa partidocracia e os velhos e novos ricos dos donos do poder. Desses sobrinhos, filhos e criados dos grandes barões do feudalismo financeiro que sustentou o salazarismo através de sucessivos gentlemen’s agreements e que continua a viver em regime de economia mística com a classe politiqueira que vai gerindo os aparelhos de Estado. Trinta anos depois, por causa das revoluções e contra-revoluções e sem a necessária reforma, tudo continua como o dantes, da injustiça. Logo, importa apenas homenagearmos a flexibilidadedas eternas classes altas e dos seus eleitos que não permitiram ao povo adequada criação de elites, baseadas na meritocracia. Osdonos do poder de sempre continuam a ser sustentados pelos que junto deles se têm encomendado pela avença, pela parecerística e pela consultadoria, quando não pelos casórios no jet set. Os velhos e novos ricos, com os seus feitores partidocráticos, sabem que as velhas e novas direitas são facilmente manobráveis, porque enquanto o pau vai e vem folgam as costas e neste país ciclotímico o pau é apenas de marmeleiro verboso. Basta notarmos como se deu a crescente despolitização do Estado, nesse processo que alguns pintam com os nomes das liberalizações, privatizações e desregulações e que levaram os portugueses a este regime de anomia, onde os choques eleitorais apenas são droga passageira para o ilusionismo dos estados de graça dos primeiros tempos de um qualquer governo que instrumentalize as esperanças colectivas. Os façanhudos oposicionistas logo costumam tornar-se em venais ministros, aos quais até se admite que façam discursos contra a banca e os banqueiros, enquanto estes aumentam desmesuradamente os lucros e vão atirando alguns financiamentos pela porta do cavalo. E neste regime de trocas e baldrocas, sempre se garante a não intromissão em descaradas e silenciadas isenções fiscais, em nome de uma legalidade que pode ferir o direito, mas que é inequivocamente atentória da justiça.    O nome português deste capitalismo de economia privada, mas sem economia de mercado, chama-se hoje Bloco Central, chama-se PS, PSD e CDS, como, dantes, se chamou Regeneração, Primeira República e salazarismo. Porque, em matérias de mordomias e privilégios vindos do Estado, nunca o capital teve, tem ou terá cor ideológica, que isso de crenças, doutrinas, fé e valores apenas diz respeito à rapaziada dos mal-amados.  Porque os tais idealistas, mesmo que pintem e recubram com vulgatas de ideias, precisam de pão, casa, filhos, sexo e roupa lavada, coisas que necessitam de um sustento que, na falta de justiça, apenas se conseguem pelo salve-se quem puder.  Estes maus hábitos de um país pobre de recursos naturais, de organização de trabalho e, sobretudo, pobre de espírito, continuam por extirpar. Porque, aqui, os homens não se medem pelo ser, mas pelos palmos de ter que possam debicar. Logo, tanto a social-democracia como o socialismo democrático, mesmo que recebam a benzedura da democracia-cristã, servem para que, com um bocado de cal, aparentemente sinónima de justiça, permaneçam estes sepulcros ministeriais.  O 11 de Março de 1975, com que se ufanam comunistas e esquerda revolucionária, apenas serve para que se continue um discurso gasto pelo uso e prostituído pelo abuso. As revoluções apenas servem para que os escravos prefiram a utopia, as ilhas sem lugar, à subversão da justiça e à eficácia das reformas.


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